segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Impressões 84. Rasto sombrio

António Areal, Opus n.º 59, 1963

Um torvelinho de ervas secas vistas ao longe. Talvez uma imagem do aparelho neuronal com os seus jogos sinápticos. Uma tempestade no mar captada por uma velha máquina fotográfica. O turbilhão indiferenciado e caótico que liga o nada ao ser. Como tudo na realidade se confunde e, na mais diferenciada diferença, se encontra o idêntico, esse rasto sombrio da unidade primordial.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

O sal do silêncio (65)

Brett Weston, Forest, Netherlands, 1971
O silêncio canta por dentro da floresta. O silêncio canta a floresta. O silêncio é a floresta. No princípio era o canto silencioso, depois o canto deixou que o ritmo transbordasse. Ao transbordar, o ritmo encarnou, tomou corpo, de pequena semente transformou-se em árvore. Ao reproduzir-se, a árvore quebrou a sua solidão e tornou-se floresta. Se o vento lhe toca, ouvimo-la cantar por dentro do silêncio. 

domingo, 25 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 87

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os dias invisíveis em que o sol
iluminava o silêncio
ou do céu caía
uma chuva para sossegar
a inquietação do olhar.

Esperava-te, ó voz inaudível,
para que no teu eco
escutasse o restolho
da verdade
ou a promessa da redenção.

Julho de 2021


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Meditação Breve (163) Um caminho único

Roberto Domingo, Camino de la Muerte, Encierro en San Fernando, 1913

Ao ouvir a designação caminho da morte, de imediato, a consciência, talvez em busca de uma tranquila serenidade, pensa, como oposto, o caminho da vida. A presunção serena é, porém, abalada pela incerteza. Uma voz vinda do fundo de si mesmo sopra que não existem opostos os caminhos da morte e da vida, mas que são sempre um e o mesmo caminho. Ao caminhante foi dado o caminho, mas a ele cabe escolher se faz dele a senda que conduz à morte ou a via que leva à vida.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Haikai do Viandante (414)

James Whistler, Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights, 1872

 A luz sobre as águas
traz a memória da noite.
O mundo adormece.

sábado, 17 de julho de 2021

O sal do silêncio (64)

Frederick Sommer, Rock, Utah, 1940
O trabalho silencioso da natureza esculpe os mais inesperados objectos, retira-os da matéria-prima indiferenciada e configura-os para que, chegada a hora, se abram para os olhos espantados dos homens. Essa escultora secreta nunca pára o seu trabalho, como se fosse animada pela esperança vã de que sempre haverá olhos humanos para contemplar os seus artefactos.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Impressões 83. Reflexos da eternidade

Edward Weston, Near Neshanic, New Jersey, 1941

Há lugares onde o tempo parece ter suspendido o seu caminho. Neles reflecte-se a eternidade. São paisagens sóbrias que se escondem dos olhares ímpios, incapazes de perceber a sacralidade que ali se manifesta, o que por detrás da natureza e da humanidade espreita através delas. 
 

domingo, 11 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 86

Vincent van Gogh, Road with Cypress and Star, 1890
A casa onde o lume se guarda
abriu-se
e o espírito soltou-se
sobre o silêncio
que leva da infância à sabedoria.

A grande viagem pelo oceano
ilumina-se
nesse fogo de Pentecostes.
No navio, olhamos
o céu e descobrimos a Estrela Polar.

Julho de 2021

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Meditação Breve (162) Viver na terra

August Sander, Peasant woman, 1914
A terra oferece a quem lhe dedica a vida um humor compassivo e uma funda sabedoria. Não aquela que nasce dos livros, mas uma outra que permite compreender o que neles está. Quando as mãos repousam, o olhar ri não sem uma leve ironia e o coração abre-se à serenidade da existência.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Haikai do Viandante (413)

Fernand Khnopff, At Fosset Under the Fir Trees, 1894
Ouve-se o silêncio
entre as sombras da floresta.
Os deuses esperam.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

O sal do silêncio (63)

Francesca Woodman, Untitled, 1975-80
A ruína da casa, a queda no abismo, o olhar espantado num corpo em perigo. No silêncio nascido da expectativa habita a esperança e o terror, o desejo se suspender o tempo e, por encanto, voltar ao lugar de onde tinha saído.
 

sábado, 3 de julho de 2021

Biografias 21. O homem do marisco

 Francis Wu, Shellfish Catching at Dawn, undated
Não tinha nome, pelo menos ninguém o conhecia por outra designação que não a do homem do marisco. Ele própria duvidava se alguma vez lhe fora dado um nome. Toda a sua vida se circunscrevia à função que tinha. Levantar-se cedo, apanhar o marisco, distribuí-lo, descansar, para no outro dia tudo recomeçar. Os grandes momentos da sua existência eram aqueles em que olhava as águas e se via nelas reflectido. Tinha a esperança que a sua imagem ganhasse vida e viesse desse mundo líquido para o ajudar. Nesse momento, dar-lhe-ia um nome e os dois passariam a ter um nome.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 85

Caspar David Friedrich, Summer, 1826
Chegou o tempo do lume,
do sol incandescente
sobre as paixões do corpo,
dos fogos matinais
a arder na floresta
branca da memória.
Chegou o tempo de a sarça
arder na claridade
do dia, na sombra da noite.

Julho de 2021

terça-feira, 29 de junho de 2021

Impressões 82. A paisagem agreste

Albert Gleizes, Paisaje, 1914

De súbito a paisagem fende-se, o olhar geometriza-se e aquilo que o hábito dava a ver como a realidade torna-se agora numa impressão. Não numa mera impressão difusa, de contornos esbatidos como se fosse um esboço, mas uma impressão viva de arestas cortantes, agrestes, prontas para fazer sangrar o incauto que entre sem permissão pela paisagem dentro.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

À procura do lugar

August Sander, Courtyard Musicians, 1928
Os músicos vestiam-se com o esmero exigido pelas grandes salas e no pensamento havia ainda uma réstia de esperança, o desejo de um milagre, um sonho que teimava em persistir noite após noite. Traziam sobre os ombros o peso de uma vida, as ruas por onde vaguearam à procura de um lugar para a sua música. Pátios, praças, esquinas de rua, grandes avenidas, vielas de frequência duvidosa. Paravam e começavam o recital. Havia quem os olhasse de soslaio, quem parasse um instante, quem deixasse cair uma moeda, quem passasse indiferente. Então, retomavam o caminho à procura do lugar onde a sua arte seria sublime e a sua música se confundiria com a das esferas celestes. Quando o vislumbraram, entraram num labirinto e perderam-se no caminho.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Haikai urbano (68)

Paul Himmel, Brooklyn Bridge View, 1950

Da ponte, um anjo
vigia o fluir das águas.
 Cidade sombria.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 84

Francisco Díaz de León, Canción de verano, Aguascalientes, 1955
O dia desenha uma elipse
ao envolver
de luz
o rumor das ruas.

Desbaratada, a sombra
esconde-se
sob a copa
verde das tílias.

Quem chega à janela
pensa ver
o mar
na cinza do horizonte.

Depois, tudo se funde –
a luz, a sombra,
as tílias –
o solstício de Verão.

Junho de 2021

 

sábado, 19 de junho de 2021

Biografias 20. A esperança que a move

Irving Penn, Vogue cover, 1950
Foi um longo e doloroso exercício. A partir do momento em que a beleza começou a decrescer, resolveu apagar-se. Como não era dada a gestos teatrais, recusou a ideia de suicídio. Concentrou-se apenas no seu corpo, meditando continuamente na invisibilidade. A primeira vitória foi alcançada quando descobriu a palidez que se apoosava dela. A segunda veio ao notar como estava translúcida. Se o corpo de tornasse transparente, a biografia haveria de desaparecer, pensou. Ainda é essa a esperança que a move.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O sal do silêncio (62)

Andreas Feininger, Silhouette of the Statue of Liberty lit only by her torch, 1943
O mais intrigante dos mistérios humanos é o da liberdade. Como é que num universo regido pela estrita determinação emergiu um ser dotado de vontade livre? Nunca deixa de espantar como na escuridão silenciosa da necessidade emergiu o sal luminoso da liberdade.

sábado, 12 de junho de 2021

Meditação Breve (161) Auto-retrato

Florence Henri, Self portrait, 1928

Auto-retratar-se é pôr-se à distância, afastar-se e alienar-se de si mesmo. Pensa-se, por vezes, que o exercício do auto-retrato é um modo de conhecimento de si. Essa crença, porém, não passa de uma ilusão da consciência reflexiva. Procura-se a ignorância de si mesmo, pois o retrato não é a própria pessoa, nem dá dela a sua realidade. Pelo contrário, aniquila-lhe o corpo, prende-a no espaço, retira-a da duração e esconde-lhe o espírito. 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Diálogos morais 61. Um cavalheiro de indústria

Modesto Ciruelos González, Abstracción, 1975
- Olha, estás a ver o que se passa?
- Não estou e não quero ver.
- Apesar de tudo, nunca deixas de ser desagradável.
- De tudo, o quê?
- Do carro, do casaco, do dinheiro, enfim.
- Não te agrada? Podes despir o casaco e ires a pé.
- Tanto esforço e nem um vislumbre de cavalheirismo.
- E depois?
- Um pouco de gentileza e o mundo seria melhor.
- E achas que eu estaria aqui sentado, se fosse gentil?
- Nunca deixaste de ser um cavalheiro de indústria.

terça-feira, 8 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 83

Edward Burne Jones, El Lamento, 1866
A música dos dias luminosos
ondula tocada
pelo vento.

Os acordes tremem,
são folhas
de árvores cobertas

pelo ouro nascido
da hesitação
entre som e silêncio.

Junho de 2021

domingo, 6 de junho de 2021

Micronarrativa (53) Encostado à parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Exausto, virou o carro-de-mão e encostou-se à parede. Estou derrotado, disse. Também eu luto diariamente com o anjo. Também me deram o nome de Jacob, mas não foi a minha coxa tocada pelo adversário, foi todo o corpo. Por isso, não recebo a bênção, nem tomarei o nome de Israel, nem de mim sairá uma nação. Serei um grão de areia no deserto. O anjo que me calhou não era o anjo de Deus, mas aquele que se apodera dos homens para os encostar à parede e perdê-los.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Biografias 19. A mulher da máscara

Man Ray, Noire et Blanche (Black and White), 1926

Foi uma longa e vagarosa viagem. Não é fácil vir da periferia e chegar ao centro de si mesmo. Exausta, ela parece dormir, mas não é verdade. Apenas pensa como foi difícil arrancar a máscara que sempre trouxera para deixar que o rosto, o seu próprio rosto, se manifestasse e se abrisse para os olhos de quem o quisesse ver. Não há metamorfose, medita, que não deixe à porta da morte e da ressurreição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Histórias sem nexo 26. Irina e Irene

Vincent Van Gogh, Duas mulheres no bosque, 1882
Irra, Irina, não ias à igreja e imaginavas hibernar em ímpia hierarquia ou em impávido império, ó infeliz idólatra. A Irene, impoluta irmã, imiscuiu-se na hipertrofia da irresponsável ilusão e, com ímpeto, idealizou o isco para te impedir a impiedade, a ida hílare para o hiante inferno. 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

O sal do silêncio (61)

Marc Chagall, The Flying Carriage, 1913

A fantasia nasce por dentro do silêncio. Quando o espírito detém o torvelinho dos reflexos da vida quotidiana e deixa a mente apaziguar-se, então as mil imagens recebidas ao acaso começam a estabelecer estranhas relações, até que novas realidades, nascidas do secreto prazer da hibridação e da metamorfose, se tornam o sal da vida.

sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.