domingo, 4 de setembro de 2016

Do obstáculo

Béla Uitz - Luta (1922)

Na vida material dos homens, a ideia de luta tem um lugar central. Está associada ao esforço com que alguém pretende realizar um projecto, à sua capacidade de ultrapassar obstáculos e de imprimir, no mundo, a sua impressão. A capacidade para lutar é vista como virtuosa. Na vida espiritual, porém, a necessidade de lutar é ainda o sintoma de um excesso de materialidade e de uma visão de si oposto ao outro e ao mundo. Não se trata de vencer obstáculos, mas de compreender que não existe nem aquele que quer ultrapassar o obstáculo nem o obstáculo a ser ultrapassado. Essa cisão é ainda uma ilusão da vida material. Obstáculo e obstaculizado são uma e a mesma coisa. Não há impressão alguma a imprimir no mundo.

sábado, 3 de setembro de 2016

O regresso

Giorgio de Chirico - O enigma da chegada da tarde (1912)

Sentia-se um velho Orfeu. Não, não era o luto pela morte de qualquer Eurídice. Nem sequer a consciência da sua fraqueza ao não ser capaz de suster a tentação do olhar. Quando a tarde caía, era impelido, como Orfeu o fora para a lira, a sentar-se ao piano. Deixava as mãos perderem-se nas teclas. Improvisava. Na música, doía-lhe o enigma do entardecer. Os sons tornavam-se água, um oceano sem fim. Então, ele entrava no grande navio. Fugia. Fugia do mistério do poente, do enigma do entardecer. O outro lado do mar esperava-o. Chegada a noite, exultava, o exílio terminara. Era a sua pátria.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (295)

Piet Mondrian - Sheepfold in the Evening (1906)

no campo anoitece
as ovelhas no redil
sombra sobre sombra

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (571)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

571. moléculas movem-se

moléculas convergem
num oceano
de mágoa
giram e rodam
rodopiam
traçam
um lago
de sombra
no
                silêncio
e na
                solidão

(05/08/2016)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inquietações e incertezas

Luis Prades - Ángeles inquietantes (1964)

A inquietação não é apenas um mero estado psicológico. Ela é também uma experiência existencial. A inquietação traduz uma crença profunda alicerçada na certeza de que o mundo é tal como estamos habituados. Quando a realidade se torna incerta, a incerteza traduz-se na inquietação. Deparam-se então dois caminhos ao viandante. O primeiro liga-se à tentativa de recuperar o mundo da certeza, para que a crença não se desfaça e a inquietação desapareça. Este é um caminho reactivo. O segundo caminho funda-se na aceitação da incerteza, no fazer dela a estrada por onde se vai, e aceita que a nossa crença na estabilidade do mundo é uma projecção da nossa necessidade de segurança e nada tem a ver com a realidade. Este é o caminho do espírito, que aprende que o vento soprar onde quer.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Encontro no bosque

Carlos Morago - Arboleda (1998)

Os bosques são lugares românticos, tem razão. O sussurro do vento no arvoredo, o rumor da água, o jogo infinito de luzes e sombras. Há muito, porém, que não entro em nenhum. Tenho um ar assombrado? Talvez. O que vou contar guarde-o para si. Numa tarde de Junho entrei num bosque. A certa altura, deu-me sono. Sentei-me e encostei-me a um velho carvalho. Quando acordei vi diante de mim alguém. Era muito velho. À minha volta, as árvores tinham desaparecido, o rio secara, apenas uma erva seca e rala... e aquele velho. Olhava-me. Reconheci-o. Não voltarei a entrar num bosque. Não quero tornar a encontrar-me.

domingo, 28 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (570)

Eusebio Sempere - Ritmo lineal (1953)

570. um ritmo roxo

um ritmo roxo
quasi linear
floresce
no centro da linha
um ponto
uma flor
castelos de cartas
que se abrem
e desabam
desabam
no silêncio da cor

(05/08/2016)

sábado, 27 de agosto de 2016

Cataclismos e catástrofes

Javier Calvo - Cataclismo (1986)

Designamos por cataclismo todas as grandes catástrofes naturais e, por extensão, as sociais. Originariamente, no grego antigo e no latim, o termo estava ligado ao elemento água. Um cataclismo era uma inundação para os gregos e um dilúvio para os romanos. O que terá permitido esta transferência metonímica, onde uma palavra, cataclismo, que designa uma parte das catástrofes, aquelas que estão ligadas à agua, passa a designar todo o tipo de catástrofes, sejam naturais ou sociais? Todas as catástrofes têm um elemento fluido. Nelas, aquilo que é sólido perde a sua solidez e arrasta a vida dos homens como uma enxurrada impetuosa. 

Perante a força destruidora da água, pode-se perguntar que sentido haverá que o cristianismo tenha feito da água - através do baptismo - um símbolo central. A resposta óbvia está ligada às propriedades lustrais da água. Há, contudo, uma resposta menos óbvia e mais funda: aquilo que traz a morte também traz a vida. Cataclismos são catástrofes terríveis e dolorosas, mas são ainda uma forma de a vida se afirmar perante e sobre a dor e a morte. O estado líquido onde o mundo parece encontrar-se, onde tudo o que um dia foi sólido parece desabar, apela ao trabalho do espírito para que, no cataclismo universal em que vivemos, inscreva uma nova vida.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Correspondências

Georges Braque - O porto de Havre (1903)

Os portos são lugares especiais, não tanto por estarem ligados à navegação, mas porque condensam em si experiências que se transformaram, ao longo dos milénios, em símbolo da vida espiritual. Esta é feita de partidas e de chegadas. Também nela o viandante aporta, por instantes, em lugar seguro, para depois retomar a viagem num ambiente tão fluido e perigoso quanto a água. É esta correspondência entre a vida material e a vida espiritual que torna cada porto num lugar de fascínio  de rememoração.