sábado, 6 de agosto de 2016

O filho pródigo e o homem moderno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

Na parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-31) há uma equivocidade central que tem o efeito surpreendente de transformar em filho perdido não aquele que dissipou os bens herdados mas o que se manteve fiel à casa paterna e à regra nela existente, isto é, que se manteve fiel à tradição formal. O reconhecimento é dado ao que experimentou o peso e as consequências da autonomia e se reencontrou depois de se ter perdido. Aquele que nunca se perdeu, o que se manteve fiel à forma, fica preso no ressentimento, incapaz de lidar com as mudanças introduzidas pelo tempo. Esta parábola é fundamental para podermos compreender por que motivo a modernidade, com todas as suas características, emergiu no âmbito do cristianismo. O filho pródigo é o arquétipo ancestral do homem moderno, o que faz de cada um de nós filho pródigo em busca de si mesmo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Caçar o tigre

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Pode-se imaginar a caça ao tigre como um momento fundamental de toda a vida espiritual. Não no sentido literal, mas aquilo que no homem pode ser simbolizado pelo tigre, o seu lado selvagem e perigoso. Mas mesmo aqui, caçar o tigre não significa matá-lo ou sequer domesticá-lo. Caçar o tigre significa fazer dele a energia propulsora que permite vencer a gravidade e tornar-se livre como o vento, esse vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (564)

Tal-Coat - [Paisaje] (1954)

564. estas paisagens

estas paisagens
maculadas
pelo ocre do ócio
pela oxidação
das tintas
crescem nas margens
do sangue
e ondulam na
cegueira de uma
metáfora
ao desaguar
no porto da solidão

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Metamorfoses

James Whistler - Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights (1872)

Há uma verdade à luz do dia e uma outra à luz da noite. Não são apenas as coisas que sofrem metamorfoses, que se transformam naquilo que não são. Também a verdade é itinerante, tomando sempre novas figuras. Os homens são tentados a contrariar os seus sentidos, em crer numa imutabilidade eterna da verdade. Esta, porém, sofre de uma inquietação estrutural e nunca se reconhece a não ser nesse acto de se metamorfosear.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (291)

André Masson - Le Couvent des Capucins - Céret (1919)

montanhas azuis
no verão desmesurado
monge em oração

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Casa de Verão

Xaime Quessada - Estio (1960)

Um dia muito quente. Não havia uma sombra ou uma fonte. Quase que morri. De súbito, avistei a casa. Enorme, mas sem portas. Apenas janelas. Uma estava aberta. Aproximei-me, havia gente lá dentro. Chamei, não houve resposta. Entrei pela janela, ninguém olhou para mim. Pareciam estátuas, mas respiravam. Havia água e comida. Sentei-me entre eles, comi e bebi. Adormeci sobre a mesa. Acordei manhã cedo, eles lá estavam imóveis. Tornei a comer e, ao sair, levei água comigo. No dia seguinte, voltei ao mesmo lugar. Não havia qualquer casa, apenas um grande carvalho e uma fonte a rumorejar. É lá que paro sempre que ali passo. Virão, estou certo. Devo-lhes a vida.

domingo, 31 de julho de 2016

Poemas do Viandante (563)

Manuel Gil Pérez - Formas dinâmicas espaciais (1957)

563. o fulgor do fogo

o fulgor do fogo
abre-se em amarelos
e a melancolia
desce pelo espaço
onde espero
o sol de setembro
e a promessa
de um outono
outonado no fogo
que desavindo desce
dos teus olhos

sábado, 30 de julho de 2016

O dom de olhar

Paul Cezanne - Os Jogadores de Cartas (1890-92)

Não sou um jogador. Falta-me o talento e a sorte. Eles sim, são verdadeiros jogadores de cartas. Toda a sua vida está ali entre mãos, pronta para ser deitada sobre a mesa. A minha vida nem a sinto como minha. Como poderia sentar-me à mesa e jogá-la numa última cartada? Eles jogam e eu vejo, e ver é a condição de quem está de fora. Pergunta-me: fora de quê? Fora de mim. Quem está fora de si está fora de tudo, do mundo, da vida, do jogo. Olhe-os. Tudo neles é inocência, pertencem ao instante em que as cartas caem sobre a mesa. Eu? Eu não me pertenço, não sei jogar. Chego aqui e olho. Foi-me concedido o dom de olhar. Tem toda a razão, é uma maldição.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O desejável do desejo

Paul Ackerman - L'au-delà est désirable

Só o além é desejável. Não apenas porque aquilo que constitui esse além tenha o poder de atrair o desejo, o poder da sedução, mas porque a dinâmica deste desejo é o de nos fazer transcender, de nos raptar da pura imanência onde estamos presos e de nos atirar para o desejável que está sempre além e que por isso mesmo o nosso desejo tanto deseja.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Tempo perdido

Manuel Ruiz Pipó - À la recherche du temps perdu

Em busca do tempo perdido. Não há maior equívoco do que a ideia trazida pelo título da obra de Proust. E o equívoco não nasce do caso do tempo perdido jamais poder ser encontrado. Nasce do simples facto de não existir tempo perdido. Todo o tempo vivido faz parte de um caminho e nunca, na verdade, é perdido, seja qual for o sentido em que se tome a expressão tempo perdido. É sempre um tempo de um caminho onde o que caminho se procura reencontrar.