sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (588)

Gerardo Rueda - Ballesta (1961)

588. o arquipélago do ardor

o arquipélago do ardor
emerge no mar
suspenso
na luz arenosa
da areia branca
e pérola
de um oceano côncavo
como um coração
a sangrar
de ilha em ilha

(21/10/2016)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (304)

Charles Guilloux - Paisagem fluvial (1893)

nas nuvens do céu
vêem-se as águas do rio
espelho e imagem

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Uma chávena de chá

Columbano Bordalo Pinheiro - Uma chávena de chá (1898)

Os dias eram preenchidos e alegres. Falávamos sobre isto e aquilo, fazíamos planos e cumpríamos os planos. A vida fora generosa connosco e permitia-nos ócios prolongados. Ele pouco tempo perdia com a administração dos bens. Todas as tarde tomávamos chá e deixávamo-nos enredar pelo desejo e por novos planos e novas aventuras. Foram anos de felicidade absoluta, como se fosse ainda possível um paraíso sobre a Terra. Os deuses, porém, são ciosos da sua exclusividade. Raramente estão dispostos a oferecer-nos um paraíso eterno. De tudo, resta este hábito, uma chávena de chá no silêncio da tarde.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

domingo, 6 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (587)

Vicente Rojo - Señales (1967)

587. súbitos sinais

súbitos sinais
soam
no silêncio sonoro
do sonho
no signo suave
da saudade
o símbolo suado
e sonâmbulo
da sombria solidão

(21/10/2016)

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A espera

Edward Hopper - Mañan en Cape Code (1950)

Chegava à janela, abria-a e ficava longas horas a olhar o horizonte. A princípio pensei que esperava alguém ou alguma coisa. A cena, porém, repetiu-se sem cessar. Não era, por certo, pessoa ou coisa que ela aguardava. Veio o Verão, depois o Outono e os anos foram passando. Havia nela uma fidelidade inabalável ao ritual, uma fé inextinguível. Há dias, a manhã despontou sob uma grande tempestade. Ela abriu a janela, debruçou-se sobre o parapeito. Um raio atingiu-a. Por momentos, reverberou e depois caiu. Havia no seu rosto sem vida um rasto de felicidade. Tinha chegado o que há muito esperava.