domingo, 23 de janeiro de 2022

Câmara discreta (2)

Autor desconhecido, Avenue des Champs Elysées, Paris c. 1870

Como era bela a vida, pensavam, ao percorrer com despreocupação a grande avenida, mesmo no centro do mundo. A geometria com que foi concebida, a disposição do arvoredo, a referência clássica inscrita no nome do lugar, tudo isso contribuía para uma sensação de leveza, para o esquecimento do que não se via, para o prazer de uma doce mobilidade tingida pela auréola divina. Quem ali estava, nesse lugar onde só os deuses têm acesso, não tinha dúvidas sobre quem era.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Haikai do Viandante (422)

Ivonne Sánchez Barea, Cienaga azul II, 1999

 Um pântano azul
cresce nos dedos da noite.
Céu de águas paradas.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Arqueologias do espírito 26

Émile-René Ménard, La Nube, 1896

Pelas nuvens chega-se a uma das mais arcaicas experiências de ocultação e de desocultação. Escondem o Sol e roubam aos homens a luz que os ilumina e permite a prevenção dos perigos. Ao serem levadas pelo vento, o retorno da luz torna-se uma epifania. Se escurecem e se combatem, os olhos ficam presos ao grande espectáculo, mas os corações temem a tempestade, a transformação em caos de uma ordem construída com dor e esforço. Se delas cai uma chuva plácida, a esperança desenha-se nos rostos, e das bocas solta-se uma acção de graças, como se ainda houvesse lugar para um amanhã.

domingo, 16 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 98

António Carneiro, Porto Manso, o Rio Douro em Ancede, 1927
Decomponho o dia
em seus frutos,
no que me chega
à mesa
e eleva a voz
em acção de graças.

Decomponho a noite
na promessa,
o ardente anúncio
da aurora
abrindo-me a mão
para o fruto de cada dia.

Janeiro de 2022

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Impressões 90. Neve

Burk Uzzle,  Winter Park, Central Park, NYC 1960

Eis a lívida claridade da neve, a que tudo transforma em mero esboço, como se a realidade perdesse a definição dos contornos e iniciasse a demorada viagem de diluição de si mesma. Perante a exuberância da brancura revestida com a glória do resplendor, a cidade não é mais que uma leve impressão, o vestígio de uma memória à beira de mergulhar no grande lago do esquecimento.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O sal do silêncio (72)

Jean Giletta, Oliviers et fruits, c. 1890
Em silêncio, a memória da oliveira reverbera em sua seiva. Ao florir, mergulhada no lento devir das auroras, abre o caminho para para a anunciação do fruto, que, emoldurado pelo verde, reina sobre a melancolia dos campos. Os homens esperam a hora em que maduro se entregue às núpcias sagradas, para que o seu sangue corra puro na boca que o espera.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Câmara discreta (1)

Thomas Miller, Hatton Hall, School for Young Ladies, Wellingborough, 1860s

Oferecem-se à câmara fotográfica numa coreografia meditada, num cenário onde tudo parecia perfeito. São actrizes por um instante. Depois, a vida voltará com o seu movimento e com todas as preocupações e temores, desejos e esperanças, tudo aquilo que ao pousarem esqueceram, para que o fotógrafo não lhes lesse o coração e a máquina não retivesse para a eternidade os segredos que nele se escondem.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Meditação Breve (173) O insulto

Vespeira, Parque dos Insultos, 1949
Há em todo o insulto uma desfiguração. Não do insultado, mesmo que se vise através da injúria redescrever-lhe a figura com contornos ominosos, mas do insultante. A acção de atingir o outro recai sobre si mesmo, dilui a própria figura, abre uma fenda no seu ser pessoa, por onde entra o vitríolo que a haverá de corroer. Nunca um insulto é desprovido de consequências.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 97

Caspar David Friedrich, Winter Landscape with Church, 1811
O fumo do Inverno
desce
sobre o jardim.

Os cedros reverberam
na memória
dos dias luminosos
da infância.

Tudo se suspende
na viagem
entre a invernia
que me traz
da casa do passado
ao porto do presente.

Janeiro de 2022 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Impressões 89. Tempo

Alex Teuscher, Time neverending, 2010
A linha do tempo. Ao ouvir a expressão, logo se imagina uma seta disparada do passado, voando em direcção ao futuro, uma linha recta interminável. O tempo humano, porém, pouco tem a ver com essa experiência. Avança, mas também parece voltar a um ponto anterior, num esforço de recapitulação. O eterno retorno do mesmo, porém, não deixa de ser uma ilusão. O melhor símbolo para a impressão que o tempo produz no espírito dos homens será a espiral. Conjuga progresso e retorno e, se olhada com atenção, manifesta o carácter abissal do tempo.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (421)

Kazimir Malevich, Apples Trees in Blossom, 1904
 Sob o azul dos céus
as macieiras florescem.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Meditação Breve (172) Cruzar os braços

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941

Um sintoma de cansaço, um sinal de expectativa, uma recusa de acção? Seja qual for o sentido que se dê ao gesto de cruzar os braços, ele nunca deixa de pertencer a uma fenomenologia dos actos ostensivos, daqueles que pelo seu acontecer querem indicar sempre uma outra coisa. É sempre um gesto que se liga àquilo que o transcende. 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (71)

Eugène Atget, Rue de l’Hôtel de Ville, 1921
O tempo quase podia ter sido suspenso e o que se vê, a rua, os prédios, a iluminação eléctrica, teria sido coalhado num instante eterno, num silêncio que voz alguma haveria de incomodar, não fora as rodas de um veículo caído em desuso começarem lentamente a rolar, arrastando atrás de si os segundos, depois os minutos e continuando por aí fora, num nunca mais parar da duração. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 96

Gerardo Rueda, Composición, 1959
Sobre a sombra
ergue-se
um dia de luz,
a longa espera
terminada,
o sussurrar do oceano
na memória,
o arder do silêncio
ao abrir-se
no arquipélago
do coração.

Dezembro de 2021 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Desabrigado

Weegee, Night Shelter, c.1938

Tinha chegado a onde nunca imaginara chegar. Estava só e descobrira que nenhum lugar fora feito, na realidade, para ser o meu lugar. Nenhuma desculpa podia apresentar no tribunal da consciência para me absolver da situação. Tão pouco seria sensato culpar qualquer entidade metafísica que me tivesse predisposto para a ruína. Escolhera, fingindo não escolher, o caminho que me levou a este abrigo. Por incúria, pela vertigem de um desejo de queda. Na hora em que me deitei no banco de madeira, estava reconciliado comigo. Abandonara tudo. Chegara ao centro de mim mesmo. Descobrira que a verdade de todo o homem é ser um desabrigado. Ao adormecer, sabia, pela primeira vez, o que era a vida. Poderia recomeçar. Sem qualquer ilusão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (70)

Frederick Sommer, Taylor, Arizona, 1945
Quando o sal da vida se retira e a ruína se apossa da realidade, resta a ordem inóspita de um silêncio hostil, fabricado nos interstícios do esquecimento, na distorção da memória, no sufoco de tudo o que retirou cada coisa da insignificância.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Meditação Breve (171) A alma da multidão

Alfred Eisenstaedt, Nightime view of crowds gathering outside the Steel Pier, 1941

Grandes querelas teológicas podem vir à luz quando se trata de saber se os indivíduos possuem ou não uma alma. Assunto obscuro e que dividirá, em qualquer credo, ortodoxos e heresiarcas. O que não será objecto de querela, pela sua evidência, é a existência de uma alma na multidão. É a alma de grupo que nasce mal os homens se juntam e cresce como um íman poderoso que, sem cessar, atrai novos membros. É essa alma que conduz as multidões em actos que só elas poderiam realizar, é ela que as leva para a casa que é a sua. Quando a alma, por motivo obscuro, perde a força ou desaparece, a multidão dissolve-se.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (420)

Hiroshi Hamaya, Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan, 1962
 Branca, pura, a neve
sobre o cume da montanha.
Incêndio de água.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 95

Esteban Vicente, Matices del rojo, 1986
O sopro suave do vento
empurra para longe
a sombra
povoada pelas camélias
do meio-dia.

O Sol sorri sobre a cal
do casario.
Sentada sob a tristeza,
uma mulher
sorri no fulgor do silêncio.

Dezembro de 2021

domingo, 12 de dezembro de 2021

Impressões 88. Luz

Thomas Hoepker, Inside the Pantheon. Rome, Italy, 1984

Também na obscuridade se encontra o divino. Basta que a luz irrompa e abra uma clareira na densa floresta das trevas. Nesse choque entre o claro e o escuro, entre a luminosidade e a cerração, de súbito manifesta-se a voz de uma alteridade radical pela qual se pode reconhecer a marca daquilo que é divino.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (69)

Brassaï, Le jardin des Tuileries la nuit, Paris, 1931-32
Eis a noite que sobe do fundo da terra, do abismo que ninguém conhece, para a envolver com o sal da escuridão, para trazer um instante de sossego, para encerrar dento do mistério aquilo que à luz do dia era claro e sem enigma.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Meditação Breve (170) O enigma da esfinge

William Holman Hunt, The Sphinx, 1854

Não há qualquer enigma na esfinge. O enigma da esfinge reside naquele animal que, apesar de ainda ser uma animal, é portador de razão. É desta que nasce o enigma da esfinge, como todos os outros. O espanto, a perplexidade, o desejo e os limites da razão concorrem para que, de súbito, surja no pensamento do homem uma esfinge e, no terror do seu coração, o enigma.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (419)

Vincent Van Gogh, El puente de Trinquetaille, 1888
 Pontes sobre os rios
de súbito unem as margens.
Fogo e fantasia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 94

Charles Émile Jacque, Shepard with Flock
Pequenos pastores de barro
apascentam rebanhos
sobre o musgo
verde do presépio.

Esperam a noite que trará
luz à luz do dia,
música
ao súbito silêncio dos anjos.

Dezembro de 2021

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Impressões 87. Néon

Alfred Eisenstaedt, Decorative multiple exposure of neon signs at night, 1937
Nada mais equívoco do que o néon na noite. Anuncia-se com mais pura e luminosa das luzes e não passa de uma emanação exuberante daquilo que nas trevas há de mais obscuro.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Meditação Breve (169) A condição humana

Frank Horvat, Beggar, Calcutta, India, 1953
Eis a nossa condição. Somos todos, de um ou de outro modo, pedintes. Uns estendem a mão para a esmola, outros para o assalto, outros ainda para o fruto do esforço. Só por manifesta cegueira se poderá pensar que existe uma diferença essencial entre as diversas modalidades de estender a mão. São moralmente diferentes, mas ontologicamente todas elas são a manifestação da nossa radical finitude, da nossa nunca superada dependência, da nossa nunca conquistada autarquia. Ricos e pobres, reis e súbditos, todos são pobres pedintes.

sábado, 27 de novembro de 2021

O sal do silêncio (68)

Aaron Siskind, Chicago Facade 7, 1960

Na repetição do idêntico não existe apenas a cadência de um ritmo, mas uma aproximação assimptótica ao silêncio, pela contínua eliminação do diferente, o qual, com aquilo que tem de inusitado, traz a mácula do ruído ao sal da serenidade.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Histórias sem nexo 27. Sem grinalda

Josep Guinovart, Agramunt IV, 1976

Grácil a Graciela, no grémio, grafou grande grosseria. Gregário, o Gregório grifou como um Graco. Grunhiu o Grimaldo, o grotesco, com a grua na greda, enquanto a grossa Griselda, em greve, greguejava com grima. Em grupo, a gripe grudou-os na gruta gris. Gritaram, grilaram, griparam, sem grinalda.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A Sarça Ardente - 93

Saul Steinberg, November, 1965
Os dias de Novembro
deslizam, mudos,
pela sombra
das acácias,
pelas folhas secas
das tílias,
pelos fios que vão
dos meus olhos
à luz do teu coração.

Novembro de 2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Meditação Breve (168) A árvore da vida

Diane Arbus, Xmas tree in a living room, Levittown, Long Island, 1963
Quando se tenta perceber quando a árvore se imiscuiu na vivência do Natal, perde-se o essencial dessa associação. Simbolizar o nascimento de Cristo pela árvore é indicar que se a queda dos homens está associada a uma árvore, a da ciência do bem e do mal, então a sua salvação também depende de uma outra árvore, como se a criança nascida no presépio de Belém se enraizasse na terra, que é a carne, para se elevar ao alto e, desse modo, ser a nova árvore que supera a que foi motivo de queda para os homens. Para além da sabedoria do bem e do mal, diz-nos a árvore de Natal, existe uma outra, a da ciência da Vida, cuja interdição agora está levantada.