quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sobre a festa

Raoul Dufy - Dia de festa (1906)

Perdemos o sentido da festa. Esta perda deve-se à banalização daquilo que deveria ser do âmbito do excepcional. Pode-se dizer, como Walter Benjamin o disse da arte, que a festa perdeu a aura. Perder a aura significa que se dessacralizou e se desligou daquilo que, no fundo do ser humano, a ligava ao essencial. O que procura o viandante? Recuperar o sentido último e decisivo da festa. Significará isso que a festividade deva ser remetida para certos e escassos dias do calendário? Também não. Isso é já o início da degradação. Recuperar o sentido último e decisivo da festa significa tornar todos os dias festivos. Mas não é isso banalizar a festa? Não, se cada dia for vivido com um dia de excepção, um dia em que o espírito se abre ao essencial e ao decisivo. O que causa a banalização da festa, a sua perda de aura, não é a multiplicação das suas ocorrências, mas o vazio com que nos entregamos a ela.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Haikai do Viandante (169)


Impérios de musgo
escorrem pela fria pedra.
Seda e aço na terra.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O fascínio das catedrais

Albert Gleizes - Catedral (1912)

Pergunto-me muitas vezes o que motivará o poderoso fascínio que as catedrais exercem sobre o espírito. Não será uma motivação religiosa de carácter cultual ou de natureza estético-arquitectónica. Tudo isso, sendo importante, suporta uma outra coisa. Suporta uma imagem de imobilidade que se dirige ao espírito através da densidade da pedra. Para o viandante, a catedral simboliza, por instantes, o fim do caminho. Não daquele que o levou até ela, pois esse será, passada a imersão do espírito na imobilidade ali simbolizada, retomado, mas do caminho que conduz ao centro onde todos os caminhos se reúnem e dissolvem.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Tirar o véu

Markus Luepertz - Apocalipse. Ditirâmbico (1972)

O uso da comum linguagem tem, muitas vezes, um efeito inusitado sobre o sentido das próprias palavras. Tomemos o exemplo do termo apocalipse. Literalmente, o termo significa tirar o véu, isto é, revelar ou desocultar o que está oculto. O  uso religioso da palavra, a partir do conteúdo do Apocalipse de João, permitiu que, com o correr dos tempos, o termo viesse a significar fim do mundo. A palavra apocalíptico é usada para designar um estado catastrófico, o fim de alguma coisa, onde, de alguma forma, se prefigura o fim do mundo. 

Há, todavia, uma efectiva e inesperada conexão entre a ideia de revelação e a de fim. Desocultar ou revelar é um processo de acesso à verdade. Todo o apocalipse é a manifestação da verdade. É esta manifestação que conduz ao fim. Não ao fim do mundo, mas ao fim da forma como vemos o mundo enquanto a verdade permanece encoberta por um véu. Todo o apocalipse é um processo que traz consigo a conversão do olhar, de um olhar preso nas aparências para um olhar que acede ao que deixou de estar oculto e se revelou na sua verdade.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (441)

Jesús de Perceval - Nu (1960)

441. Nos dias em que o vento declina

Nos dias em que o vento declina
e uma sombra toma conta do rosto,
a noite chega envolta de névoa
e cai-te sediciosa sobre o corpo.

A vida envelhece tocada pelo frio
e da casa restam os dias caídos,
uma velha promessa por cumprir,
o coração ressequido pelo desejo.

Já não há como conjurar o terrível
e erguer da terra o que tombou.
Olho-te no engano do espelho
e deixo a minha mão poisar na tua.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Infância e poesia

Manuel Moral - Coche de mi infancia (1978)

Um dos lugares comuns, quando se fala sobre poesia ou sobre determinada obra poética, é o de ela ser uma espécie de retorno ou de visita ao lugar encantado da infância. Isto significaria que essa infância se constituiria como a fonte de uma mitologia privada, a qual se manifestaria na simbologia e na metafórica da obra. Tudo isto, porém, não passa de um equívoco. Se alguma infância é importante na obra poética, essa não é aquela que ficou para trás na história pessoal do poeta, mas a que está para vir, a que se constitui como horizonte a alcançar. Escrever como uma criança, como Picasso falava em pintar como uma criança. Não como uma criança tal como ela é, mas como uma criança enquanto símbolo da simplicidade, da inocência e da autenticidade. Também aqui estamos num território equívoco. Nem as crianças são simples, inocentes e autênticas, nem a simplicidade, a inocência e a autenticidade poéticas são frutos da espontaneidade natural que o senso comum associa à infância. Pelo contrário, são artifício, o mais puro e refinado artifício.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Direitos alfandegários

Paul Signac - Sobre Saint-Tropez, o caminho da Alfândega (1905)

Também nesta viagem terás de pagar direitos alfandegários? Também tu, perguntaram-me, trazes mercadoria para vender. Não, respondi, nada tenho para vender. Por cada passo que dou, porém, tenho de pagar esses direitos, pois uma nova fronteira fica para trás e uma nova pátria espera por mim. Pago o peso dos meus passos, a lentidão com que caminho, cada engano que me faz oscilar na rota. Pago para deixar de ser o que fui e, em cada nova claridade, tornar-me no que efectivamente sou.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A verdade de si

Caspar David Friedrich - Homem e mulher contemplando a Lua (1820)

Na contemplação de um objecto, não é a verdade do objecto contemplado que se revela, mas a do próprio contemplador. Não que os objectos ou o mundo sejam um espelho, mas o facto de alguém escolher este ou aquele objecto para contemplação é uma autêntica epifania daquilo que é. Revelo a minha verdade nos objectos que escolho para olhar e na forma como o meu olhar paira sobre eles. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Signo sinal 2. A luz do farol

Albano Vitturi - O farol de Cervia (1930)

Um acontecimento inesperado, uma provação não procurada, um desejo frustrado, quantas vezes tudo isso é apenas o sinal lançado de um velho farol que nos avisa do perigo eminente. Terrível, porém, é o espírito ficar fascinado pela sombria luz daquilo que o atinge e, em vez de prosseguir a rota pelo mar largo, se deixa seduzir pela surpresa da dor que, ao brilhar, o encandeia.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Assunto de antiquários

Jaume Queralt - Antiquário (1987)

Há quem pense que coleccionar antiguidades é o essencial da vida do espírito. A leitura de velhas obras espirituais, por exemplo, toma, muitas vezes, o lugar da verdadeira vida, da experiência essencial que é sempre única e irrepetível. Não se percebe que esses registos têm um duplo significado. Por um lado, são o traço de uma vida vivida. Por outro, são sinais que, através da leitura, apelam a que outros vivam outras vidas fazendo não aquele caminho, mas o seu próprio e único caminho. O resto é assunto de antiquários.