quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (337)

Zao Wou-Ki - 10-2-76

Paisagens de gelo
na grandeza do granito.
Rude rumor d'água.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (651)

Georgia O'keeffe - Era azul y verde (1960)

651. ondas de azul

ondas de azul
e verde
traçam rios
de erva
e água
na vertigem
do céu
a cândida candura
das nuvens

(14/12/2016)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Ex nihilo

Kenneth Noland - Ex-Nihilio, 1958

Ex nihilo não se refere a esse nada de onde o mundo, através da criação divina, teria sido tirado, mas ao nada que a cada momento nos permeia e ao qual nos subtraímos por um esforço contínuo. Somos nós, que em temor e tremor, nos arrancamos ex nihilo até que esse nada nos vença ou, raras vezes, descubramos que esse nada somos nós.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Meditação breve (48) - Procissões

Paula Modersohn-Becker - Procession of Wailing Women (1902c)

A mágoa, numa cultura como a que se desenvolveu no Ocidente, é um assunto íntimo e ao qual mesmo os que nos são próximos devem ser poupados. A procissão, quase esquecida nas práticas sociais, tem, nesta situação, um papel central. Ela é, na verdade, um dispositivo para tornar pública a dor que corrói a intimidade e, nessa publicidade, a dissolver. 

domingo, 24 de setembro de 2017

Meditação breve (48) - Devaneio

Francis Wu - The Dreamer

No devaneio do sonhador em estado de vigília, não é este que se evade para outro mundo. É um mundo que lhe é estranho que o invade e, como num rapto, se apodera dele.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (336)

Gustave Courbet - Le Château de Chilon, 1874

Montanhas e águas
sobre o mistério da tarde.
Silêncio no lago.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (650)

Frantisek Kupka - Ensayo, robustez (1920)

650. ensaio um passo redentor

ensaio um passo redentor
na robustez
da eternidade
e oiço o canto
das estrelas
a poisar no jardim
que estremece
sob o pálido pavor
dos rubros pés de deus

(14/12/2016)

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Meditação breve (47) - Contemplativos

Charles Gatewood

O mais surpreendente naqueles que são contemplativos não é o facto de estarem arredados da acção e dos negócios humanos.  O que surpreende é a sua contemplação balançar sempre entre a aparência da indiferença e a prontidão com que respondem a uma solicitação de quem deles se aproxima.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Água que corre

Paula Modersohn-Becker - Landscape with Marsh Channel (1899 )

Como o fogo, também a água que corre exerce um grande fascínio sobre o espírito do homem. Ficar a ver passar as águas de um rio conduz os homens a uma experiência muito arcaica. Não é a antiguidade da experiência, porém, que a torna fascinante, mas o jogo de espelhos que ela opera. O espírito olha o fluir da água e reconhece-se a si mesmo. O rio de Heraclito é já uma solidificação dessa experiência, uma tentativa de racionalizar a experiência da fluidez do próprio espírito humano, mas este, como a água, recusa-se ao estado sólido e logo escapa do contorno da figura que o prende e parte em busca de si mesmo, para além das múltiplas figuras que vai tomando.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

As moradas do espírito

Walker Evans - Apartment Building Façade with Horse-Drawn Carriage, Sixth Avenue, New York, 1934

Múltiplas são as moradas que aguardam o espírito e em todas elas ele demorará o tempo de reconhecer que essa não é a sua morada e que uma outra o espera, num caminhar sem fim nem quietação.

domingo, 17 de setembro de 2017

O caminho sem fim

Alexej Titarenko - St. Petersburg, 1998

O exercício da metamorfose é a natureza do espírito. Quando perde a elasticidade e se petrifica, morre. É uma estátua de sal. Se, como Lázaro, for ressuscitado, espera-o o caminho infinito da transformação. Nenhuma casa é a sua casa, nenhum porto o abriga, nenhuma figura é a sua figura. O lugar onde chega é já aquele de onde deve partir. Além é sempre aquilo que o espera.

sábado, 16 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (649)

Frantisek Kupka - Encuentro (1919)

649. o centro do silêncio rosna

o centro do silêncio rosna
se encontra
no orvalho
uma mão de caruma
e ladra
como um ladrão
sabe ladrar
à porta de pedra
desfeita
no feitiço da linguagem

(13/12/2016)

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (335)

Jan Sudek

Os ramos despidos
na sombra do meu olhar.
Espero o inverno.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Meditação breve (46) - Rede

Albert Renger-Patzsch - Crab fisherman (1927 )

Transportamos a rede na qual, incrédulos, nos enrolamos.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Máscaras e armaduras

Charles Clifford - The Armor of Philip III, 1866

Fala-se muitas vezes de máscaras sociais, estando estas ligadas aos diferentes papéis que os seres humanos desempenham. São um dos artefactos cénicos que são mobilizados na vida social. Nelas está sempre presente a dimensão do disfarce, o qual nos permite encarar de forma menos traumática as interacções que são exigidas nos espaços públicos e privados em que vivemos. A questão é que a máscara, sem que o pensemos, transforma-se muito cedo em armadura. Um dispositivo de defesa, de protecção, mas também de ataque. O que dá solidez às máscaras sociais é o facto de elas serem armaduras disfarçadas, armaduras mascaradas. Proteger-nos do perigo e conquistar vantagens, eis o programa da nossa animalidade. Para chegar à vida do espírito não basta tentar arrancar o disfarce, a máscara, é preciso perceber o que se esconde nele. E o que se esconde não é um suposto verdadeiro ser, mas a armadura do combatente, o sinal do seu desejo de conflito.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Meditação breve (45) - Fogos de artifício

Hernando Viñes - Feux d'artifice (1954)

A generalidade das actividades, mesmo as mais sérias, a que os homens se entregam não passam de fogos de artifício. Iluminam-nos por um instante para que eles esqueçam da escuridão que os envolve e os habita. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (648)

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

648. à volta da linha

à volta da linha
figuras
de mosto fermentam
na cripta
da memória
à volta da linha
a lepra do dia
borda-se
em madeira e
vésperas de cal

(13/12/2016)

domingo, 10 de setembro de 2017

Haikai urbano (20)

Edward Hopper - La ciudad (1927)

Vultos pela rua
passam no frio do silêncio.
Um grito ao meio-dia.

sábado, 9 de setembro de 2017

Meditação breve (44) - Concórdia

James Brooks - Concord (1975)

A concórdia não é a ausência de conflito, uma harmonia nascida da inexistência de oposições. A concórdia é o resultado do exercício de aproximação que transforma os outros, irredutíveis na sua materialidade, em próximos pelo espírito. Se o corpo separa os homens e os abre ao conflito, o espírito, ao torná-los próximos apesar da discordância e do conflito, abre-lhes o difícil caminho da concórdia.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Meditação breve (43) - Quase Negro

Gustavo Torner - Casi Negro

Esse resquício de luz que separa o quase negro da escuridão total não é sinal do caminho que falta percorrer até à treva absoluta. É antes a prova de que a luz persiste inabalavelmente nas piores situações e de que a noite nunca será plena.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Meditação breve (42) - Labirinto

Lucio Fontana - Ambiente spaziale (Labirinto bianco) (1968)

O labirinto não é uma provação com que alguns são confrontados. Labirinto é aquilo que cada um atravessa no decurso total da sua vida. Incerta não é a saída do labirinto mas a paisagem que encontra ao sair.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (647)

Frantisek Kupka - Alredor de un punto (1911-12)

647. à volta do ponto

à volta do ponto
a lua treme
de mágoa e raízes
roídas
à volta do ponto
a gramática
de uma camélia
desfolha-se
à volta do ponto
na cabeça rutilante
da minha loucura


(13/12/2016)

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (334)

Artur Pastor - Atlantic ocean, not dated

Contemplo nas águas
o rolar sombrio das ondas.
As horas deslizam.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Meditação breve (41) - Tradições

Thomas Hoepker - A geisha in traditional oiran dress in a 17th century tea house. Kyoto, 1977

Podemos pensar as tradições como persistências do passado no presente devido à resiliência do hábito social. Mais adequado seria pensá-las como âncoras do presente lançadas nas águas do passado.

domingo, 3 de setembro de 2017

Uma degradação meticulosa

Leonard Misonne - Impressionistic photography (photogravure), 1942

As mulheres não se movem. Estão ali há muito, prendendo nas mãos os guarda-chuvas. Não só elas, mas tudo o que vê. Nem vento, nem chuva a cair, nem água a deslizar no caminho ou, sequer, nuvens a vaguear pelos céus. Tudo está, há muito, tomado por uma imobilidade e, contudo, o tempo passa e aquilo que ali está é arrastado por ele. Como? Não sei explicar o processo, mas pode observar o resultado. O que vê é já uma sombra, uma mera impressão daquilo que um dia foi nítido, tão nítido que parecia real. O movimento é uma ilusão, penso. O que acontece é que tudo, apesar de imóvel, viaja, através de uma degradação meticulosa, da nitidez para o vazio, para sucumbir na ausência. Só isso.

sábado, 2 de setembro de 2017

Destruições e escombros

Edward Weston - Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939

Há uma tendência para ver a vida do espírito como alguma coisa de glorioso, onde o viandante vai de luz em luz, de glória em glória. A esta fantasia edulcorante contrapõe-se uma realidade feita de destruições e escombros, ambos dolorosos. Não haverá para o homem maior dor que a destruição da suas mais íntimas ilusões. Olha e à sua volta tudo são escombros.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (646)

Ellsworth Kelly - Light Reflection on Water (1951)

646. a luz cintila na água

a luz cintila na água
afoga-se em
escuridão
ilumina peixes
mortos
com lâmpada
de algas
e candelabro
de plâncton e petróleo

(13/12/2016)

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Haikai urbano (19)

Wolf Suschitzky - Venice, 1957

Sol e luz na praça.
Os homens param e olham:
pombos esvoaçam.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A porta do esquecimento

Chema Cobo - Amnesic Gate (1986-87)

Entrar pela porta do esquecimento é uma condição fundamental para a vida do espírito. Aquilo que não se esquece salta sempre como obstáculo no caminho. Uma distracção, um desvio, uma alienação. Entrar pela porta do esquecimento é um exercício de purificação e, ao mesmo tempo, a criação de uma clareira para que a realidade brote plena e total.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Meditação breve (40) - Equilíbrio

Florence Henri - Untitled, USA, c. 1940

O equilíbrio é o motor e o fim de toda a vida espiritual. Por maiores que sejam as ameaças de desequilíbrio, por maior que seja o perigo de perder o centro de gravidade, o espírito move-se para esse equilíbrio onde se reconhece e reconcilia consigo. As obras artísticas, as experiências místicas, até a especulação filosófica não são mais do que os vestígios da luta do espírito pelo equilíbrio.