quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Signo sinal 8. A leitura decisiva

Francisco Bores - A leitura (1934)

Uma das principais competências exigidas pela vida espiritual é a da leitura. Não propriamente a leitura de textos, mas a leitura de sinais e de símbolos. Na vida do espírito, mais importante do que a leitura dos diferentes discursos é a leitura daquilo que acontece, seja dentro do viandante seja no ambiente que o envolve. Porém a leitura decisiva será daquilo que não acontece. É preciso aprender a ler lá onde desapareceram todos os símbolos, os signos e os sinais. Ler o silêncio. Esta é a leitura mais difícil e a mais decisiva.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 7

Jorge Apperley - Desnudo (1945)

7. Nesse abandono

Nesse abandono
onde te guardo
na minha memória,
há restos de luz
que descem do rosto
e poisam nos seios
o fogo e a glória.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Raízes e errância

Vincent Van Gogh - Roots and Tree Trunks (1890)

Vivemos numa época em que o enraizamento dos homens perdeu sentido. Num tempo de mobilização contínua, a diáspora e o nomadismo tornaram-se a circunstância do homem. Trazem com eles a destruição da ligação com a terra e da possibilidade de enraizamento. E esta é uma das causas fundamentais do empobrecimento geral da vida espiritual do homem. Aquele que se quer elevar (no sentido de procurar o que é do alto) necessita de se enraizar fundo na terra. Na ausência desse enraizamento, resta a superfície onde os homens se arrastam, errantes, de um lado para o outro.

domingo, 18 de outubro de 2015

O cavalo de Tróia

Oscar Dominguez - O cavalo de Tróia (1947)

Gostamos sempre de nos identificar com os vencedores. Na guerra de Tróia, somos, na nossa imaginação, os companheiros de Ulisses, de Agamémnon e de Aquiles. Esta identificação, porém, oculta a nossa verdadeira situação espiritual. Presos a ilusões, perdido na errância, somos como os troianos que trazem para dentro de casa aquilo que os há-de derrotar. No caminho que cabe a cada um, o mais difícil é resistir à tentação de trazer para dentro de si o cavalo de Tróia de onde sairão os inimigos que nos aniquilarão na viagem.

sábado, 17 de outubro de 2015

O barco vazio

Abert Gleizes - Barcaza atracada en el muelle (1908)

Sento-me na margem, observo os barcos e fecho os olhos. Preso à terra, devaneio com o mar, com o rumorejo das águas no casco, o balancear do barco impelido pela ondulação. Sonho com o além mar, essas outras terras a que nunca irei. Tenho pavor das águas. Sirenes cortam a tarde e a azáfama das gentes do mar embala-me. Adormeço no molhe e tudo desaparece no fundo negro do sono. Quando acordo, noite dentro, a terra desapareceu. O lugar onde estava evaporou-se e à minha volta só há escuridão. Sinto-me balancear e compreendo, ao ouvir o marulhar das águas no casco, que estou no mar. Olho o céu e vejo as estrelas. Levanto-me e corro o barco. Está vazio. Só eu, o mar e as estrelas no fundo negro dos céus.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O chefe de orquestra

Paul Ackerman - A orquestra

O homem não é um ser unidimensional. Pelo contrário, é composto por múltiplas dimensões que, como os instrumentos de uma orquestra, precisam de ser concatenados. O trabalho de concatenação cabe ao chefe da orquestra, ao espírito. Uma parte da vida espiritual está ligada à descoberta do maestro e à sua preparação. A outra parte é o trabalho deste na transformação de uma cacofonia numa peça musical sublime.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Um súbito encontro

Thomas Hart Benton - Figure Study (1919-20)

O que esperam elas de mim? Pensou. Sentiu uma estranha opressão no peito e mastigou em seco. De onde vieram? Vim passear e, cansado, sentei-me aqui, à sombra. Terei dormido. Instantes, horas? Não sei. Ao acordar, senti uma presença. Uma presença indefinida, sem contornos, apenas um hálito, uma respiração. Estou estremunhado, devo ter dormido muito. Levou as mãos aos olhos e esfregou-os. A luz incidia com força, aqui e ali reverberava. Ouviu murmúrios e fixou o olhar. Elas falavam mas não passavam de esboços difusos, figuras intermédias entre a inexistência e a vida. Tenho medo, disse ele de si para si. Fechou os olhos com força, como se suspendesse aquela hora, e voltou a abri-los. Elas olharam-no pela primeira vez. Eram agora figuras definidas, corpos de carne, um rubor maculava-lhes as faces. O que esperam elas de mim? Tornou a interrogar-se. A mais velha, enquanto a outra olhava o chão, levantou-se disse-lhe: vem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (252)

Henri Delacroix - Arbres au bord de la mer (1906/7)

sendas de verão
árvores junto ao mar
o fruto renasce

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O não expectável

Maria Helena Vieira da Silva - O acontecimento (1972-73)

Duas características marcam aquilo que chamamos acontecimento. Por um lado, o facto de ocorrer, de sobrevir; por outro, a sua natureza contingente, não necessária, meramente eventual. Isto faz do acontecimento, ao olhar comum, alguma coisa não essencial, aquilo que ocorre mas que pode não ocorrer. Esta leitura, todavia, é superficial, pois não tem em conta o carácter de epifania que todo o acontecimento traz consigo. Um acontecimento é a revelação de alguma coisa que, ao manifestar-se, rompe com o hábito e com aquilo que é expectável. O não expectável pode ser muito mais essencial do que aquilo que ocorre segundo as marcas da necessidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A necessidade de certificação

Marc Chagall - O mito de Orfeu (1977)

Podemos estabelecer uma conexão entre o mito de Orfeu e o destino da mulher de Lot. Alguma coisa terrível acontece quando se olha para trás. Mas o mito de Orfeu, com a perda de Eurídice, talvez nos permita perceber uma outra coisa. A mulher de Lot parece movida pela curiosidade. Orfeu é movido pela necessidade de certificação, de certeza. E quando procura essa certificação perde o alvo da sua viagem. A vida espiritual está para além da certeza e da certificação. Nela nada está dado, nada está garantido. O homem avança no meio do nevoeiro e nada pode esperar a não ser prosseguir o caminho.