quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

200. SPES (XII)

vasos descoloridos
flores de jardim
as velhas aspidistras
tocadas pela secura
o rumor
de um gato no umbral

a sombra
dos que partiram
senta-se à mesa
e há pão e vinho
e o murmúrio do vento
é uma fresta de luz
a voz suave
de uma canção

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A outra floresta

(imagem retirada de a trama)

A floresta é, também, a metáfora do labirinto. Melhor, floresta e labirinto acabam, de forma metafórica, por se interdesignarem, sendo possível utilizar qualquer um dos termos para denotar a referência do outro. Sendo a floresta, tradicionalmente, o produto espontâneo da natureza (embora, há muito isso não seja assim) e o labirinto uma construção humana, o que permite o transporte de uma designação para a referência habitualmente denotada pelo o outro termo é a ideia de caminho. São os caminhos que não são claros, a que falta uma certa luz racional. Os caminhos que atravessam a floresta ou que compõem o labirinto não se deixam iluminar pelo cálculo ou outro tipo de operações do entendimento. Um outro operar do espírito é necessário para encontrar o caminho e persistir nele, seja na floresta ou no labirinto.

Se tomarmos, por outro lado, o labirinto como termo da mediação, sem dificuldade se pode estabelecer conexão entre a floresta e os seus caminhos que conduzem a lado algum e o mundo social em que os seres humanos, apesar da racionalidade com que cada um traça o caminho dos seus interesses (embora esta visão liberal da existência seja puramente utópica),  acabam por andar à deriva e se tornam uma espécie em contínua errância. De facto, o lebenswelt, tomado na sua globalidade, não deixa de ser uma verdadeira floresta, cujos caminhos só na aparência podem ser percorridos segundo a luz da razão. A dificuldade do viandante é suspender o uso da bússola sem perder a orientação ou, dito de outro modo, suspender o uso da razão sem se tornar irracional.

Poemas do Viandante

199. SPES (XI)

tocar-te a fímbria
dos seios
e deixar vir
a aurora
sobre os prados
exaustos
do coração

o anjo ergue-se
e caminha
canta nestes dedos
a tua pele
sob o império
da minha mão

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

198. SPES (X)

o súbito desejo
da tua boca
abre-se no espírito
e é vento que retine
luz que ecoa
uma voz de sal
no oceano
onde o corpo
desagua

domingo, 21 de agosto de 2011

Holzwege

Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta[Holz] há caminhos que, o mais as vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado. Chamam-se caminhos de floresta [Holzwege]. Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta. (Martin Heidegger, Caminhos da Floresta)

Se em certas histórias infantis o caminho da floresta conduz não a um certo lugar, mas a um encontro, os caminhos da floresta de que fala Heidegger não asseguram sequer esse encontro. São como muito bem traduzem os franceses chemins qui ne mènent nulle part. Quem visitou a Floresta Negra e percorreu os trilhos que a atravessam - esses trilhos que envolvem a cabana, em Todtnauberg, que foi de Martin Heidegger e hoje pertence aos filhos - percebe o que o filósofo diz quando se refere ao não trilhado. A floresta torna-se a metáfora do não dito, do não pensado e do não vivido. Essa metáfora, porém, é a que permite abir um caminho no não trilhado. Quanto mais pensamos nesse não trilhado, mais tomamos consciência de que a floresta é também o lugar da errância. Perder-se na floresta pode acontecer a quem não tem a sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal.

A sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal é uma estranha sabedoria. Não deriva do saber que vem do livro, nem mesmo dos livros sagrados, mas da experiência da própria floresta. Só adentrando-se nela, só correndo o risco da errância, só mesmo fazendo a experiência da errância é que alguém chega à sabedoria dos trabalhadores da floresta. Num mundo em que o trabalho tem tão pouco valor, quem quererá rebaixar-se à condição de um simples lenhador ou guarda-florestal? Quem aceitar essa condição, todavia, poderá escutar ainda, na volúpia do tempo, as palavras de Heraclito: Quem não espera o inesperado, nunca o encontrará.

Poemas do Viandante

197. SPES (IX)

o jardim fenece
no descuido
dos dias
e o medo ressoa
pela madrugada

o grito do corvo
ensombra de trevas
os campos vazios
encapelados de ervas

sábado, 20 de agosto de 2011

Da simplicidade da vida


Uma das marcas do tempo que nos cabe viver é a complexidade. Refiro-me aqui à complexidade das formas de vida. Mesmo nas camadas populacionais menos diferenciadas, a vida tornou-se complexa e artificiosa. A relação directa e simples com a Terra, com os outros e, quando existe, com o sagrado praticamente desapareceu. A teia social, a influência dos mass media, as exigências crescentes que cada um acha dever ter para consigo e para com os outros acabaram por erguer uma barreira incomensurável e praticamente intransponível. Do lado de fora dessa fronteira fica a vida simples, a simplicidade existencial, a qual sempre foi o fundamento de uma relação recta com a verdade e a vida.

A vida simples é uma vida disciplinada e regular, longe do tumulto e da algazarra em que se transformou a vida moderna. Ora o grande problema é que ao escrever isto não se está a descrever uma prática mas a identificar uma ideia reguladora. Diz-se que a vida deve ser vivida dessa forma e não que ela é efectivamente vivida assim. O artifício, a complicação, a complexidade como estratégia de diferenciação e afirmação do ego espreitam de todo o lado e caem, como lobos, sobre o ser humano, mesmo sobre aquele que há muito descobriu os limites da materialidade da existência. Um primeiro passo será o descomplexificar a relação de cada um consigo mesmo. Antes de pregar novas formas de existência social, o mais importante é dar à sua vida um caminho de simplicidade e de pobreza, sendo a pobreza do espírito, esse exercício de humildade perante a verdade, a mais importante e profícua forma de pobreza.

Poemas do Viandante

196. SPES (VIII)

um deus canta
e nas aldeias
repicam sinos
como pássaros
no alvoroço
da primavera

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

195. SPES (VII)

o voo do milhafre
no azul do céu
tece no horizonte
árvores e pedras
risca de silêncio
o teu nome
no rumor
da água da fonte

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Silêncio


Silenciar o tumulto do pensamento, deixar lentamente que ele se desvaneça, e esperar na escuridão do espírito que uma palavra venha iluminar as trevas. O que vier virá na liberdade, livre e inesgotável, tão inesgotável como o silêncio que sobre o espírito cai.