Rodney Smith, Danielle in Boat, Beaufort, SC, 1996 |
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023
A sombra da água (8)
O que eu queria, diz a sombra, é que os mortos se erguessem das águas e tornassem ao conforto do lar, para virem, nos dias incertos da melancolia, passear no lago, olhando as árvores e sonhando com grandes florestas, onde, como praias do Meio-Dia, se abrem clareiras, para que possam repousar por instantes, e banhar-se na luz viva do mundo ou nos aromas das flores silvestres.
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
A memória do ar (7)
Alexander Alland, Brooklyn Bridge, 1938 |
Pontes são passagens entre a manhã e a noite, compromissos entre dois crepúsculos, lugares de festa onde a terra cede os seus filhos ao ar. Nelas, os homens são pássaros sem asas, caminham como se voassem e sentem no vendaval do vento a casa de assombro onde dormirão descansados.
domingo, 5 de fevereiro de 2023
A Luz de Inverno 7
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023
Geometrias de fogo (7)
Jeanne Carbonetti, Abedul en otoño, 1997 |
O fogo é agora sangue inflamado na seiva das bétulas, um rasto de açafrão nas folhas caídas, o brilho do cobre se batido pelo sol, o vinho vertido na brancura da toalha. Traz com ele a tentação da iridescência, mas só a cor dos incêndios desenha o seu arco num céu toldado pelo desejo das chamas e a paixão das labaredas.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023
A sombra da água (7)
Hiroshi Sugitomo, Cascade River, Lake Superior, 1995 |
Não são as águas que governam o movimento que as levará da nascente à foz, mas a sua sombra que, como um motor descido dos céus, lhes impõe a dança do ritmo e o fulgor da viagem, tornando-as lentas ou rápidas, conforme o desejo que germina no sombrio coração nascido do encontro entre a luz e as trevas.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
O Espírito da Terra (24)
Albert Renger-Patzsch, Heidesheim (Sandaue), 1940s |
Sob a erva a terra esconde-se, para que nela a vida, como um segredo, possa germinar. Tudo o que nasce vem do silêncio da terra, de uma lenta urdidura, para que a novidade chegue envolta no véu transparente da surpresa. Os dias passam como anéis deslumbrantes de mármore, que se recolhem em dedos afilados, enquanto, no solo, cresce o odor daquilo que, ainda sem nome, virá.
sábado, 28 de janeiro de 2023
A Luz de Inverno 6
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023
Meditação Breve (188) O tempo
Elliott Erwitt, Paris, 1989 |
Pode-se imaginar que a causa final que levou à invenção da fotografia tenha sido a de congelar para a eternidade um momento, do qual se expulsa o movimento e com ele o tempo. Depois, há fotografias em que o movimento se liberta e o tempo retoma o seu velho poder. O vento não deixará de fustigar os guarda-chuvas, o homem não parará o seu movimento em direcção aos lábios da mulher, o bailarino continuará a dar os passos que o mantêm entre o céu e a terra, como se a eternidade não fosse mais do que um tempo sem fim.
domingo, 22 de janeiro de 2023
Geometrias de fogo (6)
Marc Chagall, War, 1964-66 |
São os piores dias aqueles em que fogo cai do céu ao som das botas cardadas. As labaredas pesam como rochas gigantescas e esmagam a terra e o que nela se move. Ao longe, vê-se a cintilação e um enorme fulgor, mas o espectador sabe que não são línguas de fogo a descer sobre o cenáculo, mas o lumaréu vindo do inferno que os homens trazem dentro de si.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2023
A Luz de Inverno 5
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
Micronarrativa (64) Viagem
Ernst Haas, Utah, 1952 |
A imagem extática de uma natureza que espera, uma paisagem delicada onde os mais terríveis segredos se escondem, para que o silêncio os guarde e não os deixe cair, como um trovão retumbante, sobre quem passa. Esse fundo sem fundo aguarda-te e tu, perdido na névoa da ignorância, precipitas-te para ele, arrastando tudo atrás de ti, como se esse mundo silvestre fosse o lar onde a esperança te aguarda.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
A sombra da água (6)
Edward Steichen, Late Afternoon - Venice, 1907 |
A noite desce sobre o rumor das águas, é uma sombra vinda de um mundo sem nome. A luz ainda resiste como se tivesse nela a força para suster a escuridão. A vida, porém, passa indiferente como se a vertigem que a habita a impedisse de olhar aquilo que nela se desenrola.
sábado, 14 de janeiro de 2023
O sal do silêncio (94)
Rudolph Eickemeyr Jr., In the Valley of the Beaverkill, 1890 |
Era o lugar onde homens chegados à transparência poderiam encontrar abrigo. Ali não haveria quem lançasse atrás deles os cães da perseguição e os lobos do desdém. Uma atmosfera pura cobria a terra e o vento ou o cântico dos pássaros de Verão eram ainda uma memória do silêncio, onde, perdidos no cristal da existência, encontravam o peso do seu corpo.
quinta-feira, 12 de janeiro de 2023
A Luz de Inverno 4
terça-feira, 10 de janeiro de 2023
A memória do ar (6)
André Kertész, Washington square at night, New York city, 1954 |
A noite rarefaz-se numa atmosfera de melancolia. Um vento suave corre entre ramos despidos, açoita com bonomia quem se atreve a enfrentar a solidão, escava em silêncio um buraco no lençol nocturno, para que o dia, com a sua luz de âmbar, venha numa aurora deslumbrante, como uma noiva que chega ao altar.
domingo, 8 de janeiro de 2023
sexta-feira, 6 de janeiro de 2023
Geometrias de fogo (5)
Paul Klee, Fire Wind, 1923 |
Se o esquecimento se debruça e cobre as planícies do coração, se os rios se escondem da cintilação da luz, se os cabelos das mulheres perdem a fulguração dos crepúsculos do Verão, então um vento de fogo cobre a Terra, inventando novas figuras onde a luz reverbera, para aquecer os corações gélidos, atear as águas que em tumulto procuram a foz, incendiar na ondulação do amor os cabelos das mulheres.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2023
A Luz de Inverno 3
domingo, 1 de janeiro de 2023
A sombra da água (5)
Otto Scharf, sem título, 1895 |
São águas tão tristes as que correm devagar, como se abrissem o caminho contra obstáculos desmedidos e carregassem com elas o peso de cada sombra. Enquanto rumam levadas pelo fluxo do tempo recebem em depósito a gravidade das imagens que o mundo sob o céu fabrica para que cheguem, como um enigma vindo do passado, à solidão do oceano.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2022
Impressões 108. Uma revelação
Andre de Dienes (Dienes Andor), Paris, 1936 |
O súbito matrimónio entre o fulgor da luz e a sombra da névoa abre aos olhos o segredo que, dia após dia, o tempo oculta. Tudo o que se vê não é mais do que uma impressão que os olhos desabituados do espanto das primeiras coisas tomam como realidade substancial, de contornos precisos e existência sólida. Passeamos no mundo caminhando de impressão em impressão, ignorantes de que nós próprios não somos mais que meras impressões inscritas nas areias movediças de uma praia de águas alteradas.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
A memória do ar (5)
Ernst Haas, Salzburg, Austria, 1945 |
A névoa é o ar condensado sobre os tectos da cidade. Assim, recolhe numa memória as pedras que se erguem aos céus e as pessoas que passam indiferentes, como se o ar não existisse e nele não pulsasse a possibilidade da vida, mesmo quando se desloca num torvelinho de violência, preso a uma vontade incompreensível. Então, é um pedra que bate e abre um caminho que ninguém tinha esboçado na fogueira da imaginação.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
A Luz de Inverno 2
sábado, 24 de dezembro de 2022
Geometrias de fogo (4)
Thomas Cole, Expulsión. Luna y luz de fuego, 1828 |
Poderia ser uma canção lunar ou o rasto de um cometa perdido. Poderia ser o fogo que arde em todo o amor ou a explosão que trouxe do quase nada este universo. Poderia ser a sombra incandescente do silêncio ou o halo de um corpo transido de frio. Era, porém, outra coisa, transbordante e sem nome, pois tudo o que o fogo unge está para além de toda medida e de qualquer nomeação.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022
Câmara discreta (19)
Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, 1931 |
Os sonhos tinham-se esgotado, restava uma memória antiga, o cilício do passado e a cintilação abscôndita do olhar, onde o ódio e a raiva dançavam no vertiginoso ritmo da sagração da Primavera. O tumulto do coração e a revolta do corpo eram como um poema longamente decantado de boca para boca. Quando o vento suspendeu a sua viagem sem fim, uma sombra ofereceu-se à benevolência da câmara, para que o arquipélago da dor encontrasse um porto para ancorar.
terça-feira, 20 de dezembro de 2022
A memória do ar (4)
sábado, 17 de dezembro de 2022
A Luz de Inverno 1
quinta-feira, 15 de dezembro de 2022
O sal do silêncio (93)
R. Köhnen, Alte Mühle, 1908 |
O silêncio que devora os anos traz nele um vocabulário escrito com o alfabeto da memória. São palavras sem vocação para serem proferidas, sem poder de serem inscritas na folha rasa do papel, palavras que ressoam no bater do coração, na circulação do sangue, no sal que tolhe o movimento da língua e abre o espírito para a ciência da eternidade.
terça-feira, 13 de dezembro de 2022
Geometrias de fogo (3)
Maria Helena Vieira da Silva, A biblioteca em fogo, 1974 |
Cada livro é um incêndio e uma biblioteca não é mais do que uma estrela à volta da qual orbitam, na cegueira das suas próprias trevas, esses estranhos planetas que são os leitores. Cansados de escuridão, buscam a luz. Exaustos de frio, procuram o calor. Recebem um pouco de cada um. Se tiverem sorte ser-lhes-á oferecido o dom da inquietação.
sábado, 10 de dezembro de 2022
A sombra da água (4)
René Burri, Former Summer Palace. Dead lotus flowers on the Kunming Lake. Beijing, China, 1964 |
As águas do esquecimento dormem sob a vigilância dos céus. Cobrem-nas a folhagem da névoa, a sombra suave do dia que passa. Ali pulsa a morte destilada pelas flores de lótus que se precipitam na geometria a que o tempo as reduziu. Um segredo cresce, refracta-se nas pétalas desaparecidas, abre-se para o silêncio que a tudo resguarda do tumulto da vida.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
O Ritmo do Outono 12
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