quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aprender a quietude

JCM - Time on space (2008)

Podemos pensar que a viagem espiritual é como um mergulho nas águas inóspitas do oceano. Isso, porém, é uma ilusão fundada no voluntarismo que tomou conta da nossa cultura. Na verdade, a viagem espiritual é antes um aprender a estar quieto e silencioso, um aprender a deixar que o espírito se derrame sobre si, como as águas do oceano se derramam sobre as velhas rochas, para que, lentamente, uma vida nova cubra a pedra rude com um verde belo e vigoroso.  

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Poemas do Viandante (508)

Jean François Millet - Nu reclinado

508. a noite em que tudo dorme

A noite em que tudo dorme
desce nos teus dedos.

Vem vagarosa e sublime
poisar sobre mim.

E eu oiço uma canção breve
na luz do teu rosto.

Assim embalado canto
e logo adormeço.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Um terrível fascínio

Daniel Vázquez Díaz - A fábrica adormecida (1920)

O mundo como fábrica. Nesta metáfora nós encontramos a apoteose de uma civilização baseada na pura acção. Melhor, numa acção degradada já em mera fabricação de artefactos para serem dados ao consumo. O acto de fabricar exerce sobre os homens um terrível fascínio. E é nesse fascínio que o homem aliena a sua natureza contemplativa, onde toda a acção é suspensa e o homem entrega-se à escuta da Voz que chamou por ele.

domingo, 17 de maio de 2015

Sobre vestígios

JCM - Vestígios (2014)

O homem pode encarar a vida de diversas formas. Há aqueles que julgam que o mais importante é deixar vestígios no mundo, como se este fosse o seu império. Outros há, contudo, que, a dado momento, descobrem a irrelevância do seu próprio vestígio. Tarde ou cedo ele será definitivamente apagado e esquecido. Resta-lhes preocupar-se com o vestígio que a vida no mundo deixa neles, aquilo em que ela os ajudou a tornar-se.

sábado, 16 de maio de 2015

O que se pode tornar visível

Romolo Romani - Imagem (1908)

Estamos de tal maneira habituados às nossas imagens precisas e nítidas que nunca nos questionamos se, nos primeiros tempos de vida, eram estas imagens precisas e nítidas que se apresentavam perante os nossos olhos. Muito provavelmente não. Uma dura mas inconsciente aprendizagem conduziu-nos à focalização do olhar. Vemos aquilo que aprendemos a ver. E se para lá destas imagens, que agora nos são visíveis, outras, talvez mais nítidas e precisas, estejam ocultas, estejam perdidas na invisibilidade a que nos condenamos pelo uso habitual dos sentidos? Esse é o trabalho do viandante, viajar de imagem em imagem, procurar no invisível aquilo que se pode tornar visível.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Raízes na terra

JCM - Símbolos, signos e sinais. Lisboa, Jardim Botânico, (2007)

Como a árvore, também o viandante deve lançar as suas raízes na terra. Só aquele que tem raízes fundas pode suportar as intempéries que o vento - aquele vento que sopra onde quer - traz consigo. Sem raízes na terra, como pode o homem olhar para o alto, contemplar os céus, e não ser arrastado na queda? Só aquele que desce pode encontrar a seiva que o fará subir.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Haikai do Viandante (232)

Nandor Mikola - In the Morning (1987)

desce sobre mim
a solidão da manhã
vida e luz sem fim

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A força do amanhecer

Max Pechstein - Dawn (1911)

O amanhecer é frequentemente usado - até à usura - para simbolizar o começo de algo novo. A persistência da sua força simbólica não deriva, contudo, da analogia entre o começo do novo dia e aquilo que na vida dos homens é tomado como novo. A força simbólica do amanhecer é muito mais profunda pois reside nas forças poderosas da natureza que se manifestam nessa hora e no impacto que essas forças têm sobre o corpo, a alma e o espírito dos homens.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Convite à passagem

JCM - Muros (Lugo), 2007

Aquilo que detém o corpo é impotente para deter o espírito. O obstáculo não é um limite mas uma provação que solicita a que o espírito, escorado na sua pobreza e na abertura ao que está para além dele, o ultrapasse e se ultrapasse. O muro não é o fim da viagem mas um convite à passagem.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Aprender a tactear

Carmen Dominguez - Con-tacto

Talvez a aprendizagem sensorial mais importante para a viagem espiritual seja a que se liga ao tacto. Na visão e na audição, por exemplo, o homem é passivo, recebe as imagens que o exterior lhe envia. No tacto há uma dimensão activa, na qual o sujeito procura os objectos a tocar. Ora como toda a aventura espiritual é um estabelecer de relação, estabelecer contacto com aquilo que nos transcende, aprender a tactear não será das aprendizagens de menor importância.