sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Poemas do Viandante (438)

Ferdinand Hodler - O dia (figura) (1899)

438. A volúpia de um sonho na manhã

A volúpia do sonho na manhã
abre um caminho de luz
na cama desfeita da noite.

A floresta espera o teu rosto,
o sagrado bulício do silêncio,
a chama do nome que te deram.

Conto as horas que faltam,
suspiro com o vento na ramagem,
brilho se o sol cai em mim.

Sentado sob a copa do outono,
espero que chegues,
um rumor de passos na terra.

Uma sombra toca-me ao de leve.
Trémulo, volto-me para
o prodígio do teu corpo na erva.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tempo de Outono

Ernst Ludwig Kirchner - Sertigtal im Herbst

São as horas de recolhimento, de meditação sobre o caminho percorrido, de alegria profunda pela multiplicidade de cores que cobrem a natureza. São cores da morte, dir-se-á. Não, são cores da vida, desse estranho mistério que contém dentro de si a própria morte. São cores que chamam pelo pensamento, pela hora da renúncia, pelo desejo de retomar a viagem sem fim.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Bezerro de ouro

Emil Nolde - Dance Around the Golden Calf

Mais que descrição factual, a história do bezerro de ouro é símbolo eterno da nossa venalidade. Frágeis, os homens rapidamente trocam o seu caminho, aquilo que, no segredo do seu coração, chama por eles, pela adoração do bezerro de ouro. E nunca como hoje o bezerro de ouro esteve tão presente no mundo.

sábado, 2 de novembro de 2013

A verdadeira herança

Alejandro Mesonero - Deserdados

O que leva o Viandante ao seu caminho, à busca daquilo que chama por ele? Talvez seja o sentimento de ser um deserdado da terra. Ser deserdado significa que foi excluído de um bem que, por via da filiação, lhe deveria pertencer. Mas não é essa exclusão que move quem se põe a caminho. É uma exclusão muito mais funda e radical. É a súbita percepção de que todos os bens que poderia herdar ou adquirir são irrelevantes e não são mais do que poeira que se dissolve no horizonte. Essa hora de decepção leva ao desejo de encontrar aquilo que lhe cabe, a sua verdadeira herança, a prova da sua filiação. É a voz dessa herança, o sentimento de um vínculo, que chama pelo Viandante e o põe a caminho e no caminho.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Haikai do Viandante (165)


pedra sobre pedra
uma imagem do passado
a glória da terra

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Autoridade espiritual e poder temporal

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Ao considerar a velha expressão autoridade espiritual e poder temporal no âmbito da divisão das funções de governo do mundo perde-se aquilo que ela diz em si e por si mesma, para além das esferas privadas da religião e da política. O poder, pela sua natureza temporal, traz em si a marca da sua finitude. Todo o poder é temporal e, por isso mesmo, temporário. O que marca o espírito é, por seu turno, a autoridade e nesta o que está a ser pensado não é o mando ou a ordenação, a não ser como sentido derivado, mas a autoria. O espírito é autor e é nessa e dessa autoria que tem e lhe advém a autoridade. O poder é sempre caduco, o espírito cria e cria-se continuamente.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Abrir a janela

Karl Schmidt-Rottluff - A Janela Aberta (1937)

A primeira etapa da viagem termina quando o viandante abre a janela e depara com o vasto mundo. Estranho que uma etapa termine quando ainda não se começou a andar, quando ainda não se saiu de casa. O dramático, porém, é que a generalidade da espécie humana, por muitas milhas que tenha percorrido, nunca sai da sua casa, desse lugar onde tudo se refere a si. Nunca sai de si e dos seus pequenos, por grandes que sejam, interesses. Abrir a janela é então a primeira e decisiva etapa, pois abrir a janela não é outra coisa senão o abrir-se ao acontecer e ao que, no devir, nos chama.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Poemas do Viandante (437)

Ferdinand Hodler - Emoção (1894)

437. O súbito alvor do anjo sobre a terra

O súbito alvor do anjo sobre a terra,
a memória branca descarnada da face,
água tépida onde exausta te olhas.
Figura de cera que jaz dentro de mim,
símbolo de fogo ao raiar do mundo,
a promessa duma vitória já perdida.

Desfolho o calendário e aguardo o dia,
aquela hora em que venhas branca e nupcial
resgatar do sonho o desejo que nele se esconde.
Que nome te darei quando tudo cessar,
e as trevas forem apenas o rumor do incenso,
o desenho enegrecido pela luz bravia do mar?

domingo, 27 de outubro de 2013

Um rasgão no véu

James Ensor - Calvário

Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lucas 18:14)

Como, numa sociedade como a nossa, poderá ser recebida esta palavra de Lucas? Os tempos modernos têm na sua essência a exaltação do eu. Tudo está organizado para fortalecer e glorificar esse eu exaltado, um eu que, segundo o ethos moderno, deve seguir o seu interesse próprio. A própria medida do comportamento racional é-nos dada pelo acordo da acção com a defesa do interesse próprio. A humilhação do eu é, portanto, um desafio à lógica dos nossos dias, uma proposta que não pode ser olhada a não ser com desdém. Um escândalo, para retomar uma velha palavra. Mas não será o escândalo um rasgão no véu com que a realidade se cobre?

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (164)


Terra, pedra e fungos.
E do velho caos um deus
fez o novo mundo.