O que Paul Ricœur vai sublinhar na sua hermenêutica é a objectividade da obra artística. O que está em jogo não é, como o pensava a hermenêutica e a literatura românticas, a apreensão do génio do autor, mas aquilo que ele chama o mundo da obra. A tese está escorada na ideia de autonomia do texto. Contrariamente a um acto da linguagem falada, o qual está suspenso das condições imediatas da sua produção, as obras escritas autonomizam-se do autor, da sua intenção, inclusive da sua interpretação. A leitura não será então uma forma de encontrar a intenção do autor, mas um processo de decifração do mundo que a obra transporta. Neste mundo haverá, por certo, muito do autor. As suas intenções, a sua cosmovisão, os seus aspectos ideológicos. Mas não é isso o fundamental. O fundamental é o universo proposto ao leitor, através do agenciamento artístico, e o confronto entre os universos da obra e desse leitor. A questão tornar-se-á mais interessante se recolocarmos o conceito de obra numa outra perspectiva. A obra será o suporte não de um mundo mas de um espírito. Entrelaçado à materialidade verbal e técnica da literatura está um dado espírito que se dirige ao espírito do leitor e o confronta. O corpo a corpo, em toda a sua materialidade, que o leitor trava com o romance, o poema, etc. inclui também um, digamos assim, um espírito a espírito, um confronto de espiritualidades. Também a sexualidade é um corpo a corpo, mas o seu fulgor resulta da presença do espírito nessa presença do corpo à alteridade do corpo do outro. A contiguidade dos corpos, assente na dinâmica do desejo, suporta a comunhão dos espíritos. Esta analogia permite compreender a literatura. Mas estamos perante uma analogia e não de processos idênticos. O corpo do leitor confronta-se com o corpo do livro, com a sua materialidade, e não com o corpo do autor. A literatura só existe nessa suspensão do contacto real. Essa suspensão não visa desviar ou transferir o desejo do leitor do corpo do autor para o corpo da obra, nem sequer sublimá-lo. Visa, outrossim, criar o espaço para um novo desejo, um espaço para uma outra emergência de eros. O deus manifesta-se agora em novas formas de desejar, de um desejo que se consuma na comunhão dos espíritos. Deste ponto de vista, as obras literárias, bem como as obras das outras esferas artísticas e, porventura, as da filosofia e da ciência, visam uma eclésia, uma comunhão geral dos espíritos, de espíritos que encontram na obra os motivos, mesmo os símbolos, para o seu reconhecimento.
terça-feira, 26 de julho de 2011
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Poemas do Viandante
183. INCÊNDIO
a exaltação tardia
dos campostrazia uma aragem
sobre o rumor
dos teus passos
ias e vinhas
e o meu coração
vivia pobre e incerto
à espera da noite
para incendiar
o pequeno rio
onde nascia
o amor
O autor e a obra (1)
Como olhar para a relação entre autor e obra (poema, romance, tragédia, sinfonia, quator, quadro, escultura, etc.)? Assiste-se, após a retórica da morte do autor, a uma certa recuperação da autoria e da situação do autor na leitura das obras e na sua compreensão. A relação entre autor e obra é equívoca e remete para duas ordens de discurso que não pertencem ao jogo da linguagem artística.
Em primeiro lugar, envia-nos para um questionamento jurídico. A quem imputar aquela obra? Por que razões a produziu? Como determinada idiossincrasia do autor se reflecte ali? O inquérito faz parte assim de um processo que está em julgamento e sobre o qual se deve pronunciar uma sentença. A obra de arte é então, se não a prova de um crime, o vestígio deixado pelo delinquente. A natureza processional e jurídica da intromissão do autor fica bem à vista.
Em segundo lugar, a relação autor – obra coloca-nos perante o discurso médico. A obra não é apenas o vestígio de uma delinquência mas o sintoma de uma dada configuração psicológica ou, melhor, biopsicológica. A partir da leitura das obras de um autor, supostamente, poderei traçar, na conjunção de Nietzsche com a psicanálise, uma leitura das forças vitais e dos processos recalcados de um autor. Força vital e recalcamento psíquico significam trazer para a questão da arte os problemas da patologia e do discurso médico
Introduzir o autor na questão da obra de arte significa, antes do mais, reduzi-la às dimensões do vestígio e do sintoma. O corolário é fácil de observar: os inquéritos que se abrem nada têm a ver com a experiência estética e com o confronto, o corpo a corpo, entre o leitor e a obra.
domingo, 17 de julho de 2011
Poemas do Viandante
182. DÁDIVA
uma rua de pedras gastas
e a brancura da pele
no sublime dia
dos vinte anos
aquela fogueira
que a noite ateava
no desamparo
dos teus olhos
dá-me essa tristeza
sem nomeuma rua de pedras gastas
e a brancura da pele
no sublime dia
dos vinte anos
dá-me a penumbra
onde arde aindaaquela fogueira
que a noite ateava
no desamparo
dos teus olhos
sábado, 16 de julho de 2011
Poemas do Viandante
181. ESPERANÇA
não esperar de deus
os dias de luz
a radiosa montanha
onde o pássaro
canta
não esperar de deus
a ventura da tarde
ou um sinal breve
na cruz erguida
no caminho
não esperar de deus
o vento suave
na sombra da árvore
a água fria
que a sede pede
não esperar de deus
e ir pela estrada
vazio e louco
seguindo-o no fundo
deste nada
não esperar de deus
os dias de luz
a radiosa montanha
onde o pássaro
canta
não esperar de deus
a ventura da tarde
ou um sinal breve
na cruz erguida
no caminho
não esperar de deus
o vento suave
na sombra da árvore
a água fria
que a sede pede
não esperar de deus
e ir pela estrada
vazio e louco
seguindo-o no fundo
deste nada
sexta-feira, 15 de julho de 2011
Poemas do Viandante
180. ESQUECIMENTO
o vasto incêndio
sobre o abismo
as flores secas
pelo cansaço
a pressa
que me toca
de mim se lembre
quando o vento
descer da serra
e tudo cantar
ao entardecer
sobre o abismo
as flores secas
pelo cansaço
a pressa
que me toca
não tenho posteridade
nem quemde mim se lembre
quando o vento
descer da serra
e tudo cantar
ao entardecer
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Poemas do Viandante
179. PROMESSA
a luz do meio-dia cai
sobre a floresta
de casas sombrias
vem do abismo
sem nome
e traz no seio
o rumor da saudade
a promessa de nuvens
na remota
e branca fímbria
com que debrua
o mar
sobre a floresta
de casas sombrias
vem do abismo
sem nome
e traz no seio
o rumor da saudade
a promessa de nuvens
na remota
e branca fímbria
com que debrua
o mar
terça-feira, 12 de julho de 2011
Poemas do viandante
178. DESAGRADO
sobre o passar
dos dias
as mãos vazias
vindas em sussurro
o chegar agosto
e o sol que despeja
a alma
e abre o corpo
para a sede
mas o andar frívolo
com que caminho
o silêncio quebrado
para não ouvir
o grito esquecido
sobre a ponte
o sino rasgado
sem as trindades
da infância
isso que te desagrada
a conversa inútilsobre o passar
dos dias
as mãos vazias
vindas em sussurro
o chegar agosto
e o sol que despeja
a alma
e abre o corpo
para a sede
o que te desagrada
não é issomas o andar frívolo
com que caminho
o silêncio quebrado
para não ouvir
o grito esquecido
sobre a ponte
o sino rasgado
sem as trindades
da infância
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Poemas do viandante
177. DISTÂNCIA
o brusco olhar sobre a montanha
a água escorre
fragas penedos
um relâmpago
fende a neve
abre a brancura
ao chumbo
ao peso da ira
ao grito consentido
pela distância
do céu à terra
a ergues
o brusco olhar
a água escorre
fragas penedos
um relâmpago
fende a neve
abre a brancura
ao chumbo
ao peso da ira
ao grito consentido
pela distância
do céu à terra
a ergues
domingo, 10 de julho de 2011
Poemas do viandante
176. O SENHOR
não é vã
a palavradita
sobre o rio
a água corre
uma ave canta
e o senhor
deixa vir
as nuvens
esconder a luz
do seu
calor
sábado, 9 de julho de 2011
Poemas do Viandante
175. ANJOS
pela tarde
trazem
luz de pedra
no dia brando
que o corpo
encerra
os anjos
que descem pela tarde
trazem
luz de pedra
no dia brando
que o corpo
encerra
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Poemas do Viandante
174. CAMPOS DE VERÃO
entre a rosa
e o sombrio coração
tudo fica mais claro
o odor da terra
ferido pelo voo
de um pássaro
ao vento
deixa o fogo apascentar
os campos de verão
a essa distância
entre mar e águaentre a rosa
e o sombrio coração
tudo fica mais claro
os dias de julho
as buganvíliaso odor da terra
ferido pelo voo
de um pássaro
se abrires os olhos
e os cabelos voaremao vento
deixa o fogo apascentar
os campos de verão
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Teoria da leitura
Há aquela velha polémica de Platão contra a escrita, contra os livros, contra o silêncio ostensivo com que respondem se forem interrogados sobre o que pretendem significar. O enigma, porém, está do lado de Platão e não dos livros. Por que razão terá escrito tanto? Não é verdade que os livros, no seu silêncio, não respondam. Os livros são um corpo silencioso nas mãos do leitor, e como um corpo precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si. Ler é um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem. Há porém livros tão especiais, pelo espírito que anunciam, que o leitor se mantém na distância a que se convencionou dar o nome de respeito. Fico sempre perplexo quando vejo alguém excessivamente jovem com certos livros na mão. A profundidade de algumas obras não se compadece com os verdes anos. O respeito, contudo, não é sintoma de ausência de desejo, de falta de vontade de abrir o livro, de o tactear, de deixar correr o corpo que lê pelas páginas que se dão à leitura. O respeito é apenas o sinal de reverência pelo mistério que se pressagia, o sintoma do apreço pela luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta. Talvez o respeito esteja ligado ao kairos, esse tempo oportuno que desce do espírito e toca os corpos, que vem do céu para iluminar a terra. O mundo vive um singular paradoxo relativamente à leitura. Ler tornou-se um imperativo generalizado, um indicador de desenvolvimento, um programa de acção. Mas a relação entre leitor e livro não é da ordem da moral, nem da economia ou da política. É uma relação presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros. O culto do deus – um deus impetuoso e intempestivo – exige essa especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro, com que um espírito se funde noutro, com que um leitor se entrega nas mãos de um livro, com que certos livros se abrem para a leitura.
Poemas do Viandante
173. VERDADE
os dias ainda
parecem longosa nuvem de calor
cobre-os
cola-se à paisagem
adormece
em sobressalto na noite
a verdade
– o corpo que esperao tremor destes dedos –
canta
agora uma ave
um anjo inocente
a queda da luz
na planície
da solidão
quarta-feira, 22 de junho de 2011
Poemas do Viandante
172. SONHOS
as coisas simples
presas nos escombros da vida
– flores secas
cadeiras de lona
o velho ringue
vindo do tempo da infância –
renascem entre sonhos
nos dias longos
de um verão sedento
e sôfrego
e ávido
de sombra e mar
presas nos escombros da vida
– flores secas
cadeiras de lona
o velho ringue
vindo do tempo da infância –
renascem entre sonhos
a noite inquieta
os traz consigo nos dias longos
de um verão sedento
e sôfrego
e ávido
de sombra e mar
terça-feira, 21 de junho de 2011
Poemas do Viandante
171. CANTO
a dorida tarde
poisa a mão
sobre o súbito
ondular
do teu ventre
e um canto
de alvoroço
vem dessa boca
soprar fogo e luz
no baldio âmbar
do coração
quarta-feira, 15 de junho de 2011
Poemas do Viandante
170. MANHÃ
abre-te
pétala soprada
rosa pura
pura e leve
tão leve
o tremor
sobre o mar
tão leve
a flor
ao vento
tão leve
a névoa
ao cantar
desenhada
em teus lábios
esperando luz
e tormento
a onda fria vem
toca-teabre-te
pétala soprada
rosa pura
pura e leve
o tremor
sobre o mar
tão leve
a flor
ao vento
tão leve
a névoa
ao cantar
tão pura
a manhãdesenhada
em teus lábios
esperando luz
e tormento
sábado, 4 de junho de 2011
Poemas do Viandante
169. MEMÓRIA
a memória
anseia a penumbra
na casa breve
em que um corpo
por outro
em desassossego
espera
frágil como
o voo de um pássaroa memória
anseia a penumbra
na casa breve
em que um corpo
por outro
em desassossego
espera
sábado, 28 de maio de 2011
Incomodidade e verdade
Volte-se à temática do post anterior, à questão da suspensão da acção. Se recupero uma imagem global da minha vida, constato que, apesar do envolvimento num certo número de actividades e de projectos, a acção sempre me pareceu estranha e contrária à minha índole, algo que, de certa forma, me fazia sofrer. Não é uma dor forte, antes uma incomodidade. O agir é a inscrição de objectivos interiores na exterioridade, no curso do mundo. Não é apenas o incómodo pessoal, mas o incómodo que a minha presença no mundo pode causar aos outros. Daqui a instantes (cerca de duas horas) irei lançar um livro, um conjunto de crónicas escritas em jornal de província, mas esse acto de lançamento é-me completamente estranho, sinto-o como se quisesse impor algo a alguém. A minha expectativa, que por certo será confirmada, será que não haverá grande razão para a incomodidade, devido à mais que provável ausência de público. Mas o simples acto social de chamar pessoas para lhes anunciar algo de meu gera incomodidade. O enigma para mim reside na origem e na verdade desta incomodidade.
Hipnose
Há uma linha de continuidade que perpassa por toda a vida. Muito cedo descobri um certo prazer em observar o escoar do tempo, de um tempo necessário à realização de uma tarefa, de um dever, de qualquer coisa que o mundo requeria de mim. Não fazer o que se exigia ou exige, mas interpor entre mim e a tarefa um espaço hipnótico, espaço que salta para dentro do corpo, se apossa da vontade e suspende toda e qualquer acção. Quantas vezes me perguntei se haveria em mim uma vocação contemplativa ou se não sofreria de uma patologia? O ver o tempo escoar, o deixar-se seduzir por irrelevâncias, o estreitar até à angústia a possibilidade de realizar um certa tarefa, tudo isto não será um sintoma patológico? Se aprofundo a arqueologia, descubro no início da escolaridade esse processo, esse estar fora da corrente da vida, descubro a sua natureza hipnótica. Compreendo, também, que ele se manteve inalterado desde esses tempos. Ao pensar agora sobre o assunto, parece-me claro que o processo já deveria ser anterior, bem anterior, ao início da escolaridade, tendo-se apenas manifestado aí devido a esse ser o momento onde o tempo, através da figura dos deveres a realizar, toma forma perante o espírito. Não se trata de pura procrastinação, pois nesta ainda está presente a intencionalidade de realizar a acção, embora mais à frente. O que sinto, porém, é um estranhamento perante aquilo que há que fazer. Esse estranhamento depressa se transforma em indiferença. O resultado é deveras extraordinário. Se há um momento no processo onde o espírito se sente angustiado pela não realização do que haveria a realizar, a verdade é que o resultado final, a não consumação das tarefas, a não realização de um objectivo, nunca gerou em mim qualquer sentimento de culpa, nem qualquer tendência depressiva. Apenas incomodidade, mais perante os outros que perante mim. Na realidade, esses imperativos que a vida impõe nunca se transformaram, efectivamente, em imperativos íntimos. A clivagem entre a intimidade e a exterioridade, coisa muito menos comum do que se supõe, criou em mim um espaço hipnótico que tende a anular a acção e talvez seja um perigo para o espírito contemplativo. Pior, e se o meu anseio contemplativo não passa de uma ilusão?
domingo, 22 de maio de 2011
Esperar
Por vezes, sem algo que o anuncie, tudo se torna sem sentido, como se de dentro de vísceras invisíveis viesse sobre a vida um cheiro putrefacto a nada. Não a um nada que indique a plenitude da ausência de odor ou gosto, mas de um nada que toma as células por dentro e as dissolve, corrompendo a vontade, liquefazendo os neurónios, tomados agora por uma sonolência sem fim. Como se abre o ser para que isto entre em nós? O ridículo. Tudo se torna risível e qualquer pretensão, gesto, desejo, mostra de nós o burlesco. Esperar a graça, desesperar por ela, ser incapaz de levantar a voz ao Alto. Dormir dias sem fim, deseja o corpo, reivindica, absurdo e ousado, o cérebro, condescende um coração mole. Dormir como se nada importasse. No silêncio da noite, erguer os olhos ao céu estrelado e esperar que a ferida se feche e uma voz ressoe no fundo do ser.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Poemas do Viandante
168. DESENHO
batido pelo vento
desenho-te a rosa
a florir no ventre
desenho-te os lábios
cantando o desejo
desenho-te a mão
perdida nestes dedos
no salitre da parede
desenho-te o corpo batido pelo vento
desenho-te a rosa
a florir no ventre
desenho-te os lábios
cantando o desejo
desenho-te a mão
perdida nestes dedos
domingo, 10 de abril de 2011
Poemas do Viandante
167. TUDO ISTO
o musgo no tronco
da árvore
pássaros em revoada
sobre telhados
a mão pousada
na inocência do olhar
a beleza de tudo isto
nunca cansa
dizes
enquanto a água vibra
na imensidão silenciosa
da tarde
o musgo no tronco
da árvore
pássaros em revoada
sobre telhados
a mão pousada
na inocência do olhar
a beleza de tudo isto
nunca cansa
dizes
enquanto a água vibra
na imensidão silenciosa
da tarde
terça-feira, 29 de março de 2011
Poemas do Viandante
166. A CATEDRAL
a límpida catedral
seda e água
lugar de erva
musgo e fogo
anjo que toca
ao quebrar da noite
os ombros
- meus teus -
estremecidos
pelo fervilhar do frio
da pedra cai
a límpida catedral
seda e água
lugar de erva
musgo e fogo
anjo que toca
ao quebrar da noite
os ombros
- meus teus -
estremecidos
pelo fervilhar do frio
da pedra cai
quinta-feira, 24 de março de 2011
Poemas do Viandante
165. ESTA TERRA
a cinza
em que esta terra
se desdenha
a água
descolorida onde
se afoga
as palavras gastas
– nelas se esquece
de deus ou da vergonha
ou da hora aprazada
o anjo a trará
despido de luz
para incendiar esta terra
de penas e assombro
a cinza
em que esta terra
se desdenha
a água
descolorida onde
se afoga
as palavras gastas
– nelas se esquece
de deus ou da vergonha
ou da hora aprazada
o anjo a trará
despido de luz
para incendiar esta terra
de penas e assombro
sábado, 12 de março de 2011
Uma oportunidade
Leitura de Liquid Modernity, de Zygmunt Bauman, uma obra de 2000. Uma acurada visão sociológica das profundas transformações que a modernidade está a sofrer nos últimos decénios. Uma ideia central. O processo de liquefacção das instituições sociais, facto inerente à própria modernidade, intensificou-se e mudou de qualidade. Contrariamente à modernidade inicial, que liquefazia as instituições do Ancien Régime para as substituir por outras melhores e mais sólidas, o actual processo, que se abate sobre as pessoas como um destino inexorável, pretende maximizar a destruição dos laços sociais, deixando os indivíduos entregues às suas próprias forças ou, melhor, às suas próprias fragilidades. A obra percorre o impacto do processo em cinco campos: 1. Emancipação; 2. Individualidade; 3. Tempo/Espaço; 4. Trabalho; 5. Comunidade. Evidencia os processos de liquefacção das estruturas sociais e o seu impacto na vida dos indivíduos e comunidades. Mas a obra, que continua passados onze anos absolutamente pertinente, é um bom ponto de partida para pensar uma outra coisa que não as sociabilidades e as individualidades. Ela mostra, inadvertidamente e sem se interessar pelo problema ou sequer referi-lo, como o mundo social e as vidas individuais se tornam ainda menos permeáveis ao Espírito do que em tempos anteriores, os da modernidade pesada, segundo a designação do autor. Isso não significa que, aqui e ali, não possam emergir comunidades explosivas em torno da religião. Mas essas comunidades terão mais a ver com o medo e a insegurança, com o ressentimento social, do que com uma preocupação com o Espírito e a experiência espiritual. No entanto, a atomização a que as sociedades ocidentais estão a ser sujeitas, o corte que cada indivíduo está a ser obrigado a fazer com as estruturas sociais de suporte, pode ter um efeito inesperado. Se na larga maioria esse corte pode conduzir ao desespero e a situações do foro patológico, social ou psiquiátrico, em alguns, uma clara minoria, pode ser ocasião para confronto com o sentido último da existência e uma abertura para a espiritualidade e para Deus. Se o cristianismo, nomeadamente o catolicismo, não deve desatender a larga maioria que sofre os efeitos da liquefacção das instituições sociais, seria curial que olhasse com atenção, que nunca será excessiva, para esse pequeno grupo de espirituais em potência. Não que sejam mais importantes que os outros, mas a constituição de uma elite espiritual - uma elite que bebeu o cálice das ilusões sociais até fim e que, como na parábola do filho pródigo, retorna à casa do Pai - pode ser importante não apenas para manter viva a experiência espiritual sobre a Terra, em particular no mundo Ocidental, mas para dar, com o seu exemplo silencioso, um sentido verdadeiro à vida do Homem no mundo.
quinta-feira, 3 de março de 2011
Poemas do Viandante
164 . ESQUECIMENTO
de todas essas coisas
esqueci o nome
os lugares
a cor que ofereciam
pela manhã
ficaram fragmentos
a memória à espreita
na soleira da porta
o nome de deus
se a noite vinha
coberta de clarões
de todas essas coisas
esqueci o nome
os lugares
a cor que ofereciam
pela manhã
ficaram fragmentos
a memória à espreita
na soleira da porta
o nome de deus
se a noite vinha
coberta de clarões
Do ruído e do silêncio
Continuação da leitura do diário de Thomas Merton. Escreve sobre o ruído mecânico. Não comenta a natureza desse ruído, apenas aponta a sua presença, o seu crescimento no universo onde vive. Um ruído de máquinas. Enquanto leio, lá fora, o ruído não cessa. Os carros que passam, uma máquina talvez no jardim de uma escola, as pessoas que emitam os carros e são agora máquinas que resfolegam, apitam, fremem e no fremir ouve-se o bater desamparado das células. Alguns de nós anseiam pelo silêncio, por essa dádiva que é suspender a mecanicidade ruidosa do mundo. Mas isto não passa de uma ilusão. A tarefa tornou-se absolutamente mais complexa e exige de nós aquilo que dificilmente poderemos dar. O fundamental não é encontrar uma pátria do silêncio ao lado das várias nações ruidosas. Essa pátria já não existe, foi tomada de assalto e colonizada por hordas turbulentas. O exercício fundamental é aprender a instalar-se no silêncio que habita o ruído. Este, o ruído, possui uma natureza negativa. Nega o silêncio, mas essa negação é a esperança, talvez a única, para quem precise de se instalar no infinito silêncio onde algo o espera. Essa negação é um nada e é neste nada que teremos de aprender a fazer a nossa casa, e a descobri-lo como o único silêncio possível nos dias de hoje. Escutar no ruído tremendo que nos envolve o silêncio que ele mascara, e, mais do que tudo isso, encontrar o silêncio dentro do ruído que nos habita e que, demasiadas vezes, nós somos.
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Poemas do Viandante
163. TARDES DE DOMINGO
voltou o sol aos dias
agora menos frios
e uma luz provisória cai
suavemente
sobre o casario das aldeias
ao longe
tudo é feito de uma teia
suave e silenciosa
como se uma promessa
a cantar no meu olhar
esperasse a voz
que do teu virá
voltou o sol aos dias
agora menos frios
e uma luz provisória cai
suavemente
sobre o casario das aldeias
ao longe
tudo é feito de uma teia
suave e silenciosa
como se uma promessa
a cantar no meu olhar
esperasse a voz
que do teu virá
Thomas Merton - Dancing in the Water of Life
Ontem, de forma inusitada, comecei a leitura dos diários de Thomas Merton. Não pelo princípio, mas pelo quinto volume referente aos anos de 1963 - 1965. Merton ia registando a vida que ia vivendo no mosteiro, mas o registo apresenta uma linguagem muito distante da retórica banal e infantil, excessivamente adocicada, de uma certa piedade que se apoderou há muito do mundo católico, e que ainda subsiste. A primeira impressão é a de se estar perante um homem do seu tempo. Isto significa que o monge cisterciense, apesar da natureza contemplativa da sua vocação, estava atento aos sinais do tempo e ao mundo. Lia, na altura, Santo Anselmo e Karl Barth, o teólogo protestante. Mas lia ainda, e muito atentamente, Sartre, então no fulgor da sua influência. Referência também para a leitura de Compreender o Islão, de Fritjhof Schuon. Um livro que ainda hoje merece leitura (talvez, noutra altura, se fale aqui dele). Pelas páginas de Merton, perpassam os conflitos raciais nos EUA, o assassinato de Kennedy, o problema do Vietname, mas também a trivialidade da vida. Idas ao médico, as dores no braço, o conflito com os caçadores que invadem as terras do mosteiro, a morte do Abade Geral dos cistercienses, os encontros com pessoas vindas de todo o lado, católicos ou de outras confissões, o cansaço com a correspondência, até uma tentativa de sedução, ou violação, de que foi alvo por uma mulher, de aspecto beatnik, que se introduziu no mosteiro, alegando ser sua familiar. O que se vai descobrindo é que a vida de um contemplativo não é muito diferente da dos outros seres humanos, e um mosteiro, apesar de estar protegido do mundo, não deixa de pertencer a esse mesmo mundo. Mais do que uma preocupação sobre a possível invasão da vida monacal pela superficialidade mundana, abre uma esperança sobre a possibilidade de uma vida contemplativa no mundo, uma vida onde, apesar de tudo, o espírito possa trazer um pouco de luz à cega acção dos homens.
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