O mundo não é uma ameaça à vida do espírito. Apenas a forma como se está no mundo a ameaça. Não vale a pena fugir para o deserto ou encerrar-se na clausura. Também aí está o mundo. Está, talvez, de uma forma mais aguda e dilacerante. O mundo é a habitação do homem e foi dado a este para que ele aí estivesse e permanecesse não num lugar hostil, mas como se estivesse em sua própria casa. Fugir do mundo é assim fugir da casa que herdámos. O problema que nasce então é o da forma como habitamos aquilo que nos foi dado habitar. A ideia de dádiva é já o primeiro sintoma de como devemos aí estar: cuidar do que nos foi doado. Mas esse cuidar não significa que o espírito se prenda à coisa doada, mas se erga ao doador e, na luz que deste emana, olhar cada gesto com que preenchemos o mundo.
quinta-feira, 7 de maio de 2009
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Poemas do Viandante (6)
6. se uma folha breve
se uma folha breve
da árvore se vai
uma estrela treme
e logo logo cai
Estar em vigília
Thomas Merton diz, em Semences de contemplation, que "não esperamos na contemplação, evadir-nos da luta, da angústia ou da dúvida." Procurar o caminho do espírito não é uma estratégia de alienação. Se me ponho a caminho não é para fazer disso um analgésico para as dores que o mundo, ou a vida, ou as ilusões que eu próprio crio. Pôr-se a caminho é manter-se atento e desperto. Em vigília. Estar em vigília é abrir-se para o conflito entre a minha mundanidade e aquilo que está para além dela e nela se oculta. Estar em vigília é aceitar plenamente a angústia da incerteza ou o tormento da dúvida sobre o caminho que se tomou. O caminho do espírito não é uma diminuição da nossa natureza humana. Pelo contrário, é o começo de nos tornarmos verdadeira e completamente humanos.
terça-feira, 5 de maio de 2009
Poemas do Viandante (5)
5. cai a flor
cai a flor
da amendoeira
e nos barcos
e nos barcos
o pavilhão arvorado
se sabes a cor do tempo
desenha uma flor
se sabes a cor do tempo
desenha uma flor
no oceano
da eternidade
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Eu não sou eu
Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.
domingo, 3 de maio de 2009
Poemas do Viandante (4)
4. faz do rio metáfora
faz do rio metáfora
e das águas metonímia
deixa a floresta
e cobre a face
e das águas metonímia
deixa a floresta
e cobre a face
de invernos a arder
ouve a voz do vento
ouve a voz do vento
e a noite
esquecer-se-á de ti
Liberdade
O espírito dispersa-se nos afazeres quotidianos, mas isto é apenas o sinal de um espírito ainda incapaz da liberdade. Que entender por liberdade aqui? Talvez um fazer como se não estivesse fazendo, um fazer desapegado e, ao mesmo tempo, atento ao que se faz e à fonte de onde jorra essa liberdade. O sentimento amargo de que, com as tarefas que o dever impõe, estamos a perder tempo, um tempo essencial, é ainda a ilusão de um espírito que se deixa prender nas artimanhas do eu. Fazer como se não se esperasse nada. Estar plenamente nesse fazer como na ausência do fazer. Mas o meu espírito ainda é incapaz de tal liberdade. A amargura é o sintoma dessa impotência e o sinal de que se está ainda demasiado preso ao mundo.
sábado, 2 de maio de 2009
Poemas do Viandante (3)
3. não tragas a razão para casa
não tragas a razão para casa
deixa-a vaguear pela tarde
sentar-se ao crepúsculo
gritar no terror da noite
não tragas a razão para casadeixa-a vaguear pela tarde
sentar-se ao crepúsculo
gritar no terror da noite
sexta-feira, 1 de maio de 2009
O terceiro excluído
Se penso na alma cindida, nessa divisão que me opõe a mim mesmo, nesse acontecimento em que quero o bem, mas é o mal que pratico, fico perplexo. Não são dois aqueles que encontro em mim, mas três. Um que quer o bem que o dever traz consigo, o outro que, como Paulo de Tarso, pratica o mal que sempre acabo por fazer. Mas para além deles, desses que querem em mim ora o bem ora o mal, há um outro que nada sabe do bem e do mal e que vive na luz duma inocência que se inocentou. Só nesse sinto a força que pode soldar a alma e reconstituir-me numa unidade que a vida rompeu. Na lógica que triunfou, esse é sempre o terceiro excluído. Mas será a vida uma questão de lógica?
Poemas do Viandante (2)
2. tocada pela voz
era o tempo
tocada pela voz
a sombra
dessa boca
prende-me aos lábios
que dizias meus
era o tempo
em que tinha
corpo
e na luz de julho
o via como se fora teu
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