sábado, 21 de dezembro de 2024

Inclinação de Inverno (1)

Camille Pissarro, Manhã de Inverno no Boulevard de Montmartre

de súbito o inverno germinou

no frio da terra desamparada

 

o deus dos campos recolheu-se

as aves cruzam os ares da cidade

 

vestígios do ouro dos dias quentes

ecoam no murmúrio do meio-dia

 

a desolação de campos e prados

resplandece no néon das avenidas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Meditação breve (201) Suspender o tempo

Rolando Sá Nogueira, sem título, 1959 (Gulbenkian)

Suspender o tempo e fixar o instante não é um prenúncio de eternidade, mas a destruição da narrativa. Se vemos um homem e uma mulher num banco de jardim, podemos descrever essa imagem, mas jamais saberemos se se estão a aproximar ou a afastar. É imperioso o retorno do tempo para que a narrativa encontre o que contar e revele o mistério que toda a imagem oculta.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Micronarrativa (71) Viagem

Querubim Lapa, sem título, 1947

Não tinham destinam, mas caminhavam. A terra queimava-lhes os pés nus. O coração, porém, era um monte de cinzas, o resto de pequenos fogaréus que o tempo ateou e, de imediato, apagou. Não é a ira, nem a alegria ou a resignação que lhes alimenta a viagem, mas o não saber o que os espera. A sabedoria conduz à imobilidade. A ignorância ao nomadismo selvagem, como se fugissem de um inimigo mudo e sem rosto.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Signo sinal 24. Línguas de fogo

Raimundo de Oliveira, Pentecostes, 1964 (Gulbenkian)

A súbita irrupção de línguas de fogo abriu os homens ao incêndio de uma revolução vocabular. Das planícies dos céus caíram palavras em forma de labaredas sobre o lago das águas silenciosas. A mudez foi rasgada, e a fala brotou em todas as línguas conhecidas e desconhecidas, em todos os idiomas vivos, mortos e por nascer. Ouviram-se palavras que nunca poderiam ser ditas, pois a sua existência pertencia ao grande império do impossível.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (12)

Claude Monet, A ponte de Waterloo, 1903

os dias cederam à tentação

do frio agreste

sem a graça do tempo brando

 

a paisagem é um retalho

de cinza e brancura

um horizonte de sombras hostis

 

nas pontes os homens passam

leva-os a água

do cansaço e o vinho da solidão

 

Dezembro de 2024


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Haikai urbano (76)

William Klane, Big face, front of Macy's, New York, 1955

Estranhos na noite

caminham pela cidade.

Sombras e ciladas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sal do silêncio (120)

Benvenuto Benvenuti, Cipressi e colombe, 1906-7

São árvores silenciosas, os ciprestes. Ao seu redor, geram-se clareiras de onde brota o silêncio que, como um sal arcaico, salga a terra, de onde brotará a palavra que, ao emudecer, diz a verdade, essa verdade com o peso de uma promessa e a leveza da eternidade.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (11)

Amadeo Souza-Cardoso, Étude A [Gëmalde A / Quadro A], 1913 (Gulbenkian) 

a gramática outonal dissolve-se

o caos instala-se

no fraseado da estação

 

colheitas e vindimas esquecidas

cheios de silêncio

dormem adegas e celeiros

 

na cidade incandescente

ouve-se a voz do frio

ecoa nas janelas fechadas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A sombra da água (36)

Francis Smith, Le Port à Honfleur, 1958 (Gulbenkian)

Portos são grandes armazéns de segredos e mistérios. Neles, se conjuga a sombra oceânica da água e a assombração dos navegadores. O marulhar da ondulação no cais é a música encantatória por onde se perdem, em noites sem mácula, a virgindade dos segredos e a textura dos mistérios.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

despido chegou dezembro

um dia de cinza

no declínio do outono

 

o ano tece a sua rede

a caligrafia incerta

no palácio da desordem

 

um rumor rasga as ruas

abre-as ao fulgor

da penúria e à luz da morte

 

Dezembro de 2024

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Geometrias de fogo (36)

Hugo Canoilas, Formas de vida simples que regressam ao mar, 2020-2023 (Gulbenkian)

Um fogo terrestre, selvagem como uma estrela do mar, transborda da dureza da rocha e inclina-se para o oceano. É um fogo incansável, desejoso de metamorfose, lava feita animal. Um grito fulgurante da Terra; um trovão ecoa na esfera celeste. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O Espírito da Terra (36)

Léonard Misonne, Coucher de Soleil, 1905

Quando o Sol se põe, nesses instantes de cintilante indecisão, o espírito da Terra manifesta-se numa imagem de súbita nostalgia: as sombras alongam-se em busca do infinito, a paisagem funde-se num anseio de eternidade.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Câmara discreta (24)

Dorothea Lange, Woman’s foot, Vietnam, 1958

O pé flectido contra a dureza do chão, os dedos abertos ao ar do dia, o calcanhar escondido sob uma veste comprida. Discreta, a câmara oculta-nos o rosto, a dor inscrita nas rugas da face, o desespero a cintilar nos olhos, a raiva a dançar nos lábios cerrados. Tudo isso, porém, é-nos devolvido nas metáforas instituídas por aquele pé desnudado, como se cada parte de um corpo reflectisse não apenas a sua totalidade, mas também aquilo que habita no segredo da alma e no vendaval do espírito.

sábado, 23 de novembro de 2024

Ofício de Outono (9)

Jackson Pollock, Autumn Rhythm: Number 30, 1950

sob o gérmen da candura

vozes bastardas

murmuram no silêncio

 

os astros deslizam no céu

núncios minerais

na vertigem dos espaços

 

uma ave silvestre canta

a fímbria da noite

abre-se no abismo sideral

 

Novembro de 2024

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Haikai do Viandante (440)

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze

Folhas amarelas

são cintilações de Outono.

Solidão nos campos.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Impressões 123. O caminho da floresta

Flor Campino, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Ouve-se o canto dos pássaros e os olhos detêm-se no verde da floresta. Um desejo insensato apodera-se do corpo, e o viajante ocasional sente-se atraído por aquele território inóspito, onde o segredo da vida se combina com o mistério da luz. Intrépido avança e diante dele vê a floresta abrir-se num caminho que só o coração sabe a onde levará.

domingo, 17 de novembro de 2024

Meditação breve (200) Floresta humana

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Olhamos e não sabemos o que vemos. Uma floresta? Uma multidão? O afastamento das coisas torna a sua imagem imprecisa e as nossas representações desadequadas. Talvez, vista do espaço sideral, seja uma floresta de homens, uma multidão petrificada, presa aos seus corpos vegetais, que começam a florir e haverão de frutificar quando chegar a hora.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Ofício de Outono (8)

Paul Klee, The Messenger os Autumn, 1922

de súbito vieram dias frios

o vento cortante

sobre a palidez das faces

 

anuncia-se nos crepúsculos

de novembro

o eco futuro do advento

 

as tardes feitas de cinza

abrem-se

ao silêncio de quem espera

 

Novembro de 2024


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Micronarrativa (70) Corrida

Amadeo de Souza-Cardoso, Avant la corrida, 1912 (Gulbenkian)

O espectador olhava os cavalos, mas não via a corrida. Pensava, meditava, perdido na multidão, sobre a natureza das corridas. Umas não têm fim, outras não têm princípio, e havia outras que não tinham meio, pois o princípio e o fim coincidiam tanto no espaço como no tempo. E, quando o mais veloz dos cavalos se aprestava a ganhar o grande-prémio, sentiu uma iluminação: a única corrida autêntica é aquela que não tem princípio nem fim, pois é um eterno correr sem correr. Enquanto a multidão ovacionava o triunfador, ele saiu do hipódromo, pois a sua corrida não pertencia àquele mundo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Pintura e haikus (42)

António Sena, Lèvres errentes sur la mer, 1983 (Gulbenkian)

De súbito as ondas

saltam da boca do mar.

Fome e tempestade.

sábado, 9 de novembro de 2024

Signo sinal 23. Abandono

Amadeo de Souza-Cardoso, sem título, 1915 (Gulbenkian)

O rosto que se distorce é o signo da derrelicção do homem, desse abandono a que cada um se entrega, deixando-se enredar numa teia de sinais contraditórios, aqueles que, esquivos ou imperativos, vêm das suas pulsões e os outros que nascem fora de si, mas que tomam conta do castelo interior deixado ao acaso dos dias e à impaciência dos desejos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Ofício de Outono (7)

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908

mais cedo chegou o verão

de são martinho

sorri o sol a quem passa

 

memória de luz estival

na dança das estações

a caminho da noite invernosa

 

na terra poisam folhas mortas

o vinho novo cai

da taça cintilante do céu

 

Novembro de 2024


terça-feira, 5 de novembro de 2024

O sal do silêncio (119)

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

As enormes mãos do silêncio abrem-se por dentro do tumulto da matéria ressequida. Procuram, na secura da poeira, a água perdida; esperam, no vácuo das horas, a seiva azul das plantas e o sal da terra.

domingo, 3 de novembro de 2024

A memória do ar (35)

António Areal, Opus n.º 59, 1963 (Gulbenkian)

O ar é como a pele de uma onça enlouquecida ou branco como um lençol estendido ao sol depois de lavado. Na cintilação dos opostos, o ar esconde o seu mistério, um enigma combinado com a resina das memórias e a seda cintilante que cobre os picos nevados das montanhas.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Ofício de Outono (6)

Eloisa Sanz, Camino de Tilos, 1999

mais pequenos os dias

flutuam

na lezíria enlameada

 

a luz indecisa enche

de sombras

a alameda das tílias

 

as palavras ecoam

vozes perdidas

no dédalo do passado

 

Novembro de 2024

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Geometrias de fogo (35)

Edward Hopper, People in the Sun, 1960

No Sol, manifesta-se o fogo, aquele que arde na alma e rumoreja no espírito. Perdidos na Terra, os homens voltam-se para esse astro benevolente, como se se voltassem para dentro de si para descobrir aquilo que lhes anima a vontade e incendeia a imaginação.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

A sombra da água (35)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

O lento fluir da manhã traz consigo a bruma das montanhas e o ar frio das terras altas. Os homens suspendem a viagem sem finalidade e cantam o enigma das águas, a luz de coral que se desprende da aurora, o leve estremecer das árvores tocadas pelo espírito do rio. Então, acorda-se do sonho e o mundo renasce virginal perante os atónitos do viandante.

sábado, 26 de outubro de 2024

Ofício de Outono (5)

Milton Avery, Autumn, 1944

são agora mais suaves os dias

o sol e a cinza

uma rosa de seda

 

os mortos esperam o sulco

de uma palavra

no rumor lunar da história

 

na humidade das ruas

as folhas caídas

estremecem na sombra da tarde

 

Outubro de 2024


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O Espírito da Terra (35)

Daniel O'Neill, Returning home, 1956 (Gulbenkian)

Quando o espírito da terra se aquieta e o tempo das febres e alucinações chega ao fim, então emerge do magma sombrio a hora de os homens retornarem a casa. O caminho que fora tumultuoso, tomado pela inquietação das coisas sem norte, torna-se ameno e, sob a sombra suave do dia, oferece a segurança de uma viagem até à terra interior que espera cada um dos que vieram ao mundo.