sexta-feira, 21 de março de 2014

Haikai do Viandante (180)

Joan Hernández Pijoan - Paisagem com um carvalho (1974)

perdido na paisagem
ergue-se o velho carvalho
sombra e imagem

quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar da solidão

Robert Doisneau - Rue des Ursins - Paris 4e (1945)

Somos demasiado sensíveis à definição aristotélica do homem como animal social. Não percebemos, todavia, que a verdade dessa definição oculta uma outra realidade humana, a sua solidão. Nesta não devemos ver apenas o abandono, mas a forma como o homem pode realizar tudo o que lhe é essencial. Só na solidão o homem é, na verdade, capaz de escutar a voz do outro. A própria sociabilidade humana está escorada na solidão do homem.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Suspensão

Sergio Larrain - Chiloé Island, Chile (1959)

O difícil lugar do homem sobre a terra. Nem solidamente enraizado, nem capaz para, como uma ave, voar nos altos. Suspenso. O seu lugar é a suspensão. E esta é o sítio onde se cruza o medo da queda e o desejo dos céus.

terça-feira, 18 de março de 2014

Que assim seja

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

Que resta ao homem mergulhado no abismo? Não seria ridículo interrogar-se sobre a sua situação, especular sobre os fundos abissais ou as possibilidades de chegar a terra segura? Sim, tudo isso seria ridículo e inútil. Se o abismo o convocou e se ele seguiu a intimação, a única resposta possível é: que assim seja.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O desabrigo dos sem-abrigo

Oscar Gustave Rejlander - Homeless (1860)

A condição de sem-abrigo não é acidental, não é o resultado dum azar na vida ou duma deficiente mobilização das faculdades racionais do homem. Sem-abrigo é a condição do homem no mundo, por maior que seja o palácio onde vive, por maiores que sejam os cuidados e a segurança mobilizados. Estar vivo é estar desabrigado, exposto à arbitrariedade dos elementos naturais, aos caprichos da sociedade, ao jogo da sorte, em suma, à surpresa da vida. Estar desabrigado, porém, pode ser também um acto de se tornar disponível para ouvir aquilo que, no fundo do homem, chama por ele.

domingo, 16 de março de 2014

De degrau em degrau

Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

Um dia ouvi que uma certa tribo de esquimós, cujo nome já não recordo, tinha mais de sessenta palavras diferentes para designar o branco. Viviam numa paisagem onde, praticamente, só existia a cor branca e tiveram necessidade de apurar a linguagem para especificar as diferenciações que lhes permitiam viver. Também o viandante tem necessidade de introduzir diferenciações na paisagem por onde caminha. Fá-lo como se criasse os degraus duma escada infinita, onde cada degrau impele o espírito para um novo e já transitório degrau.

sábado, 15 de março de 2014

Esquecer-se de si

Robert Capa - FRANCE. 1944. Normandy. Omaha Beach. The first wave of American troops lands at dawn.

O mais difícil da viagem não é o caminhar, o mais difícil é desprender-se de si ao caminhar. Seja para onde for que o viandante se volte, o ego - o seu pequeno ego - apresenta-se como o herói, o falso herói, duma gesta imaginária. Sim, sabemos que o essencial é cumprir a injunção faça-se a Tua vontade, mas dentro de nós grita mais alto a vontade própria. E quanto mais o viandante quer que ela morra e ceda os seus direitos, mais ela luta por se afirmar e conquistar território. O mais difícil é aprender a morrer para si mesmo, esquecer-se de si.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

Amedeo Modigliani - Sol reflectido na água (1905)

452. Este sol que traça sombra

Este sol que traça sombra
na copa das árvores.

Estas árvores perdidas
na boca da tarde.

Esta tarde incendiada
no fundo de ti.

E tudo agora renasce,
Sombra e sol sem fim.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Escrita e caminho

Aurelie Nemours - Écriture (1975-1995)

A escrita não é a mera fixação duma comunicação oral. Se o fosse, a sua função seria meramente instrumental. Na escrita - ou na Escritura - inscreve-se uma indicação. Ela não indica aquilo que está para trás, mas antes o caminho que o viandante deverá seguir, aquilo que está além e o aguarda.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Na sombra do esquecimento

Sol LeWitt - Scribbles on color (1990)

Recordemos o fundamental. As nossas pegadas no mundo não passam de pequenos rabiscos feitos na areia duma praia com mar tormentoso. Convencemo-nos de que somos os heróis duma gesta gloriosa, mas mal inscrevemos no mundo o tracejado da nossa acção, logo a água e o vento conspiram e nos devolvem para a sombra silenciosa do esquecimento. Chegados aí, estamos em nossa casa.