sexta-feira, 10 de junho de 2016

Um study case

Elmer Bischoff - #1 (1974)

Produz conhecimento, investiga, diz-me. Desculpe o sorriso impertinente. Também eu acreditei que era possível conhecer a realidade. Não, não era uma visão ingénua. Parece, porém, que sou um study case. Como foi, pergunta-me. Que lhe hei-de dizer? Primeiros as cores perderam a constância. Depois, os contornos começaram a desaparecer e as formas, falo das formas das coisas, ficaram fluidas. A realidade - não ligue ao meu sorriso - espacial tornou-se uma amálgama, onde nada é discernível. E agora está aqui e quer saber o meu segredo. Como me oriento? Não me oriento. Ajo ao acaso e espero acertar. Não é isso que acontece também consigo?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Haikai do Viandante (285)

Lyonel Feininger - Blue Coast (1944)

azul sobre azul
barcos rendidos ao mar
ventos de verão

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mito e liberdade

Ker-Xavier Roussel - Cena mitológica

Por muito que a razão se esforce, por muito que ela reivindique a supremacia e a legitimidade, uma legitimidade fundada no conhecimento e, não menos, na técnica, o mito acaba sempre por retornar e invadir a cena do mundo. Com ele triunfa, uma e outra vez, a ambiguidade, a pluralidade de sentidos, as múltiplas possibilidades. Muitas vezes pensa-se que a liberdade está ligada à ordem moral da razão. Podemos, porém, contar outra história e vê-la emergir na plurivocidade que nasce do mito, como se este fosse uma fonte, frágil e equívoca, de onde nascem diversos e caudalosos rios, os quais se abrem à livre navegação.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Poemas do Viandante (550)

Mario Merz - Alga (1995)

550. na água viva

na água viva
de uma alga
cresce
alucinada
e lenta a luz
das ondas
do mar de vigo
das flores de
verde-verde pino
     ai deus i u é
e ai deus se verrá cedo
     ai deus i u é

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Pregadores da vida beata

Lucio Muñoz - 8-86 (1986)

Tempo lamentável este. Não por ser uma época de desolação, embora o seja. Enquanto a ruína cresce aos nossos olhos, também não param de crescer os vendedores de beatitudes. A cada esquina, até nos lugares mais insuspeitos e outrora dignos de respeito, se ouve apregoar a venda da felicidade, aquela que espera por si ao virar da esquina. Não deixa de ser paradoxal que, no momento em que a actividade espiritual do Ocidente mais se retrai, a pregação da vida beata atinja um insuportável paroxismo.

domingo, 5 de junho de 2016

Construtores de labirintos

Felo Monzón - Construção (1975)

Podemos pensar na vida como uma construção. Não dessas construções que trazem o reconhecimento dos outros, mas a construção de um labirinto. De um labirinto secreto, como o devem ser todos os labirintos. Construímo-lo para podermos encontrar o Minotauro. Para o matar? Não. Para nos reconciliarmos com ele, isto é, connosco.

sábado, 4 de junho de 2016

Europa: escutar os mitos

Fernando Botero - Rapto de Europa (1955)

Nunca devemos deixar de interrogar os mitos. Têm sempre alguma coisa a dizer a quem anda perdido no caminho. Também hoje a Europa está a ser raptada por um deus impetuoso. A Europa é o conjunto de valores espirituais que durante séculos se tornaram uma marca distintiva no reino do espírito. Não sabemos, porém, o que se esconde sob a figura do touro. Será ainda um deus que assim nos fala ou é antes um emissário da morte que nos anuncia um fim e nos vem dizer que os nossos valores caducaram e que o espírito se retirou para outras paragens?

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Poemas do Viandante (549)

Markus Luepertz - Composicón en gris (2001)

549. componho na cinza

componho na cinza
do cinzento
um veneno
feito de cianeto e
líquidas violetas
a escorrer
no violão da tarde

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Haikai do Viandante (285)

Paul Cézanne - Houses on the Hill (1900 -1906)

casas na colina
crescem dentro do verão
sombras tão sombrias

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Caminhar por caminhar

Isabel Villar - Ciclistas llegando a la meta (1964)

Uma boa educação prepara a nova geração para colocar e atingir metas. Ter um objectivo na vida e lutar por ele. E nisto está tudo o que a sociedade pode desejar. É isto, caso se alcance o objectivo, que se chama sucesso. Mas se o essencial não for chegar a uma meta, mas antes dissolver metas, libertar a vida de objectivos, deixar que o vento sopre onde quiser? E se não houver mesmo meta alguma para alcançar? Se a finalidade não passar de uma ilusão? Para que servirá tal educação? Não seria melhor que se aprendesse a caminhar apenas pelo caminhar?