quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (45)

Ernst Ferdinand Oehme, Procession in the fog, 1828
O aroma do silêncio desprende-se do nevoeiro. Os homens caminham em procissão para um destino que não vêem e não conhecem. Guia-os o sal da própria voz que se solta da mudez e se eleva em espirais de névoa ao azul onde repousam os astros esquivos da madrugada.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Meditação Breve (146) Ao crepúsculo

Caspar David Friedrich, A Walk at Dusk, 1832-35

O crepúsculo acolhe o solitário que caminha, não porque este tenha um destino, um lugar onde alguém o espera, mas porque o espírito encontra aí a sua hora, nesse momento indeciso entre a luz e as trevas, nessa metáfora sempre viva de toda a condição humana.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 59

Lowell Birge Harrison, Christmas Eve
O Natal consumou-se
entre o fogo do desejo
e a esperança
tocada pelo cristal
das esferas celestes.

Os dias voltam a crescer
e a natureza cuida
que uma rosa
de vinho se abra
na água do silêncio.

Dezembro de 2020

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 21. Tresa, a trambiqueira

Albert Gleizes, Busto de mulher, 1920
Tresa, a trácia, trocou as trindades pelo trono. Uma treda, uma trêfega traidora. Troviscou sobre os trevos, as trufas e o tráfego. Um truão, no trovejo, troou: Tresa, ó trouxa da Trácia, truca, truca, senão troco-te, ó trambiqueira que te trombicaste.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Haikai do Viandante (406)

Erik (Dorn) Bodom, Høyfjell, 1871

As águas repousam
entre murmúrios de luz.
No céu, sombra e pássaros.

sábado, 2 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (44)

Stanisław Witkiewicz, Mountain wind, 1895

O vento é a voz do silêncio. Umas vezes, leve e suave, um murmúrio na aurora. Outras, desabrido e cortante, um sermão pela tarde. Outras ainda, irado e tempestuoso, um pesadelo na noite. Se o coração não se cala, o silêncio não pode emudecer.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 15

Edwin Deakin, Campfire in the Redwoods, 1876
Na floresta, uma fogueira ilumina a noite. Os olhos perdem-se na dança das labaredas, o coração bate compassado e tranquilo, as vozes silenciam-se, enquanto o espírito desce pela corda da memória, de uma memória bem mais antiga e funda do que a de cada um, e mergulha num tempo em que o fogo era a imagem divina, protectora e irada. E nessa memória, cada um pressente, no silêncio da noite, a verdade que se abriga no crepitar da madeira e na inconstância do lume.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 58

Adolf Gustav Schweitzer, Winter Landscape with Brushwood Gather
Dezembro veste-se de vésperas
e deixa os pés pisar
a cal dos caminhos.

Passa entre ruas antigas
e escuta a voz
dos que ali fizeram morada.

O fumo do passado rumoreja
em volutas de seda,
em céu de brancura azul.

Dezembro arrasta o peso dos dias
e traz uma estrela
para cintilar no ano que há-de vir.

Dezembro de 2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Acerto de contas

Richard Stacks, A Drink in the Rain, 1955

Reparei nela no momento em que, sob chuva forte, parou defronte da pequena coluna de pedra, dela fez brotar a água e, como criança afogueada, a bebeu. Senti uma incongruência inexplicável e segui-a. Inventava caminhos que desembocavam noutros, que, dados alguns passos, afluíam ainda noutros. A certa altura, percebi que entrara num labirinto e que apenas podia confiar em que ela conhecesse a saída. Chegada a uma pequena praça muralhada, parou. Aproximei-me. Perguntou-me: não me conheces? Não, respondi. Uma vez dei-te um fio de lã em troca do teu amor. Salvaste-te do terrível labirinto e abandonaste-me. Agora devolvo-te a promessa de amor e levo comigo o fio. Como saí dali e posso rememorar a aventura, não o sei.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Impressões 68. Xadrez sob azul

Noronha da Costa, Composição Azul, 1970
Sobre o tabuleiro de xadrez da existência paira uma névoa de azul. Debaixo do véu, personagens compõem um drama feito de reis e rainhas, cavalos à desfilada e torres por conquistar. Os bispos abençoam os pequenos peões que nunca chegarão aos estribos do cavalo para, com a sua lança de água, matarem de sede o rei ou, numa súbita metamorfose, se tornarem diligentes rainhas.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Meditação Breve (145) Criação

Marta Soares, Sem Título XX, 2000
Em todo o processo de criação há uma luta contra a obscuridade, como se tudo fosse uma noite insondável e um pobre artesão combatesse contra a resistência dos materiais e a ameaça do dragão, para que um novo som, uma nova figura, mil novos mundos saíssem das trevas e viessem à luz.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Micronarrativa (45) O beijo

Robert Doisneau, Le Baiser de l'Opera, 1950
Ainda não o sabiam, pois muitas são as coisas que se escondem aos olhos dos homens e mais ainda as que o coração não consegue desvendar. Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, ela ofereceu-lhe a boca, os corpos vibraram e a vida oscilou. A emoção do primeiro beijo era tão forte que não lhes permitia compreender que era o último.

sábado, 26 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 57

Emil Nolde, Entardecer de Outono, 1924
Aproxima-se o solstício
de Inverno.
Os dias diminuem
para que a noite cresça
sobre as heras
do muro da madrugada.

Um vento suave desliza
das estrelas,
empurra as folhas caídas
para o recato
do pensamento,
para o murmúrio da melancolia.

Dezembro de 2020

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 14

George Inness, Evening Landscape, 1862

Esses momentos em que a luz é já um exercício de nostalgia e a noite a promessa pronta a cumprir-se, essa hora indecisa do crepúsculo inscreveu-se fundo no fundo do espírito dos homens. Entre a beleza do dia que acaba e o terror das trevas, o coração silencia-se por instantes e uma estação no calvário da existência ganha então, aí mesmo, um lugar, onde prepara a ressurreição da luz, no dia que se seguirá à noite.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (7)

Alexandre Calame, L'Hiver, 1851

Coberta de neve, a Terra dorme suspensa à espera do que virá. Tudo emudeceu, os animais terrestres, as aves do céu, os rumores semeados pelo vento na ramagem despida das árvores. Noite do mundo, silêncio onde germinam os esporos de onde brotará, para súbita e selvagem sagração, a rosa de cristal da Primavera.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (43)

Edward Steichen, The Brass Bowl, 1904
Uma sombra solene de cansaço desliza-lhe dos olhos, perde-se num lugar invisível, enquanto o corpo resiste à tentação de se deixar cair para o fundo negro, o lugar onde o silêncio benévolo é corroído por outro, obstinado e terrível, que se ergue como um monstro pronto a devorar todas as promessas que se ocultam nos olhos de uma mulher.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Histórias sem nexo 20. Zenão e Zulmira

Francis Picabia, Animação, 1914

A zebra do Zenão zurra aos ziguezagues, a Zulmira, de zígnia, zabumba, zabumba. Se um zéfiro zune zelador sobre a zelosia dos zelotas, logo a zibelina do Zoroastro zuca com zelo no zombeteiro zumbido dos zonzos.
 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 56

Hafidh Al-Droubi, Harmony in Blue, 1966
A vagarosa inocência
do crepúsculo
cobre a cidade
com sílabas de luz
presas ao aroma do poente.

A noite fende a muralha
do dia e lança
os seus exércitos
de erva
sobre a placidez das praças.

De carro, os novos Atridas
voltam a casa,
para a incerteza
da felicidade,
para a segurança da sorte.

Dezembro de 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

Diálogos morais 53. Cala-te

David Seymour, One Child of a Large Family with a Homemade Doll, Vienna, Austria, 1948
- Estou zangada.
- És uma inútil, a quem tenho de transportar.
-
- Nem reages, és má, mesmo muito má.
- Não passas de um monte de trapos e serradura.
-
- Fala comigo!
- Quando preciso de falar com alguém, apareces tu, uma muda.
- Cala-te, não posso ouvir-te.
- Sempre falas.
- Não, mas oiço bem.
- Agora disseste palavras.
- Disse, mas isso não é falar. Cala-te e dorme.

sábado, 19 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (6)

Erik (Dorn) Bodom, Høyfjell, 1871

O fulgor do dia esvai-se, perdido no ondular das águas. Pássaros rasgam o horizonte e voam sob o trémulo manto de nuvens. A noite estende as suas armadilhas de veludo sobre a terra que, sonâmbula, se entrega sem contenda, o coração a latejar e o espírito exaurido pela azáfama do dia.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Pintura e haikus (20)

João Hogan, Paisagem, 1960

Caminhos de areia
no silêncio da paisagem.
Vias de solidão.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Tens de voltar

Alfred Stieglitz, A Snapshot, Paris, 1911

Um acaso pode quebrar o feitiço que nos retém no presente. Um dia, vi-me perdido no meio de uma cidade onde todos se vestiam de forma estranha. Uma mulher, um rosto familiar, chamou-me a atenção. Cheguei à fala com ela. Perguntou-me a razão por que me vestia de modo tão inusitado e olhou-me com condescendência. Falou-me da família, da filha que tinha nascido no ano anterior. Disse o nome dessa filha e eu estremeci. Quis saber o local e data de nascimento, embora eu já o soubesse. Tinha-o escutado à minha avó, era a curiosa história do seu nascimento. Eu falava com a mãe dela, a minha bisavó que morreu trinta anos antes de eu nascer. Divertida, exclamou: conheci-te mal te vi. O tempo é uma ilusão, mas tens de voltar para a tua ilusão. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 55

Alexander Rothaug, Curse
A melodia do silêncio
bate à porta
e entra pela casa
do crepúsculo.

Escuto-a na lonjura
do oceano,
no pássaro poisado
no coral da cerejeira.

Danço-a na leveza
da manhã,
se as mãos te tocam
na argila do coração.

Novembro de 2020

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Impressões 67. Luzes do Norte

Sydney Mortimer Laurence, Northern Lights

A luz é um animal preso à metamorfose, muda de lugar para lugar, construindo mundos que nunca deixam de surpreender quem os observa. Aos amarelos do Sul, contrapõe os azuis do Norte. Ali os homens sonham, entre planícies gélidas tocadas de anil, pequenas cabanas, abrigos onde arde e ruge o laranja avermelhado do fogo que os salvará.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 13

Stanisław Witkiewicz, Spring fog, 1893
A dissimulação da realidade sob um manto de nevoeiro, a suspeita de que alguma coisa reside naquilo a que os olhos, não sem pena, descortinam como esboços, o temor de um perigo velado pela cortina da névoa ou a expectativa de algum bem dissimulado entre a neblina, tudo isso abriu o espírito para a dimensão do mistério, o que existe fora do homem e o que reside em si, sempre oculto na penumbra do pensamento ou no crepúsculo da imaginação. Adentrar-se pelo manto húmido da névoa e assim se abrir ao segredo do mundo, ao enigma de si. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (42)

Peder Mørk Mønsted, Paisagem de Inverno, 1917

Quando o Inverno desce sobre a Terra, traz consigo a rude necessidade, e em todo o lado, campos ou cidades, a vida torna-se mais rústica, mais precária, mais autêntica, como se o frio fosse uma provação iniciática e, a quem a suportasse com êxito, abrisse a porta para um outro mundo, mais imponderável, mais luminoso, mais próximo da verdade que a todos espera no fim do caminho.

sábado, 12 de dezembro de 2020

A casa e o mundo

Enzo Sellerio, Vizzini, Italy, 1955
Se foi sempre louca? Ó não. Não apenas era a rapariga mais inteligente na escola como, ao crescer, se tornou a mais bela do bairro. O coração perdeu-a. Tinha pretendentes, claro. Apaixonou-se por um, o menos indicado segundo os padrões da família, e, como sabe, as famílias dos meios populares têm por aqui, ainda hoje, tantos anos passados, um poder excessivo sobre o futuro dos filhos, mais ainda sobre o das filhas. Os pais fecharam-na na mansarda e disseram-lhe, não sem ironia, que bem podia esperar pelo eleito. Morreram há muito, mas os irmãos não a libertaram. O pretendente desapareceu do bairro sem explicação. Ela? Cumpre as ordens dos pais. Continua à espera que ele venha. A janela da mansarda tornou-se a sua casa e o seu mundo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 54

Júlia Ventura, Geometrical reconstructions and figure with roses #5, 1987
Espero-te na casa da harmonia,
o areal coberto de limos,
o lume a fulgurar
na montanha da memória.

Os dias são aves apressadas,
esquecidas do ninho
onde deixaram os ovos
a incubar o fruto do futuro.

Senta-te no carrossel do tempo.
Ouve a música da terra
e leva aos lábios a taça
de onde escorre o vinho do vento.

Novembro de 2020

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Haikai do Viandante (405)

Emile Claus, La route après l'orage, 1869
 Estrada deserta
perdida na tempestade.
Rumor no caminho.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (5)

Arseny Ivanovich Meshchersky, Winter. Icebreaker, 1878

Também a terra se entrega nas mãos gélidas do Inverno. Tudo se torna mais agreste e uma beleza contida germina nas paisagens frias, como se a realidade se tornasse mais secreta, mais profunda, menos frívola, menos volúvel. Espera silenciosa por uns olhos que a vejam e se contaminem com a promessa que nela se esconde.