sábado, 25 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (210)

JCM - Pele (2007)

também a árvore
subitamente se despe
o verão espreita-a

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (481)

Theo van Rysselberghe - Femme au Pegnoir Rose (1910)

481. envolver-te com o lençol da noite

envolver-te com o lençol da noite
e ouvir uma palavra

cobrir-te com o desejo do teu desejo
e ver as horas passar

sussurrar-te uma canção esquecida
e aguardar a morte

entregar-te o silêncio do meu corpo
e nada esperar

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Estranhos mapas

Sonia Delaunay - Broderie Feuillages (1909)

Estranhos mapas traz o viandante consigo. Se projectados no mundo, dão a ilusão de uma tapeçaria composta de folhas que o Outono arrancou das árvores e, pelo capricho do vento, ordenou em territórios contíguos. Mas o viandante há muito que descobriu que os mapas que vê para se orientar na viagem são a projecção na vida daqueles com que chegou ao mundo. Tudo aquilo que vê é ainda aquilo que ele traz dentro de sim.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Romper a névoa

JCM - Mitologias (numa manhã de nevoeiro) (2014)

Romper a névoa e ansiar a luz que está para além dela.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (209)

JCM - A night at opera (troncos no jardim botânico) (2008)

no seio do jardim
estranhas formas de vida
esperam por mim

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Acumular e abandonar

Rembrandt - Parábola do homem rico (1627)

E o que acumulaste para quem será? (Lucas 12:20)

Na parábola do homem rico, a qual, como todas as outras, gerou múltiplas interpretações, a pergunta que fica sem resposta - e o que acumulaste para quem será? - é central. Central por ficar em aberto, mas por outro motivo. O tom de censura é nítido e dirige-se muito para a prática da acumulação que não se limita, longe disso, aos bens materiais. Qualquer acumulação, inclusive a de bens espirituais, está aqui posta em cheque. A vida do espírito é o contrário da vida material. A essência desta é a acumulação. Na vida do espírito, a essência é o contínuo abandono, inclusive das ilusões espirituais. Na vida espiritual não se trata de ter, de ter muitas experiências espirituais, de fazer muitas leituras ou de se elevar à erudição e tornar-se um farol da cultura. Trata-se apenas de se despojar da ganga que a vida e a ilusão depositam no espírito do viandante para lhe dificultar a continuação da viagem. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa.

domingo, 19 de outubro de 2014

Paisagens ingénuas

Fernando Botero - Paisagem (2000)

A viagem também se compõe de paisagens ingénuas ou que os olhos do Viandante aprenderam a ver na sua ingenuidade essencial. A experiência de seguir na via, a experiência de responder à voz que nos chama, essas experiências acabam por ensinar a ver, por detrás da complexidade com que o mundo se cobre, a realidade simples e ingénua que agora se dá àquele que, tendo amadurecido, se tornou criança e ri com as peripécias do caminho.

sábado, 18 de outubro de 2014

Derrubar o muro

JCM - Distopia (The Wall) (2007)

O pior na viagem são os muros. Não são apenas divisórias, linhas de fronteira e de fractura de territórios. São formas de oclusão, de fechamento, de incapacidade de perceber os outros. E quem não é capaz de ouvir os outros será capaz de ouvir esse totalmente Outro que fala para lá de todos os muros? Será capaz de discernir o seu chamamento? A viagem é também um derrubar de muros, uma purificação do espaço, um refazer de geografias. Para quê? Para que possamos escutar o outro e na voz desse outro escutar a voz que chama dentro de mim.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (480)

Ferdinand Hodler - Tristeza (1892)

480. ouvir-te na terra triste

ouvir-te na terra triste
da volúpia

e adormecer nos braços
da noite

como se aguardasse
num sonho

a água da tua voz no calor
do verão

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma composição

Alexander Mikhailovich - Composição (1943)

Muitas vezes o viandante julga perder-se no caminho. Entra numa senda, depois noutra e ainda noutra. O espírito é tomado pelo pânico que todo o labirinto traz consigo. Tudo isso não passa, porém, de uma questão de perspectiva. Vistos de perto, esses caminhos que se cruzam e bifurcam parecem, de facto, constituir um labirinto, mas se o viandante se dispõe a subir a montanha tudo se apazigua e, com o progresso da subida, começa a ganhar sentido, como se fosse uma deliberada composição.