terça-feira, 22 de maio de 2012

Haikai do Viandante (74)

Jackson Pollock - Blue (Moby Dick) (1943)

a velha baleia
ainda no azul do mar
um fogo ateia

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Haikai do Viandante (73)

Jackson Pollock - Circuncisión (1946)

um pássaro voa
e na planície o verde 
do azul destoa

domingo, 20 de maio de 2012

Poemas do Viandante (268)

Chenu - Los Rezagados; Impresión de Nieve (1875)

268. CHENU, Los Rezagados; Impresión de Nieve

um lírio pelo chão
e um manto de cinza
cobre o céu

o inverno chegou
animal furtivo
perdido nos laços
do velho caçador

o meu coração balança
agita-se e espera
por ti no lugar 
onde a neve poisou

sábado, 19 de maio de 2012

Do relativo perante o absoluto

Frank Auerbach - Euston Steps (1981)

Passo a passo, degrau a degrau. Assim nos aproximamos do Absoluto, pensamos. Não será, porém, incomensurável a nossa relatividade e o Absoluto a que nos propomos chegar? Essa alteridade não será uma barreira? Sim, mas essa barreira está toda no nosso olhar. Não há degrau que nos leve ao Absoluto, nem passo que faça avançar no caminho. Estamos mergulhados no Absoluto, apenas a nossa relatividade nos cega e leva-nos a imaginar um caminho, uma escada, uma meta, um fim. Mas tudo isso são fugas da luz, de uma luz que, de tão intensa, é negra e cega.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Haikai do Viandante (72)

Van Gogh - Cabañas con techo de paja (1890)

Palha por telhado,
um súbito tom de azul
no tempo cansado.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Desinventar a linguagem

Max Beckmann - Embarcadero de hierro

Sou uma ponte, não aquela que liga o animal ao super-homem, mas a que vai daquele nada de onde vim para esse outro nada para onde me dirijo. Será, porém, alguma coisa essa ponte que liga dois nadas? Não. A ponte ainda é nada. Quando falamos em nada, enredamo-nos de imediato nas dicotomias e simplificações da linguagem, nas armadilhas da lógica, nas seduções da retórica. Quem nos disse que o nada tem por contrário o ser? Quem nos garante que o nada de onde vim é o mesmo para onde vou ou aquele que sou? Tantos lugares comuns, tantos espaços cansados pela utilização quotidiana. Precisamos de rasgar as gramáticas, esquecer a lógica e refazer o dicionário. Talvez Deus, que despreza a gramática, confunde-se com a lógica e só conhece uma palavra, se aproxime de nós ou nós dele. O homem não é o pastor do ser, mas o nada que tem por missão abrir crateras no tecido da língua. O homem é a ponte que leva de um a outro silêncio. Precisamos de desinventar a linguagem.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Poemas do Viandante (267)

Degas - Patio de una casa en Nueva Orleans (1872)

267. DEGAS, PATIO DE UNA CASA EN NUEVA ORLEANS

os dias de inocência
tecidos de animais
e pequenos jardins
são primaveras
perdidas nas folhas
de um velho calendário

se fosse orfeu
pegaria na lira
e deixaria correr
a água do rio
entre as minhas mãos
ávidas de terra
esquecidas dos dias
em que o anjo solitário
olhava para mim

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma estranha presença

Jean de Beaumetz - The Cruxifixion with a Carthusian Monk (1389-1395)

Esta intromissão anacrónica de um monge cartuxo na crucificação de Cristo não é um devaneio artístico nem, tão pouco, um acto arrebatado de fé, mas uma meditação sobre a natureza dos acontecimentos religiosos. O que Jean de Baumetz faz é abolir a história, dissolver o tempo. Mas não pretende negar nem história nem tempo, mas tornar evidente que o acontecimento histórico e temporal da morte de Cristo não pertence à história, mas à eternidade. A morte do Cristo, bem como o seu nascimento e a sua ressurreição, por serem eternos, podem acontecer a cada instante do tempo. O monge cartuxo representa cada um de nós contemplando esse acontecimento central na história da humanidade ocidental. Central, porque não pertence a essa história, e por não lhe pertencer move-a, organiza-a, prescreve-lhe, no silêncio da eternidade, o seu secreto fim. A estranha presença não é a do monge perante o Cristo crucificado, mas a presença de Cristo perante cada um de nós, aqui e agora.

sábado, 12 de maio de 2012

Fractura e harmonia

Benvenuto Benvenuti - La case delle armonie celeste (1911-1913)

O sentimento de fractura que, desde muito cedo, se insinua em nós traz consigo uma exigência a realizar na vida. Essa exigência é a da reconstituição da harmonia perdida. Não sei bem qual foi o momento em que senti ter deixado o estádio ingénuo da harmonia primeira para entrar no jogo, um jogo quase desesperado, para equilibrar as partes fracturadas. No hiato entre elas insinua-se um estranho exigência de absoluto. Esta insinuação traz uma lição consigo: não mais é possível restabelecer a ingénua harmonia, esse paraíso perdido dos primeiros tempos de vida. A fractura destruiu a inocência e esta não mais é possível. O conhecimento do mal é uma etapa, então, para esse absoluto. A exigência de absoluto significa a conquista de um novo estádio de inocência, não de uma inocência inocente, mas de uma inocência que se inocentou ao viver a culpa, de uma harmonia que se harmonizou pela mediação da fractura. É para isso que todos temos de passar por esse momento em que o fruto da árvore do bem e do mal nos seduz e joga em plena vida mundana.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Solidão e silêncio

George Pierre Seurat - Port-en-Bessin (1888)

A aprendizagem da solidão e do silêncio  não significa um exercício de afastamento dos outros, uma negação da dimensão social e comunitária que nos constitui, o pôr fim à comunicação, mas uma viagem para si próprio, para aquilo que há de mais fundo em nós. Todo o nascimento significa um acto de separação, mas um acto de separação que constitui um nós. Ao nascer, a criança separa-se da mãe. O corte do cordão umbilical, porém, significa que agora há novas realidades. Não apenas um novo ser, mas uma nova comunidade entre mãe e filho, um terceiro termo. O importante é que o nós instituído, os vários nós que se instituem, sejam um caminho para uma cada vez mais completa individuação. Tornar-se indivíduo é o enfrentar o mistério que nos constitui. Este exige a solidão e o silêncio. O essencial é tornar-se só mesmo estando com os outros, silenciar-se mesmo se comunicamos e partilhamos palavras. Solidão e silêncio não são coisas negativas que se sofram, mas aquilo que activamente se procura nessas horas em que estamos rodeados e conversamos. Só aqueles que amam a solidão e o silêncio têm alguma coisa para dizer. Mas nada melhor do que a silenciosa conversa de solitários.