sexta-feira, 26 de maio de 2023

O sal do silêncio (99)

Manning P. Brown, Curves, 1937

A nudez é o silêncio onde um corpo se oculta, se subtrai ao olhar inquisidor, oferecendo o seu esplendor para que floresça nos olhos incautos a mais terrível das cegueiras, aquela que ao olhar confunde aquilo que vê com aquilo que é visto.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

A sombra da água (14)

Henri Edmond Delacroix Cross, La Dogana, 1903

As águas são propícias a grandes amores e a terríveis crueldades. Existem como uma sombra entre a solidez da terra e a imponderabilidade do ar. Agitam-se, se o vento as toca ou o oceano cintila ao longe. Adormecem, se um sonho as chama para lhes contar os segredos que nelas se escondem.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Canção da Primavera 9

Vincent van Gogh, Camino en Saint-Rémy con figura femenina, 1889

Pelos campos corre selvagem

a luz do deus da Primavera.

 

Sem mácula ou sombra as flores

abrem-se como aves de fogo.

 

Os dias passam no adro do tempo,

são setas no meu coração.


Maio de 2023

 

sábado, 20 de maio de 2023

No limiar (5)

Georgia O'keeffe, Black abstraction, 1927

Ainda as coroas não ornavam cabeças reais, nem o oxigénio se combinara com o hidrogénio para, em proporção exacta, permitir o advento da vida. O vento era apenas uma promessa cósmica de um tempo a vir, e a luz estelar ainda não tinha sido separada em enxames que se deslocam sempre para mais além. Do fundo negro, uma onda de escuridão ergueu-se e troou, enquanto uma espuma esbranquiçada, imperativa como uma velha fronteira, assinalava as primeiras metamorfoses que trariam o mundo ao lugar onde o encontramos.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Geometrias de fogo (14)

Maria Gabriel, Sonho numa noite de Verão, 1969

Sonhos de Verão são reminiscências de fogos que acordam dentro de uma imaginação exausta de tanta fantasia. O lume arde, enquanto o sonhador dorme. As labaredas tocam-lhe o coração e abrem-se em danças inquietantes por dentro do peito, até que o dia nasce e o sonho se esgota no lume da aurora.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A memória do ar (13)

Maria Helena Vieira da Silva, L’air du vent, 1966

A precipitação com que o ar se enovela ao transformar-se em vento anuncia que, sob a capa de um mundo sólido e perfeito, se escondem, secretas e sulfurosas, as moléculas do caos, compostas por miríades de átomos instáveis e energias ferozes que se aniquilam entre si, anunciando o nada de onde tudo, mais uma vez, se haverá de extrair.

domingo, 14 de maio de 2023

A Canção da Primavera 8

Fernando Lerín, sem título, 2000

As tílias sombreiam as ruas

por onde caminho em silêncio.

 

O sol embalado no vento

cintila no verde das folhas.

 

Há no murmúrio da manhã

um cântico de Primavera.

 

Maio de 2023 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

O sal do silêncio (98)

Noé Sendas, The Rest is Silence II, 2003 (aqui)

O peso do silêncio dobra a voz para dentro de si mesma. Esconde-se como um animal acossado, como um homem cujos olhos, tão frágeis, não suportam a luz. Na ausência do som, desprende-se dos corpos o sal do sono, e a boca, com o esmalte dos dentes e o âmbar do riso, floresce na floresta memoriosa da mudez.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

No limiar (4)

Imagem obtida com IA da CANVA

Pensa-se no lugar onde a realidade se produz em estratos, o trabalho moroso de sedimentação de materiais arcaicos, mas esse pensamento não passa da projecção do desejo de encontrar uma chave de leitura para aquilo que não tem leitura. Trata-se antes do lugar onde a irrisão se encontra com a ausência de sentido, formando ondas caóticas, impressões difusas, recusas viscerais de toda a ordem. Por vezes, soltam-se ruídos, mas não se encontrou ainda aparelho auditivo para os processar e descobrir para eles uma notação prosódico ou mesmo um nome. Pensa-se no não pensável.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

A sombra da água (13)

Amedeo Modigliani, Sun Reflected on Water, 1905

O ardor da água, essa pele porosa e lustral onde o fogo encontra a sua imagem, cintila perante a ameaça da sombra ou dos dias negros, de onde a luz foi retirada, reverbera contra a escuridão, alumia-se na inocência de tudo aquilo que passa e perde ao passar a mácula original do movimento.

sábado, 6 de maio de 2023

A Canção da Primavera 7

Georgia O'Keeffe, From the lake nº 1, 1924

Nuvens sobre nuvens encobrem

no céu o sol primaveril.

 

A sombra delida dum cisne

cresce nas águas frias do lago.

 

Ouve-se um canto luminoso,

ventos sopram vindos do Sul.

 

Maio de 2023

 

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Pintura e haikus (30)

Zao Wou-Ki, 21-14-59

Tormentos de sombra
em planícies de fria lava.
Um vulcão extinto.

terça-feira, 2 de maio de 2023

Geometrias de fogo (13)

Vincent Van Gogh, Campesina sentada al fogón, 1885

Uma estranha geometria possui o fogo doméstico. As suas labaredas rodopiam arrastadas pelo íman da necessidade. O frio ancestral, o temor nascido no início dos tempos, a fome inexorável, tudo isso se torna um poderoso chamamento. Então, o fogo ergue-se como uma camélia perdida ao vento e arde para que a vida seja ainda uma luz na melancolia da noite.

domingo, 30 de abril de 2023

A memória do ar (12)

A grande abertura do horizonte, a ausência de obstáculos trazidos pela natureza ou feitos por mão humana, deixam que o ar circule suspenso da liberdade de tudo o que é invisível. Oferece-se então como um velho repositório de memórias, onde se escondem o voo dos pássaros, os sonhos dos homens.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

A Canção da Primavera 6

Cornelis Théodorus Marie van Dongen, Primavera, 1908

Pobre Abril, o fim tão próximo

anuncia-se no voo das aves.


Cobrem-se de folhas as árvores

e de sombras o coração.


Nos jardins, crescem em silêncio

rosas ávidas de florir.


Abril de 2023

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Meditação Breve (189) A imaginação

Raphael Colin, At the Edge of the Sea, 1892

A imaginação é como o fluxo das águas do mar. Vem e vai, comandada por um ritmo secreto, cuja lei inexorável ninguém conhece. Onde apenas existe água e areia, ela descobre corpos tomados pela beleza, transbordantes de ritmo, incendiados pelo desejo de quem os fantasia, prontos para se deixarem possuir pela arte do seu criador.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

A sombra da água (12)

João Queiroz, sem título, 1999 (aqui)

Nenhuma atenção ou perspicácia permite distinguir entre água e sombra, unidas pela fluidez que as traz à existência e as dota das mais puras propriedades daquilo que é efémero. Só uma sabedoria infusa teria o poder de suspeitar a delicada fronteira onde a água se dissolve na sua sombra, onde a sombra se liquefaz para correr para o mar.

sábado, 22 de abril de 2023

No limiar (3)

Imagem obtida com IA da CANVA

Será uma dança imortal a que os elementos se entregam antes de se comporem na matéria da realidade, o mundo sólido que surge perante os olhos, para estes o devorarem em imagens que se guardarão no cofre-forte da memória. Dançam uma música de cores. Nestas existem sons que o movimento faz eclodir em paisagens que as palavras não poderão descrever, horizontes que pertencem a um lugar onde o verbo ainda não se fez presente e nenhuma denominação encontra o momento para ressoar, pois tudo ainda está imerso numa sinestesia universal.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

A Canção da Primavera 5

Fritz von Uhde, Am Fenster anagoria, 1890

A Primavera de Verão

vestida ressoa nos ares.

 

Traz uma promessa de verde

sobre o silêncio da cidade.

 

Pássaros voam pelos céus

cobertos na sombra do dia.

 

Abril de 2023

terça-feira, 18 de abril de 2023

Haikai do Viandante (431)

Bernardo Marques, Paisagem

 Imagens sonhadas
sob um céu de azul e fogo.
Traços de carvão.

domingo, 16 de abril de 2023

O sal do silêncio (97)

Nuno Cera, Snapshots 3, 1996

O caminho abre-se como uma oferenda aos viandantes. Devem percorrê-lo em silêncio, até que encontrem a saída que, de imediato, reconhecerão como a sua. Então, dirigir-se-ão ao lugar que por eles espera há muito. Ao encontrar a sua casa, descobrem o centro do mundo, e seja qual for o caminho que tomem jamais precisarão de bússola, nunca tornarão a perder o norte.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A memória do ar (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

O ar tece uma rede invisível e nela a realidade deixa-se prender até à imobilidade. São de aço flexível os fios com que a rede se tece, para que se ajuste aos prisioneiros que caem sob o seu império. Então, eles respiram lentamente e deixam correr o tempo, esquecidos da subjugação ao soberano que não se vê.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A Canção da Primavera 4

Abel Salazar, Na ribeira

É uma luz indecifrável

a que sobre a cidade cai.

 

Desliza no céu como um anjo

incógnito entre as nuvens.

 

Ilumina ruas e praças,

as mãos crispadas pelo vento.


Abril de 2023


segunda-feira, 10 de abril de 2023

No limiar (2)

Imagem obtida através de IA da CANVA
A desordem em que os mundos germinam em breve é levada à fronteira que deixa ver, como numa exposição acidental, o rigor do que virá e o ritmo das leis que então regularão os elementos. Ali, é um lugar de cacofonia, onde a língua do mundo que ainda não é um mundo se mistura com a do mundo que virá. O espectador acidental, caso pudesses existir, descobriria que todo o mundo verdadeiro é antecedido por um simulacro onde se esconde a falsidade que temperará o rigor da verdade desse mundo.

sábado, 8 de abril de 2023

Histórias sem nexo 29. Pedras

Fernando Lemos, Pedras, 1949
Um prado pródigo de pedras. Uma praça próxima de pedras. Um prato pronto de pedras. Uma praga procaz de pedras. Um pranto profano de pedras. Uma praia pruinosa de pedras. Um prândio prudente de pedras. Uma prata proba de pedras. Prados, praças, pratos, pragas, prantos, praias, prândios, pratas, promessas de pedras pródigas, próximas, prontas, procazes, profanas, pruinosas, prudentes, probas.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Geometrias de fogo (12)

Lee Miller, Eagles Nest in Flames, Berchtesgaden, Germany, 1945
Um casulo desfeito pelas chamas, o abrigo incendiado, a casa tomada pelas labaredas. O fogo dança sobre o sossego dos homens, corre pelos campos, toca com os seus dedos de carvão as árvores da floresta. Saciado, adormece na cinza que semeou, esconde-se no cântaro da ausência, até que o som de uma trombeta o acordo e trémulo regresse à vida.

terça-feira, 4 de abril de 2023

A Canção da Primavera 3

Manuel Cargaleiro, Zug – Primavera, 1961

A Quaresma como uma sombra

desliza ao sabor do vento.

 

Os dias abrem-se para a luz,

presos ao silêncio dos céus.

 

Pousada no ramo da tília,

uma ave canta a solidão.

 

Abril de 2023

domingo, 2 de abril de 2023

No limiar (1)

Imagem obtida com IA da CANVA

Já não é um caos, mas está longe de ser o cosmos que se acolhe dentro de um olhar ou que ressoa, se alguém fecha os olhos e escuta o mundo, como uma velha canção, daquelas que trazem o tempo na alma e ligam vivos e mortos. São linhas que procuram um campo onde se tornem o mármore, a pedra viva com que uma cidade perpétua se erguerá para receber a luz do Sol e a bênção da noite.

sexta-feira, 31 de março de 2023

A sombra da água (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

Uma sombra secreta habita no interior das águas. Penumbra revoltosa a dançar sob o império do vento. Se a luz a ilumina, a rebelião multiplica-se em imagens sem fim, onde o branco se desdobra em mil matizes de azul e verde. Se a luz se esconde, então só as trevas se acolhem no rugir ondeado das águas.

quarta-feira, 29 de março de 2023

O sal do silêncio (96)

Imagem obtida com IA da CANVA

O silêncio irrompe pelo deserto. É uma sombra que rasga as areias e deixa rastos indeléveis que vento algum apagará. É um silêncio feminino, grande como uma mãe que olha o futuro dos seus filhos e se ajoelha perante um altar para que o sal da vida amadureça nos seus corações indecisos.