quinta-feira, 21 de julho de 2016

O canto do cisne

Ignacio Díaz Olano - Cisnes (1927)

Sabe-se há muito que a lenda do canto do cisne (estes seria mudos, mas antes de morrer entoariam o mais belo dos cantos) não corresponde a qualquer realidade. Esta não verdade empírica não deixa, porém, de conter a sua verdade. Um dado mundo espiritual, ao entregar-se na noite da história, entoa a sua mais bela canção. Mais do que anunciar as trevas que se aproximam, o canto do cisne sublinha a esperança do dia que, terminada a noite, triunfará no esplendor da aurora. O canto do cisne não é uma canção de morte mas de esperança.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A casa do Homem

Felix Vallotton - In the Shadow (1916)

Pensamos, em primeiro lugar, a sombra como o lugar do mal. Este não suportaria a sua exposição à luz, que o denunciaria, e recolhe-se na sombra para exercer o seu império. Num segundo momento, constatamos que a pura luz seria insuportável mesmo para o bem. A intensidade da luz tornar-nos-ia cegos. Por fim, percebemos que a sombra é o lugar do homem, tanto para o mal como para o bem. Nem as trevas absolutas nem a pura a luz, mas a sombra. É neste registo sombrio que uns caminham de claridade em claridade, mas sempre sob a protecção da sombra, e outros vão de escuridão em escuridão, mas ainda e sempre na forma de sombra, cada vez mais densa. A sombra é a casa do homem sobre a Terra.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poemas do Viandante (560)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-29)

560. o círculo negro

o círculo negro
de malevich
é lua nova
aluada e perdida
no fundo frio
e esconso
de um universo
sem sóis que
no desvão do dia
de luz o iluminem

(19/07/2016)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Sem bandeiras

Lorenzo Viani - All'ombra della bandiera

O espírito não tem bandeiras nem causas. Manifesta-se de diversos modos - na arte, na religião, na filosofia - e estes modos de manifestação são as únicas limitações que admite. Erguer uma bandeira ou arvorar uma causa - mesmo que artística, ou religiosa ou filosófica - é limitar-se a um ponto de vista particular de tal modo que deixa de ser vida espiritual. Causas e bandeiras sombreiam um solo juncados de morte. A pátria do espírito é a vida infinita.

domingo, 17 de julho de 2016

Aos domingos

Henri Le Sidaner - Dimanche (1898)

Nunca senti os domingos como uma maldição. Não se equivoque. Vivi a melancolia de domingo à tarde, do fim-de-semana que acaba, da iminência de cair na terrível realidade. Não, não era o sentimento de uma maldição, porém. Por pesada que fosse a ameaça de segunda-feira, o domingo era sempre um dia de glória. Ia até ao bosque, aquele ali em frente, e diante dos meus olhos desfilavam raparigas, belas raparigas. Conversavam, riam, diziam frivolidades. Se conheci alguma? Não sei o que responder. Eu vi-as, mas elas nunca me viram. Quando nasci, já tinham morrido há muito. Tem razão, era uma disfunção na ordem do tempo. Foi ela que salvou os meus domingos.

sábado, 16 de julho de 2016

Cair em tentação

Max Beckmann - Temptation (1936-37)

A tentação é vista muitas vezes como provação que é colocada à vontade, para testar a sua fortaleza. Esquece-se, porém, o outro lado, o do desejo. Não é só a força da vontade que é testada na resistência à tentação. É também a força do desejo em ultrapassar a resistência da própria vontade. Cair em tentação pode nem significar que a vontade é fraca, mas que o desejo é excessivo.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Poemas do Viandante (559)

Gerardo Rueda - Contraponto (1971)

559. contraído e pronto

contraído e pronto
o ponto
semeia sombras
na alvura
branca do papel
traços em
contraponto
e uma fuga fulva
descreve
entre ponto e linha
um mundo
frívolo e cruel

terça-feira, 12 de julho de 2016

Haikai do Viandante (289)

Paul-Emile Pajot y Gilbert Pajot - A Concarneau, va- et- vient des bateaux de pêche

barcos sob os céus
trazem nas velas o mar
a dor ao passar

De porto em porto

Georges Braque - El puerto de El Havre (1903)

Há uma mitologia literária fascinante e fascinada em torno dos portos. Compreende-se que, antes da aviação, o lugar de partida para longe e o de chegada vindo ou de quem vem de longe tenha esse poder de encantamento. Contudo, a possibilidade de ser encantado reside já na experiência espiritual e interior dos homens. Também a viagem espiritual é um chegar e um partir, sempre pontuada por um porto, um porto simbólico. E estes, por inesperados e inusitados que sejam, são uma referência e uma que ajudam a desenhar o sentido da viagem interior.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

O cuidar

Kazimir Malevich - Harvest (1910-11)

Não por acaso a vida dos campos é tomada como analogia para a vida espiritual. Também esta é pautada pelo ritmo da lavoura. Preparar a terra, semear, cuidar e colher. A colheita, a obra que se produz, está ligada a todo este longo processo. Sem este, não haveria obra. A cada momento, é exigido ao viandante que não descure a terra que trabalha. O não descurar, o cuidar, não é outra coisa senão o amor que se põe na obra.