sexta-feira, 20 de junho de 2014

O outro lado

Henri Fox Talbot - The Open Door (1844)

Nunca dedicamos a atenção devida à forma metafísica como estruturamos a vida quotidiana. Em todo o lado, o homem recria as transcendências, semeando os espaços com linhas divisórias que cindem a continuidade espacial em lugares diferenciados, o aqui e o além, o dentro e o fora, o imanente e o transcendente. Uma porta não é uma mera porta, mas o símbolo de uma secreta transposição que conduz o homem da imanência à transcendência. Passar a porta e ir ao outro lado é, também, ir a um lado outro, transcender-se, sair de si em direcção ao Outro, ao totalmente Outro.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Haikai do Viandante (193)


mistério sem fundo
sombria clareira da terra
do caos vem o mundo

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Silenciar as boas acções

Umberto Boccioni - Dynamic Decomposition (1913)

Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo. (Mateus 6: 3-4)

O que nos leva a realizar uma acção boa? Se meditarmos as palavras de Mateus, deparamo-nos, de imediato, com uma multiplicidade de intenções, as quais estão longe de se acordarem entre si. O gesto com que intervimos parece ligado tanto a motivações altruístas - o bem do outro - como a razões egoístas - a nossa necessidade de recompensa e reconhecimento social. Talvez esta dicotomia seja inultrapassável, apesar da injunção do imperativo categórico kantiano. Se essa é a nossa condição, o melhor será aprender a decomposição dinâmica das nossas motivações e, assim conscientes, realizar a sua purgação. Mas como purificar essas intenções? Pelo exercício contumaz do silêncio. Manter em segredo o bem que realizamos até que aprendamos a desprender-nos do fruto da acção. 

terça-feira, 17 de junho de 2014

O destino da viagem

Diane Arbus - Patriotic young man with a flag, N.Y.C. (1967)

Qual o destino da viagem? O retorno à pátria, mas a uma pátria onde não há bandeiras nem o exacerbado orgulho de excluir o outro. Não se trata de voltar a Ítaca ou a Argos depois de vencer os troianos. Trata-se apenas de voltar para onde nunca se esteve, onde a nossa ausência espera por nós.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Tornar-se outra coisa

Werner Bischof - La bailarina Anjali Hora, Bombay, India (1951)

Uma das temáticas mais misteriosas da vida do espírito é a metanóia. Por norma, esse vocábulo de origem grega é tido como sinónimo de conversão. Conversão espiritual, uma mudança de ponto de vista sobre uma dada realidade. O exemplo mais famoso é o da conversão de Paulo de Tarso. Mas a conversão não diz respeito apenas ao espírito. Não se trata de mudar de ponto de vista, nem sequer de mudar de estilo de vida. Diz respeito a todo o ser, ao corpo, às entranhas mais recônditas, como se tudo, mas tudo mesmo, mudasse num homem e este se tornasse uma outra coisa.

domingo, 15 de junho de 2014

Poemas do Viandante (460)

Loomis Dean - British chorus girl exercising in her apartment (1958)

460. devagar tão devagar

devagar tão devagar
no fundo do tempo

oiço uma voz cantar
a dor e o lamento

vejo um corpo flutuar
no esquecimento

devagar tão devagar
era outro o tempo

sábado, 14 de junho de 2014

O espírito e a guerra

Arnold Böcklin - A Guerra (1896)

É preferível que não nos lamentemos da sujeição a que nos submete uma miséria como a guerra e não pretendamos que ela impeça a entrega à vida do espírito; pelo contrário, é nela que a vida do espírito toma toda a sua força e todo o seu ardor. (Louis Lavelle, Carnets de Guerre 1915-1918)

Com estas palavras, o filósofo francês Louis Lavelle, inicia os seus Carnets de Guerre 1915-1918. A vida espiritual não pertence apenas ao puro domínio da contemplação no deserto ou na vida cenobítica. Ali, onde a vida se manifesta no que tem de mais trágico e aterrador, também é o lugar do espírito. O trágico da existência  faz parte da viagem espiritual. Onde deveria o espírito manifestar-se com mais força e com mais ardor se não no lugar da maior tormenta? Não era Paulo que dizia: onde abunda o pecado, superabunda a Graça? Não é a guerra a superabundância do erro e da errância, isto é, do pecado?

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Olhar pela janela

Peter Turnley - Novokuznetsk, Russia (1991)

O pior que poderá acontecer é ficar a olhar a vida pela janela. Não porque haja uma diferença substancial entre o fora e o dentro, mas porque se transforma o viandante em mero voyeur, estranho a si e ao que, em si, o chamou à existência.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Haikai do Viandante (192)

Bert Hardy - Portuguese rice harvest (s/d)

esta nostalgia
que cresce no sol da tarde
na força da luz

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Dispositivos de cegueira

Loomis Dean - Las Vegas (1955)

Há uma luz que, por natureza, nos cega. Há outra que é pensada e produzida para nos cegar, um dispositivo de cegueira. A luz do espírito - à imagem da luz solar - sempre foi vista como excessiva para o homem, necessitando este de uma intermediação para lidar com ela. Os dispositivos de cegueira, porém, são de outra ordem. Apresentam uma natureza feérica e são suportáveis pelos seres humanos. Por trás deles esconde-se, todavia, um mandamento que nos ordena, sem remissão, que fechemos os olhos e nos entreguemos às trevas exteriores, onde, errantes, nos esquecemos de nós mesmos.