quinta-feira, 5 de março de 2015

Poemas do Viandante (499)

Pierre-Albert Marquet - Pino en Argel (1932)

499. o ondular dos pinheiros

o ondular dos pinheiros
dentro do silêncio

o bálsamo das tuas mãos
sobre a minha pele

são a casa onde habito
água luz memória

quarta-feira, 4 de março de 2015

O tigre e o caçador

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Primeiro, o viandante pensa que o mais importante é enfrentar o tigre, caçá-lo e assim domar a natureza. Depois, convence-se de que o tigre não está fora mas dentro de si, que é aí, na natureza íntima, que é preciso matá-lo. Por fim, descobre que a única coisa a fazer é cavalgar o tigre, dançar com aquilo que o envolve e esquecer a caça, pois o tigre e o caçador são um e o mesmo.

terça-feira, 3 de março de 2015

Sobre a água

Joaquín Mir - Aguas de Moguda

A água serve como metáfora central na caracterização da contemporaneidade feita pelo sociólogo Zygmunt Bauman. De certa forma, esta metáfora não é apenas descritiva. Contém uma avaliação negativa da fluidez do mundo. Contudo, antes de ser metáfora, a água é símbolo e, como tal, traz em si uma ambiguidade essencial. Se pode ser vista negativamente como destruição dos laços sólidos que ligam os homens, também pode ser vista como a liberdade do espírito que não se apega a nenhuma configuração relativa, submergindo-as e libertando-se, encontrando sempre e sempre novos caminhos.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A natureza da viagem

Lucien Coutaud - Souvenir d'un voyage (1963)

O Senhor disse a Abraão: Deixa a tua terra, a tua família, a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar. (Génesis, 12:1)

Qual a natureza da viagem que toda a vida é ou deve ser? Em primeiro lugar, é um abandono, um corte, a ruptura com o passado, com o já instituído. Esvaziar-se de tudo o que está dado. Depois, não saber para onde se vai, não haver, ao partir, qualquer indicação do destino. Apenas uma voz fala e a promessa que ela institui é a única bússola do viandante. A terra que o espera não depende dele, da sua vontade ou inteligência. Depende da promessa escutada e da revelação que o aguarda. Esta é a viagem, o resto é turismo.

domingo, 1 de março de 2015

Haikai do Viandante (223)

Pier Luigi Lavagnino - Memória (1989)

estranha memória
a que guarda entre cores
o anjo da história

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Quebrar a pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

A viagem é como um quebrar a pedra, um rasgar da matéria da vida. Não para as desfigurar ou aniquilar, mas para libertar o espírito que nelas se escondem e, desse modo, dar uma outra figura à existência.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Iluminar a luz

Edward Hopper - Sun in an Empty Room (1963)

A modernidade trouxe consigo a ideia de que a razão continha uma luz própria que deveria ser derramada sobre o mundo para o ordenar, melhorar, refazer. Hoje, que o cansaço de ser moderno se tornou patente em todos os lugares, aquilo que o viandante pretende na sua viagem é deitar fora o desperdício com que a razão lhe ocupou o espírito, para que este, vazio, possa receber uma outra luz, aquela que poderá iluminar a luz da própria razão.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Da lentidão da sabedoria

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

A sabedoria, se compreendida como sageza e não erudição, exige a demora. Só a lentidão tem o poder de tornar concreta essa sabedoria. O nosso tempo, todavia, não aprecia a lentidão. Por isso, tudo nele é velocidade e abstracção.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O caminho da sabedoria

Charles Lapicque - L’invitation à la sagesse (1961)

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. (Mateus, 5:3)

Tanto na tradição grega como na judaico-cristã, o caminho da sabedoria nasce do exercício de despojamento do próprio espírito. Sócrates clamava que nada sabia e que essa era a mais elevada sabedoria. Como Cristo, também ele era pobre em espírito. Nicolau de Cusa, no século XV, sintetizou as duas tradições no conceito de douta ignorância. Esta pobreza, tida como ignorância, nasce do desfazer das ilusões que a erudição traz consigo, mas, mais do que isso, ela é a condição de possibilidade para que o viandante possa responder ao apelo da sabedoria.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A noite e a luz

Benvenuto Benvenuti - Tramonto sul mare (1906)

Voltemos ao símbolo e à sua ambiguidade constitutiva. O pôr-do-sol simboliza muitas vezes o declínio, a anunciação do fim, o triunfo das trevas sobre a luz. Mas pode também significar algo completamente diferente. Pode significar a entrada no reino do mistério, a abertura para uma luz que não a luz que permite a visão sensível. Não por acaso, João escreveu: E a luz resplandeceu nas trevas. (Jo 1:5)