terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 6

Jakob Nussbaum, On the Beach at Port Said, 1925

 

Conto em silêncio os meses

para desenhar do Verão

os sulcos suados da sombra.

 

Na infância, o calor era

domado pelo véu do vento,

o verde a dançar nas árvores.

 

Se ouvia o grasnar das gaivotas,

os olhos perdiam-se na água

suspensa na luz do areal.

 

Agosto de 2023

domingo, 30 de julho de 2023

A sombra da água (17)

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Produzidas na fábrica do silêncio, as águas da meia-noite vestem-se como viúvas a quem o mar roubou os maridos. Então, murmuram canções desconhecidas que o vento, tocado pela maresia, transporta para terra, como se anunciasse a vinda de um mundo novo nascido do cristal salgado dos oceanos.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Signo sinal 11. Turbilhão

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983 (aqui)

Como num deserto, as areias enovelam-se e batidas pelo vento erguem-se em turbilhão, adquirindo estranhas configurações para sinalizar aquilo que ainda não se vê, mas que o tempo traz consigo já pronto para se manifestar aos olhos de quem saber olhar.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Geometrias de fogo (17)

Vincent van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889
Os raios solares entram pela terra e adormecem longos meses para, chegada a hora, renascerem como mil frutos das oliveiras que, ao transformarem-se no mais puro dos azeites, alimentarão as pequenas chamas que guiarão os homens na sua peregrinação por campos e cidades ou lhe darão a luz que, na sombra da casa, os abrirá ao mais secreto dos segredos.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

sábado, 22 de julho de 2023

Sulcos de Verão 5

Laurence Stephen Lowry, Coming from the Mill, 1930

No desabrigo da cidade,

intermináveis são as tardes

destes dias de calor aceso.

 

Por terra, frutos de Verão

lembram ruínas esquecidas

pela incúria dos homens.

 

Longos silêncios de domingo

são rugas nascidas do tempo,

preces ao Deus abandonado.

 

Julho de 2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A memória do ar (16)

Dr. S.B. Ward, Winter, 1889
O ar transporta em si a memória de todas as estações. Carrega-a como se sonhasse. Quando é tocado pelas recordações de Inverno, arrefece e corre o mundo, trazendo as águas pluviais que limpam as cidades ou algum nevão que cobre montanhas e planícies com o imaculado véu da brancura.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Signo sinal 10. Uma sombra

James Craig Annan, Der Franciscaner, 1896
O silêncio fundido na solidão torna-se uma sombra a pairar pelo mundo. É um animal de fogo no gelo da terra, é uma floresta de água no caminho do incêndio. Vai e vem como um sinal que indica o caminho ou o signo do advento da Primavera.

domingo, 16 de julho de 2023

A sombra da água (16)

Manuel Cargaleiro, Flores na água, 1960
Falemos de processos, desses mistérios em que uma coisa se transforma numa outra. Ouve-se o borbulhar da água e logo, sobre ela, se vê um manto de sombras que protegem o rodopiar em que, lentamente, as gotas se juntam e se tornam nas mais fulgurantes flores. São rosas, tulipas, orquídeas, malmequeres silvestres que se abrem na humidade que as trouxe à vida.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sulcos de Verão 4

Kazimir Malevich, River in the forest

O Verão desfraldou bandeiras

sobre a paisagem ressequida,

sobre as águas pardas do rio.

 

Os corpos são sombras ligeiras,

tomados pela calmaria

das tardes que nunca têm fim.

 

Ouve-se o ramalhar das árvores.

Ouve-se um cântico nas margens.

Ouve-se o júbilo de Julho.

 

Julho de 2023

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Pintura e haikus (32)

Chaim Soutine, House in the Country - 1934

As casas de campo
são mistérios doutro tempo.
Erma solidão.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O Espírito da Terra (26)

Daniel O'Neill, Returning Home, 1956

Quem volta ao lar pisa o chão com leveza, para que a terra permaneça silenciosa e, envolta no seu silêncio, deixe que o espírito que a guia conduza quem se fez ao caminho para retornar ao lugar que é seu, como se voltasse ao paraíso de onde fora há muito expulso.

sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.
 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Sulcos de Verão 3

Maurice Denis, Paradise, 1912

Envolto em fogo de artifício,

também o Verão foi trazido

pela barcaça do destino.

 

Juiz rude, sem piedade,

distribui pela terra frágil

as suas sentenças ardentes.

 

Sonho sombras e solidão,

a vinda de um Outono eterno,

luz do paraíso perdido.

 

Julho de 2023

terça-feira, 4 de julho de 2023

Geometrias de fogo (16)

Willem De Kooning, Fire Island, 1946

Não há ilhas mais imprecisas que as de fogo. Ao arder, queimam os contornos e alargam as fronteiras. Expandem-se em geometrias incertas, submissas à vontade do vento e aos desígnios das labaredas. Crescem num ruído de tormenta e apagam-se num silêncio de cinzas.

domingo, 2 de julho de 2023

O sal do silêncio (101)

Weegee, Sleeping at the Bar, 1939

Quando os sonhos são urgentes, qualquer lugar serve para que, rasgando o ruído com o arado do silêncio, chegue o sono, não aquele que retempera as forças e abre o corpo para a azáfama de cada dia, mas o que abre o espírito ao sal da imaginação. 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Sulcos de Verão 2

Eusebio Sempere, Verano, 1965

O ardor do fogo cintila,

mácula na pele rasgada

pelo dardejar dos incêndios.

 

Os corpos rastejam na sombra,

pedem a clemência da água,

o vento frio vindo do Norte.

 

Junho passa inflamado e rude

pelas ruas vazias de vida,

pelas almas ébrias de sonhos.

 

Junho de 2023

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Sulcos de Verão 1

Edvard Munch, Día de verano, 1904-1908

Como uma velha assombração

chega a verruma do Estio

cingida na luz do silêncio.

 

Os dias abrem-se em sonhos,

promessas de glória nos mares,

o olhar perdido na névoa.

 

Sento-me na sombra da tília,

oiço no rumor da memória

o verde Verão da infância.

 

Junho de 2023
 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A memória do ar (15)

Imogen Cunningham, Dream Walking, 1968
Esqueça-se a solidez dos corpos, com a sua submissão aos imperativos da gravidade. Esqueça-se o desenho da sua figura, com o sublinhar espesso dos contornos. Deixemos que os sonhos se sonhem em corpos feitos de ar, para que a leveza do desejo se possa expandir do centro da terra para o universo sem fim. 

sábado, 17 de junho de 2023

Impressões 111. Na lagoa

Heinrich Kühn, Abend In Der Lagune, 1895

Ainda não é uma noite de bruma, nem a glória das águas se eleva para os céus onde, vigilantes e eternos, os astros observam as lentas metamorfoses da vida na terra. Dois veleiros cruzam a lagoa, procuram porto de abrigo, na esperança de encontrar um lugar onde o lume cintile e envolva os corações com o manto do calor. É como se um sonho se inscrevesse na paisagem para a preencher de impressões esquivas, toldadas pelo marulhar das águas, e segredos habitados por uma longa demora.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A sombra da água (15)

Charles Job, Evening Calm, 1905

As águas chegam a terra e abrem-se numa herança inesperada, tocam-na com os seus dedos feitos de um lume tão lento como os dias da infância, acariciam-na com mãos de seda, rasgando-lhe sulcos por onde desliza a sombra das horas de melancolia.

terça-feira, 13 de junho de 2023

A Canção da Primavera 12

Mimi Fogt, Spring Time – Serra de Sintra, 1979 (aqui)

Voltemos ao centro do mundo,

ao jardim de flores eternas.

 

Voltemos aos dias luminosos,

às noites dos astros divinos.

 

Voltemos às frescas manhãs

onde canta a Primavera.

 

Junho de 2023

domingo, 11 de junho de 2023

No limiar (6)

António Areal, Sem título, 1961

Os primeiros traços de um mundo emergem do fogo originário. Estão ainda longe de serem um alfabeto que traga dentro de si a promessa de uma gramática, com as suas morfologias de aço, as sintaxes de cristal, fonéticas banhadas pelas águas de todos os oceanos. Ainda não são letras, nem algarismos, nem sinais secretos onde um código se erguerá para que olhos cintilantes o decifrem. São apenas as cinzas de um fogo que, de tão arcaico, nunca pára de arder, cinzas que lentamente se tornarão sólidas, tão sólidas que sobre elas, como se fossem alicerces inexpugnáveis, um mundo haverá de nascer.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

O sal do silêncio (100)

J. Dudley Johnston, Liverpool— an Impression, 1907
Quando se entra por dentro do passado, somos recebidos pelo grande cisne do silêncio. O que era sólido deixa-se ver como penumbra, o que era vivo toca-nos como uma canção, o que era belo cintila ainda no poço escuro da memória. Quando se entra por dentro do passado, a poeira sabe-nos ao sal da solidão.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Geometrias de fogo (15)

Giuseppe Arcimboldo, El Fuego, 1556
Se um coração mecânico bate num peito de ferro, os cabelos deflagram. Um corpo máquina tem uma cabeça de fogo. Os pensamentos são labaredas para incendiar o mundo, as memórias, uma colecção de cinzas onde descansam os restos dos mundos incendiados. 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A Canção da Primavera 11

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

Uma Primavera soturna

desce do céu de cinza e chumbo.

 

As flores do jardim clamam água

cansadas do fardo de Junho.

 

Espreito o dia pela janela

e oiço murmurar o mundo.

 

Junho de 2023

sábado, 3 de junho de 2023

A memória do ar (14)

Rudy Burckhardt, Flatiron in Summer, 1948

Essas avenidas largas retêm entre prédios as memórias vertiginosas do ar. O vôo dos pássaros, o desejo dos homens, o silêncio dos anjos, a sombra da aurora, os sonhos da matéria. Tudo ali circula, preso à lentidão, pois a memória é um exercício que exige tempo e cuidado. A pressa traz consigo a ruína por onde se escapa tudo aquilo que o coração quer conservar.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Histórias sem nexo 30. Calúnias

Joan Hernández Pijoan, Horizontal, 1984

Uma cândida e casta cabaça cabriolava no canteiro. Um cântico de cachaça. A caduca candeia carpia, se uma cabra cavava no caderno do capelão. Caramba, estes camelos cantam cada canção. Cabaças, cabras e camelos, eis os capatazes da capital ou os cátaros da capela, que, cantando, cabeceiam na carroça. Calúnias de camafeus.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Pintura e haikus (31)

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

Girassóis azuis
erguem-se para o Verão.
Cavalos de fogo.

domingo, 28 de maio de 2023

A Canção da Primavera 10

Ana Hatherly, Cidade, 1971

A cinza caída do céu

cobre de tristeza a cidade.

 

As ruas, passagens desertas,

declinam sob uma luz pálida.

 

Esqueço-me da Primavera

na melancolia de domingo.

 

Maio de 2023