quinta-feira, 10 de julho de 2014

Poemas do Viandante (463)

Jean Dieuzaide - Lisbon (1954)

463. mistério de sombra e cal

mistério de sombra e cal
que a tudo povoa

mar e água restos de sal
neste sol que voa

símbolo signo sinal
a luz de lisboa

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Espelho de água

Imogen Cunningham - Eiko’s Hands (1971)

Na água pura reflecte-se, como num espelho, a leveza das mãos, o ócio que nelas nasce e o trabalho que delas se espera. Nesse espelho de água inscreve-se o caminho que aguarda o viandante, um caminho secreto e transparente, fluido e sólido. Assim se apresenta o espírito quando chama o homem.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Da natureza da esperança

Bill Perlmutter - Nazaré, Portugal (1956)

Há sempre esse momento de espera, uma suspensão para que os olhos se abram para a desmedida do horizonte e tracem novas rotas ou encontrem aquilo que, tão esperançosamente, aguardam. A esperança não é outras coisa senão o olhar que se projecta para o caminho que nos solicita ou para aquilo que nos aguarda.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Haikai do Viandante (195)


uma luz na tarde
rasga a cal do horizonte
um portal que se abre

domingo, 6 de julho de 2014

A pele rugosa



Se a pele se torna rugosa, então sabemos que o ambiente é adverso. Se o viandante, porém, confunde uma reacção de defesa com a sua própria realidade, não é apenas o ambiente que se lhe tornou estranho. Também ele se alienou de si mesmo, perdeu a elasticidade, e perdeu-se a si no caminho. A rugosidade da pele não é o símbolo de uma demarcação, mas o sinal de uma aventura e o lugar onde o eu e o outro se encontram.

sábado, 5 de julho de 2014

Naturezas mortas

Horst P. Horst - Classical Still Life - circle, disk, bust (1937)

Nunca pensamos suficientemente o sentido da expressão natureza morta. Não se trata apenas da representação de objectos inanimados. Neles capta-se, neste nosso mundo tão dado à acção, ao movimento e à mobilização, um repouso essencial. É como se as naturezas mortas fossem um sinal que nos dissesse que, para além das aparências móveis tocadas pela inquietação, a realidade permanece imóvel, entregue à mais pura quietude contemplativa.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O caminho da montanha

Eric Vali - Himalaias

Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque eu não vim chamar os justos, mas os pecadores. (Mateus, 9:13)

O caminho da montanha. Não será o sacrifício o caminho para o cume? Não será ele que permite ao homem viver na montanha, na atmosfera mais rarefeita e opressiva? A resposta que Mateus transmite é, surpreendentemente, ambígua. Apresenta-se, numa leitura imediata, como disjuntiva. Não o sacrifício, mas a misericórdia. Essa ambiguidade é ainda intensificada pela ideia de que os chamadas são os pecadores, os errantes, os perdidos no caminho, e não os justos. Estas duas disjunções são, contudo, aparentes. A misericórdia não anula o sacrifício, mas amplia-o. Ele está presente no acto de compaixão. A misericórdia é a partilha activa de uma paixão, de um sofrimento que atinge o outro. O que está em jogo não é a aniquilação do sacrifício, mas do ritualismo sacrificial, e a sua substituição pelo sacro ofício da partilha. E esse outro é o homem comum, perdido, errante, aquele que falha o alvo. Mas, pela misericórdia, pela compaixão, o justo descobre-se na sua realidade de homem também ele perdido no caminho. Juntamente com o outro, ele pode então escutar o chamamento. Nem a misericórdia se opõe ao sacrifício, nem o justo é diferente do pecador.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Passagem para o infinito

Jacqueline Mirsadeghi - Passages vers l’infini

Haverá uma passagem para o infinito? A resposta terá de ser sempre ambígua, um sim e um não. Sim, porque qualquer ponto pode funcionar como passagem para o infinito. Não, porque o infinito está já presente em qualquer ponto. A finitude não é outra coisa senão a manifestação do infinito perante os olhos de seres finitos que transportam em si o infinito.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Da vida do espírito

Ralph Gibson - Untitled, (from The Somnambulist) (1970)

Em todos os símbolos há uma ambiguidade essencial, como se o símbolo possuísse uma carga semântica tal que simbolizasse, ao mesmo tempo, coisas contrárias. A porta é um dos símbolos mais ricos do imaginário dos homens. Nela existe também essa carga simbólica contraditória. É o símbolo da saída e também o da entrada. A razão analítica apresenta entrada e saída como contrárias, mas a experiência imemorial dos homens diz-lhes que toda a saída é uma entrada e toda a entrada implica uma saída. Ora a viagem do homem é o contínuo deslocar-se nessas encruzilhadas de entradas e de saídas, como se a viagem do espírito fosse infinita. Nunca se entra num patamar que não seja para dele sair. Nunca se sai de outro patamar que não seja para entrar no próximo.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Poemas do Viandante (462)

Cecil Beaton - Three models dressed in Ladurée macaron colours (1948)

462. como tocar-te agora

como tocar-te agora
que o vento sopra

como deixar-me levar
no rumor da noite

como atear o fogo
no cansado peito

basta que o teu olhar chegue
e a sua luz me açoite