terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desintegração da memória

Salvador Dali - Desintegración de la persistencia de la memoria (1952-54)

A memória é a persistência do passado, a composição de indícios que acabam por vincular os homens a uma identidade a um ego. A memória é o fundamento desse ego e daquilo que deriva dele. A vida do espírito nasce da desintegração da memória, que não é outra coisa senão o quebrar da ilusão do ego.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 9

Giovanni Boldini - Alla Toeletta

9. Corpo desvelado

Corpo desvelado,
segredo que se abre,
no frio da manhã,
ao rude prazer,
ao pudor das mãos,
à luz infinita
com que te desejo.

domingo, 8 de novembro de 2015

Para além dos paradoxos

Sonia Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Os seres humanos, quando ultrapassam um certo limiar da vida animal que tolhe o pleno desenvolvimento do espírito, colocam a si mesmos estranhos paradoxos, põem a razão perante contrastes que, pela sua simultaneidade, parecem irresolúveis. Uma grande energia é gasta na tentativa, sempre decepcionante, de resolução desses paradoxos. Isso deve-nos fazer suspeitar se estamos a interpretar bem aquilo que o espírito nos propõe. Será que ele pretende que vivamos para a resolução de paradoxos? Ou espera, antes, que, ao fazermos a experiência do paradoxal, abandonemos a ilusão que o caminho do espírito é aquele que é determinado pela razão que se enreda nas suas próprias contradições?

sábado, 7 de novembro de 2015

Um ofício sem fim

Salvador Dali - Voyeur (1921)

Mulheres que se despem, casais movidos pelo desejo e que se abraçam como se a morte os espreitasse, nada disso o interessava. Deixava-se ficar não porque estivesse interessado nos múltiplos espectáculos que a vida dos homens lhe traziam, mas porque estar ali fazia parte do ofício. Um café forte e quente iluminava-lhe a alma e deixava-o a meditar naqueles corpos que, no descuido da noite, se ofereciam à sua visão. Seria um voyeur? Claro que não. Por vezes dormitava e, quando a temperatura descia, acordava. Apesar da sua fama, sempre odiara o frio. E lá estavam as mesmas mulheres a despirem-se, os mesmos casais a abraçarem-se, a mesma agonia perante a morte. Olhava. Teria de escolher alguém. Também ele tinha livre-arbítrio. No seu olhar não havia desejo mas apenas o tédio de uma missão cumprida uma e outra vez, numa repetição sem fim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O ritmo dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Teme-se muito - e não sem razão - a dependência dos objectos. Uma dependência fascinada, na qual sempre podemos ler um estranhamento de si, uma alienação. Contudo os objectos possuem os seus ritmos. O viandante deve aprender a olhar e a sentir esses ritmos, pois também os objectos fazem parte do caminho que ele deve percorrer. Também eles exigem a ascese do viandante, um prolongado exercício de observação e de aprendizagem. Também eles são manifestações do espírito.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O fascínio das antiguidades

Karl Schmidt-Rottluff - Antiguidades (1928)

O fascínio com as antiguidades, se já atormentava as mentes na Antiguidade Clássica, teve no Renascimento um notável incremento. A partir daí, à medida que a modernização das sociedades as afastavam da vida tradicional, o culto pelas antiguidades não parou de crescer. Nunca se pensa, contudo, que este fascínio é o sintoma de um vazio espiritual, a confissão de uma impotência de viver plenamente o tempo que nos foi dado, de nele escutar a voz do vento, aquele vento que sopra onde quer e que, perante o feitiço das formas mortas, não pára de nos chamar à vida.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Disciplinar-se a si

Pierre Bonnard - O exercício (1890)

Também a vida do espírito tem uma dimensão militar. Quantas vezes, mesmo na religião, se fala em milícia. Esta dimensão militar da vida espiritual não visa fazer a guerra ao outro, mas aprender a disciplinar-se a si. Também esta disciplina não significa a rigidez do hábito. Pelo contrário, a disciplina do exercício - da ascese - é o caminho para acolher esse vento que sopra onde quer.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (255)

Egon Schiele - Quatro árvores (1917)

árvores perdidas
esperam a luz do outono
um rasto de vida

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A hora da espera

Carlo Carra - Dopo il Tramonto (1926)

Deixar que o silêncio envolva o murmúrio das águas. Deixar que a luz do crepúsculo seja tomada pelo assalto da noite. Ali, onde toda a luz se apagou e toda a voz se suspendeu, o viandante começa uma nova viagem. Não à procura da sua luz ou da sua voz, mas à espera da voz que, vinda de lado nenhum, o iluminará e indicará o caminho.

domingo, 1 de novembro de 2015

Das artes e das letras

Fernand Léger - A leitura (1924)

Uma das distinções centrais entre a literatura e as artes plásticas pode ser pensada a partir do olhar. Na pintura e na escultura, o olhar concentra-se no objecto artístico. Repousa nele, perscruta-o, observa os jogos da cor, da forma, da luz. A relação entre a obra e o olhar é essencial. Na literatura, porém, essa relação é apenas instrumental. O leitor também fixa o olhar nas palavras do poema ou da narrativa, mas fixa-o aí para poder olhar para além do texto, para o mundo espiritual que é evocado. Nas artes plásticas, o espírito materializa-se e torna-se concreto. Na literatura, o texto é apenas um medium da relação entre o espírito do leitor e o da obra. É tudo isso que o quadro de Fernand Léger torna patente de forma tão ostensiva.

sábado, 31 de outubro de 2015

A terapia da acção

Pablo Picasso - Contemplación (1904)

A contemplação não é propriamente o oposto da acção. Agir arrasta sempre consigo uma qualquer dor. E esta dor transforma-se numa melancolia, a melancolia da acção. Quando a melancolia se torna insuportável, a contemplação emerge como a terapia da acção.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (254)

Dionisio Fierros - Acantilados en Asturias

águas entre montes
espelham o céu de inverno
murmúrio nas fontes

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As velhas casas

Chaim Soutine - Old House near Chartres (1934)

Há nas velhas casas um estranho encanto. Este nasce-lhe daquilo que elas puderam observar e absorver ao longo de uma vida maior que a dos homens. O espírito destes - as suas venturas, as suas aventuras e as suas desventuras - impregna-se nas paredes, no telhado, em toda o lado. As casas não são coisas inertes. Nelas concentra-se também a aventura espiritual do homem, seja esta grande ou pequena. Seja esta um triunfo ou uma derrota.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 8

José de Togores - Desnudo de espaldas (1922)

8. Raptada no sonho

Raptada no sonho
Vejo-te perdida
Entre luz e sombras.
Espero que voltes
No fogo da noite
E sobre mim desça
A voz que me ateia.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entre mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Estar entre dois mundos não é um acidente no percurso do viandante. Viver na fronteira, nesse território equívoco, é a natureza da própria viagem espiritual. De um lado, o mundo que se abandona; do outro, o mundo que espera. E onde é que é essa fronteira? Em todo o lado a que o viandante chegue. Sobre a terra, a fronteira, esse entre mundos, é o único território disponível para o homem, saiba-o ele ou não.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O segredo do amanhecer

Guillermo Trujillo - Amanecer Chocoe (2000)

Há um momento do amanhecer em que tudo parece suspenso. A luz e as trevas travam uma dura batalha pela vitória. Nesse momento de indecisão, aquele que toma a natureza como um símbolo a meditar encontra um segredo. Não um segredo que esteja oculto e que a curiosidade pode revelar. Encontra um efectivo segredo que está velado e sobre o qual não há revelação possível. O segredo é o da estranha fraternidade entre luz e trevas, o das suas núpcias nas horas indecisas dos crepúsculos. Aquilo que não tem revelação é aquilo que dá que pensar, mas o pensar é ainda e só uma preparação para enfrentar o mistério, perante o qual a razão experimenta o seu limite e a sua impotência.

domingo, 25 de outubro de 2015

O touro moribundo

Pablo Picasso - Touro moribundo (1934)

Meu Deus, o que fiz? O matador ergue a mão em triunfo, a multidão aplaude e um suor frio corre-lhe na face, desce pelo pescoço, gela-lhe no peito. O touro estremece ainda uma e outra vez. Suspira e o matador sente aquele suspiro nascer-lhe no fundo gelado do peito. Erguem-no aos ombros. Que faena, gritam. E tudo nele arrefece. O olhar prende-se ao touro agonizante, nos traços quase inertes daquele que ainda há pouco era o seu companheiro de arena, aquele que ele olhava de frente e via nele os traços da sua morte. Os aplausos da multidão recrudescem - malditos aplausos, pensa. Que frio está, murmura, mas ninguém o ouve. Sente uma dor nas costa, logo abaixo do pescoço, uma dor vibrante, e sente as costas encharcadas. Olha de novo o touro, parece vivo, reflecte perplexo, e fixa os olhos nos olhos do animal. Cai desamparado no chão, uma ferida nas costas de onde sai um rio de sangue. Por terra, antes de tudo enegrecer pensa: eu sou o touro que matei.

sábado, 24 de outubro de 2015

Afinidades electivas

José de Togores - Afinidades (1930)

As Afinidades Electivas, título de um romance de Goethe, sempre me fascinou. Não tanto pelo conteúdo trágico da obra, mas porque esse título indicia aquilo que, na vida do espírito, atrai e junta certas pessoas, ou repele outras. Apesar do caminho espiritual ser sempre um caminho solitário, a verdade é que certos encontros não deixam de ser fundamentais, encontros esses que estabelecem ligação entre pessoas que possuem certas afinidades. Nesses estranhos encontros, o que sobressai é a sensação que essas afinidades são o resultado de um certa eleição. Eleição para se submeterem a um dado caminho e fazerem uma parte da jornada juntas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Olhar a natureza

Hiro Yamagata - Folhas caídas (1982)

Tempos de Outono. Como as árvores se despem das folhas agora inúteis, também o homem, para persistir no caminho que o espírito lhe indica, se deve despir de todas as ilusões e inutilidades que vida deposita nele. Olhar para a natureza torna-se um imperativo. Aprender com ela a ascese e a purificação é uma necessidade, para que se abre à voz que o chama e lhe indicou a senda do Outono.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (253)

Albert Bierstadt - A Storm in the Rocky Mountains, Mt. Rosalie (1866)

chega a tempestade
desce sobre a montanha
terror sem idade

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Signo sinal 8. A leitura decisiva

Francisco Bores - A leitura (1934)

Uma das principais competências exigidas pela vida espiritual é a da leitura. Não propriamente a leitura de textos, mas a leitura de sinais e de símbolos. Na vida do espírito, mais importante do que a leitura dos diferentes discursos é a leitura daquilo que acontece, seja dentro do viandante seja no ambiente que o envolve. Porém a leitura decisiva será daquilo que não acontece. É preciso aprender a ler lá onde desapareceram todos os símbolos, os signos e os sinais. Ler o silêncio. Esta é a leitura mais difícil e a mais decisiva.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 7

Jorge Apperley - Desnudo (1945)

7. Nesse abandono

Nesse abandono
onde te guardo
na minha memória,
há restos de luz
que descem do rosto
e poisam nos seios
o fogo e a glória.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Raízes e errância

Vincent Van Gogh - Roots and Tree Trunks (1890)

Vivemos numa época em que o enraizamento dos homens perdeu sentido. Num tempo de mobilização contínua, a diáspora e o nomadismo tornaram-se a circunstância do homem. Trazem com eles a destruição da ligação com a terra e da possibilidade de enraizamento. E esta é uma das causas fundamentais do empobrecimento geral da vida espiritual do homem. Aquele que se quer elevar (no sentido de procurar o que é do alto) necessita de se enraizar fundo na terra. Na ausência desse enraizamento, resta a superfície onde os homens se arrastam, errantes, de um lado para o outro.

domingo, 18 de outubro de 2015

O cavalo de Tróia

Oscar Dominguez - O cavalo de Tróia (1947)

Gostamos sempre de nos identificar com os vencedores. Na guerra de Tróia, somos, na nossa imaginação, os companheiros de Ulisses, de Agamémnon e de Aquiles. Esta identificação, porém, oculta a nossa verdadeira situação espiritual. Presos a ilusões, perdido na errância, somos como os troianos que trazem para dentro de casa aquilo que os há-de derrotar. No caminho que cabe a cada um, o mais difícil é resistir à tentação de trazer para dentro de si o cavalo de Tróia de onde sairão os inimigos que nos aniquilarão na viagem.

sábado, 17 de outubro de 2015

O barco vazio

Abert Gleizes - Barcaza atracada en el muelle (1908)

Sento-me na margem, observo os barcos e fecho os olhos. Preso à terra, devaneio com o mar, com o rumorejo das águas no casco, o balancear do barco impelido pela ondulação. Sonho com o além mar, essas outras terras a que nunca irei. Tenho pavor das águas. Sirenes cortam a tarde e a azáfama das gentes do mar embala-me. Adormeço no molhe e tudo desaparece no fundo negro do sono. Quando acordo, noite dentro, a terra desapareceu. O lugar onde estava evaporou-se e à minha volta só há escuridão. Sinto-me balancear e compreendo, ao ouvir o marulhar das águas no casco, que estou no mar. Olho o céu e vejo as estrelas. Levanto-me e corro o barco. Está vazio. Só eu, o mar e as estrelas no fundo negro dos céus.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O chefe de orquestra

Paul Ackerman - A orquestra

O homem não é um ser unidimensional. Pelo contrário, é composto por múltiplas dimensões que, como os instrumentos de uma orquestra, precisam de ser concatenados. O trabalho de concatenação cabe ao chefe da orquestra, ao espírito. Uma parte da vida espiritual está ligada à descoberta do maestro e à sua preparação. A outra parte é o trabalho deste na transformação de uma cacofonia numa peça musical sublime.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Um súbito encontro

Thomas Hart Benton - Figure Study (1919-20)

O que esperam elas de mim? Pensou. Sentiu uma estranha opressão no peito e mastigou em seco. De onde vieram? Vim passear e, cansado, sentei-me aqui, à sombra. Terei dormido. Instantes, horas? Não sei. Ao acordar, senti uma presença. Uma presença indefinida, sem contornos, apenas um hálito, uma respiração. Estou estremunhado, devo ter dormido muito. Levou as mãos aos olhos e esfregou-os. A luz incidia com força, aqui e ali reverberava. Ouviu murmúrios e fixou o olhar. Elas falavam mas não passavam de esboços difusos, figuras intermédias entre a inexistência e a vida. Tenho medo, disse ele de si para si. Fechou os olhos com força, como se suspendesse aquela hora, e voltou a abri-los. Elas olharam-no pela primeira vez. Eram agora figuras definidas, corpos de carne, um rubor maculava-lhes as faces. O que esperam elas de mim? Tornou a interrogar-se. A mais velha, enquanto a outra olhava o chão, levantou-se disse-lhe: vem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (252)

Henri Delacroix - Arbres au bord de la mer (1906/7)

sendas de verão
árvores junto ao mar
o fruto renasce

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O não expectável

Maria Helena Vieira da Silva - O acontecimento (1972-73)

Duas características marcam aquilo que chamamos acontecimento. Por um lado, o facto de ocorrer, de sobrevir; por outro, a sua natureza contingente, não necessária, meramente eventual. Isto faz do acontecimento, ao olhar comum, alguma coisa não essencial, aquilo que ocorre mas que pode não ocorrer. Esta leitura, todavia, é superficial, pois não tem em conta o carácter de epifania que todo o acontecimento traz consigo. Um acontecimento é a revelação de alguma coisa que, ao manifestar-se, rompe com o hábito e com aquilo que é expectável. O não expectável pode ser muito mais essencial do que aquilo que ocorre segundo as marcas da necessidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A necessidade de certificação

Marc Chagall - O mito de Orfeu (1977)

Podemos estabelecer uma conexão entre o mito de Orfeu e o destino da mulher de Lot. Alguma coisa terrível acontece quando se olha para trás. Mas o mito de Orfeu, com a perda de Eurídice, talvez nos permita perceber uma outra coisa. A mulher de Lot parece movida pela curiosidade. Orfeu é movido pela necessidade de certificação, de certeza. E quando procura essa certificação perde o alvo da sua viagem. A vida espiritual está para além da certeza e da certificação. Nela nada está dado, nada está garantido. O homem avança no meio do nevoeiro e nada pode esperar a não ser prosseguir o caminho.