segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (575)

Paul Ackerman - A l'aube (1962)

575. sonho o ardor

sonho o ardor
da aurora
na praça
fria e fétida
da noite
componho
com traço
de tristeza
a angústia
do sonho
sonâmbulo
ao despertar

(10/08/2016)

domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre a camuflagem

Pancho Gutiérrez Cossío - Camouflage (1921)

A camuflagem, em aparência, é um exercício que visa evitar o reconhecimento pelo outro. Fundamentalmente, quando este outro é um inimigo ou um predador. A camuflagem surge, deste modo, com um exercício vital. A sobrevivência depende da arte do disfarce. Rapidamente, a espécie humana transferiu a dissimulação da esfera da luta pela sobrevivência para a da vida social, como se sentisse também nesta uma ameaça. Sem dar por isso, tomou aquilo que é um mero expediente de sobrevivência como sendo a sua própria natureza. Tomamos a máscara, ou o efeito de camuflagem, como a nossa efectiva realidade. No momento em que o homem sente um suspeita sobre a distância que vai entre a camuflagem e a realidade de si mesmo, nesse momento começa a aventura espiritual. Até ali, o que via era apenas e só o animal acossado que também é.

sábado, 17 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (297)

Albert Bierstadt - Autumn Woods (1886)

outono nos bosques
vem vestido de verão
rios de solidão

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O positivo e o negativo

Gerardo Rueda - Positivo - Negativo (1965)

A distinção entre o positivo e o negativo será uma das formas de classificação mais básicas usadas pela espécie humana. O problema é que esta classificação, como todas as outras semelhantes, nada nos diz sobre a coisa classificada, mas sobre aquele que atribui a classificação, que projecta, ao classificar, os seus desejos e os seus temores. Estamos ainda no domínio do pensamento mágico. A vida espiritual começa onde cessa a necessidade de classificar, onde acaba a magia. O positivo e o negativo são grilhões que prendem o espírito à ilusão, ilusão que ele próprio projecta sobre o mundo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (574)

 
Victor Vasarely - Quasar (1966)


574. quase um quasar

quase um quasar
a luz vinda
do negro negro
inominável
incendeia-se de azul
nas partículas
frias dos teus
olhos
nas trevas tocadas
trocadas
na alegria
negra da noite

(10/08/2016)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O jogador secreto

René Magritte - O jogador secreto (1927)

Confesso, sempre tive o secreto prazer de jogar. Porquê o segredo? Está enganada. Por que haveria de ter vergonha de competir? Não, não, também não é verdade que tema ser tomado por criança presa à diversão. Todos estes anos ao meu lado e ainda não me conhece. Não é a vitória, nem o risco, nem o divertimento. É amor, jogo por o amor à regra, e não há jogo sem uma estrita regra. Sou vítima da mais secreta e vergonhosa das paixões, a paixão por aquilo que limita e oprime.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Da cegueira do amor

Joaquín Mir - Amores cegos (1900)

A paixão amorosa é vista, muitas vezes, como o resultado de uma cegueira. De certa maneira, é assim. Contudo essa cegueira deve ser compreendida como aquela cegueira que atinge certos profetas, para que eles possam ver mais longe e mais fundo. A cegueira do apaixonado permite-lhe ver algo que só perante ele se manifesta e que só o seu estado de cegueira lhe permite ver. A paixão é um convite a ver outra realidade e a viver de uma outra maneira. A impotência dos homens para tal, a sua incapacidade em persistir no caminho que diante deles, por instantes, se abriu, transforma tudo numa ilusão que o tempo acabará por destruir. E de cego de amor transforma-se em cego real, isto é, vê aquilo que todos vêem.

sábado, 10 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (573)


Franz Marc - Blue Horse with Rainbow (1913)

573. um cavalo azul

um cavalo azul
voa num céu
de cristal
relincha
na sombra
irisada do arco-
-íris
e
solto galopa
a norte da noite


(09/08/2016)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (296)

Paul Caponigro - Monument Valley, Utah (1970)

a rocha cinzenta
desdobra-se em mil portas
segredos de pedra