quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Do sentimento de harmonia

Henri Matisse - Harmonia em vermelho (1908)

Facilmente, o espírito se deixa enredar num equívoco sentimento de saudade de um tempo em que, na vida, reinava a harmonia. Essa harmonia, contudo, nunca existiu, não passava do mero desconhecimento daquilo que já nos cindia e dilacerava. A desordem, a desproporção, a assimetria são a nossa condição originária. A harmonia é o sintoma de um cansaço que a vida inscreve em cada um de nós.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Da realização do real

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Um estranho equívoco apoderou-se da ideia de contemplação. Pensa-se que é uma alienação do real, uma absorção do ego em si mesmo ou em algum objecto que o fascina e que, nesse fascínio, não é mais do que a projecção desse ego. A contemplação, porém, pouco tem a ver com os desvarios do ego. Contemplar é o encontro de duas presenças que, nesse instante, se tornam numa pura realidade. Não é uma alienação, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma realização. Na contemplação, a realidade realiza-se, torna-se efectiva, torna-se real.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (172)

Piet Mondrian - Composition in Blue, Grey and Pink (1913)

azul cinza e rosas
desenham pela planície
ruas misteriosas

domingo, 19 de janeiro de 2014

Do caminho rochoso

David Teniers the Younger - Landscape with Rocks

Se o deserto é o lugar da tentação, as paisagens rochosas convocam o viandante à elevação, à ultrapassagem. O monotonia da identidade - essa aparência de imutabilidade que o deserto faz nascer - tenta aquele que por ali se perde. O mundo rochoso e escarpado desafia o caminhante a cada instante, propõe-lhe novos e novos enigmas, esmaga-o com a inúmera diferenciação de tudo o que existe. Cada diferença na paisagem é uma provação. Caminhar é, então, vencer cada uma das diferenças que a paisagem traz e elevar-se ao lugar onde as pode contemplar na sua invencível diferenciação.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Anunciar e aproximar

Rafael Barradas - Anunciação (1928)

Em toda a anunciação há um dar a conhecer. Neste dar a conhecer encontramos um acto de partilha do conhecimento, um exercício de aproximação entre o anunciador e aquele que escuta. Este exercício de aproximação, porém, não basta para tornar o outro num próximo. É preciso que o outro se entregue activamente ao acto da escuta, o que inclui a escuta crítica, que se aproxima e se mantenha nessa proximidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O caminho na noite

Lucio Fontana - Ambiente espacial e luz negra (1948-49)

É nos dias em que a luz se tinge de negro, em que a escura noite desce sobre os sentidos e o coração, que o espaço se abre e intima o viandante a prosseguir a viagem. Cego, escuta o rumor e ouve o vento. O caminho é aquele que ele próprio, no espaço sem fim, desenha com cada um dos seus passos. A noite também é tempo de viagem.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (171)


Serena e cansada
abre-se nesta manhã
a pele rasgada.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A cidade abandonada

Fernand Khnopff - A cidade abandonada (1904)

Ressoa na ideia de cidade abandonada algo tão cativante que o viandante fica fascinado e incapaz de lhe medir o perigo ou de lhe analisar o sentido. Vazia, a cidade torna-se o lugar de todos os possíveis, a esperança de todas as mitologias, o sítio onde se escondem os milagres. O viandante, ao longe, olha-a e é a si que se vê no abandono que a viagem lhe traz.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O homem livre

Ignacio Iturria - Armário genealógico (1998)

Todos transportamos o peso do passado. Nobres ou plebeus, os homens são verdadeiros armários genealógicos, de onde salta o passado para nos assombrar ou consolar, para nos oprimir ou incendiar o orgulho de casta. O homem livre, porém, deixou a árvore genealógica e, separado das raízes, é uma semente que vai onde o vento a levar. Não tem pai nem mãe, não tem genealogia.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Uma flor esquiva

Agnes Martin - Flor al viento (1963)

Há quem pense que um tratado sobre a vida ensinará a viver. Socorridos pela razão teórica, amparados na geometria dos argumentos, os homens tornar-se-iam sábios e prudentes. A vida, porém, é uma flor esquiva que ama a incerteza e que medra no caos e no desconcerto. Pega na razão e rasga cada um dos seus tratados. Senta-se e espera que o vento sopre.