sábado, 8 de fevereiro de 2014

Poemas do Viandante (449)

Caspar David Friedrich - Evening (1824)

449. Em cada palavra dita

Em cada palavra dita
quando o dia cai,

em cada palavra escrita
no fulgor da noite,

há um temor que se avista:
Vem e logo vai.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O tempo perdido

Manuel Ruiz Pipó - Em busca do tempo perdido

O título da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, evoca duas ideias sobre o tempo. O tempo perdido acorda o desejo de um tempo a reencontrar, de um retorno a esse tempo de que nos separámos. Evoca também o tempo desperdiçado, de um tempo que se perdeu por dissipação da vida. Mas tanto a separação como a dissipação existencial são fenómenos exteriores à temporalidade. Devemos pensar na expressão tempo perdido como uma expressão pleonástica, pois todo o tempo é perdição, todo o tempo é tempo perdido.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (174)

Georgia O'keeffe - Abstracção (1920)

secreto segredo
desdobrado entre cortinas
aberto p'lo medo

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

No porto de abrigo

Jean Édouard Vuillard - O porto de Honfleur (1919)

Não há para o viandante porto que seja o fim da viagem. Por mais que deseje recolher a terra firme e aí estabelecer o seu domínio, o viandante deve, após breves instantes de descanso em abrigo seguro, voltar a zarpar. Não lhe cabe instituir fronteiras nem fundar um reino. Fronteiras são irrisão e o reino a que pertence não é deste mundo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Solidão e labirinto

José Iranzo Almonacid - Isolamento 71 (1971)

A solidão pode significar a perda num labirinto? Pode, claro. Muitos perdem-se nela e devem evitá-la custe o que custar. Para alguns, porém, a solidão é o caminho para fora do labirinto, como se ela fosse o fio de Ariadne que conduz o viandante à liberdade. Solidão e silêncio.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Construir a sua gramática

Paul Serusier -  La Grammaire (1892)

Também a experiência do espírito tem a sua gramática. Não uma gramática universal ou uma gramática normativa, mas uma gramática que, a cada passo da viagem, inventa a sua morfologia e descobre a sua sintaxe. Esta gramática estrutura uma linguagem singular e irrepetível. Quem quiser fazer-se ao caminho terá de se dispor a construir a gramática da sua própria viagem.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A viagem e o ócio

Edward Burne Jones - Peregrino à porta da ociosidade (1875-1893)

Um dos grandes perigos que assaltam o viandante nasce da confusão entre a viagem e o ócio. A viagem não é uma excursão turística, o deambular onde preenchemos a mente ociosa com a alteridade do desconhecido. A viagem é o exercício da pobreza de espírito, a prática do despojamento, a ascese que leva ao esquecimento de si. Não há porta que seja fim, pois todo o tempo é tempo de milícia.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Liberdade condicional

Ivonne Sánchez Barea - Liberdade condicional (2000)

De certa maneira, o que relativiza já a afirmação, a velha discussão sobre se o homem possui livre-arbítrio ou é completamente determinado na sua acção é ociosa. Talvez seja mais sensato pensar o homem sob a figura da liberdade condicional. Como a liberdade condicional de um condenado, também a liberdade condicional de cada homem pode, a qualquer instante, ser revogada. Não por um qualquer juiz exterior, mas por si mesmo, pela submissão àquilo que, pelo ardil do desejo, o prende. Se a nossa liberdade é sempre condicional, o caminho do homem na Terra é um infinito processo de libertação.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (448)

Lisa Milroy - Sky (1997-98)

448. Agora Janeiro parte

Agora Janeiro parte
Cinza e violeta.

O tempo transfigurado
Inscreve nos céus

Ramos de nuvens vermelhas,
Um súbito adeus.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (447)

Caspar David Friedrich - Evening on the Baltic Sea (1826)

447. O inverno que anoitece

O inverno que anoitece
na sombra da tarde.

O dia que passa e se esquece
sem ninguém que o guarde.

O coração que adormece
quando tudo arde.