domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (588)

Gerardo Rueda - Ballesta (1961)

588. o arquipélago do ardor

o arquipélago do ardor
emerge no mar
suspenso
na luz arenosa
da areia branca
e pérola
de um oceano côncavo
como um coração
a sangrar
de ilha em ilha

(21/10/2016)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (304)

Charles Guilloux - Paisagem fluvial (1893)

nas nuvens do céu
vêem-se as águas do rio
espelho e imagem

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Uma chávena de chá

Columbano Bordalo Pinheiro - Uma chávena de chá (1898)

Os dias eram preenchidos e alegres. Falávamos sobre isto e aquilo, fazíamos planos e cumpríamos os planos. A vida fora generosa connosco e permitia-nos ócios prolongados. Ele pouco tempo perdia com a administração dos bens. Todas as tarde tomávamos chá e deixávamo-nos enredar pelo desejo e por novos planos e novas aventuras. Foram anos de felicidade absoluta, como se fosse ainda possível um paraíso sobre a Terra. Os deuses, porém, são ciosos da sua exclusividade. Raramente estão dispostos a oferecer-nos um paraíso eterno. De tudo, resta este hábito, uma chávena de chá no silêncio da tarde.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

domingo, 6 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (587)

Vicente Rojo - Señales (1967)

587. súbitos sinais

súbitos sinais
soam
no silêncio sonoro
do sonho
no signo suave
da saudade
o símbolo suado
e sonâmbulo
da sombria solidão

(21/10/2016)

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A espera

Edward Hopper - Mañan en Cape Code (1950)

Chegava à janela, abria-a e ficava longas horas a olhar o horizonte. A princípio pensei que esperava alguém ou alguma coisa. A cena, porém, repetiu-se sem cessar. Não era, por certo, pessoa ou coisa que ela aguardava. Veio o Verão, depois o Outono e os anos foram passando. Havia nela uma fidelidade inabalável ao ritual, uma fé inextinguível. Há dias, a manhã despontou sob uma grande tempestade. Ela abriu a janela, debruçou-se sobre o parapeito. Um raio atingiu-a. Por momentos, reverberou e depois caiu. Havia no seu rosto sem vida um rasto de felicidade. Tinha chegado o que há muito esperava.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (586)

Liubov Popova - Komposition (1918)

586. sangue de vidro

sangue de vidro
escorre
no vitral verde
da melancolia
e abre-se
na noite de azeviche
para gotejar
no coágulo azul
a arder no azeite
puro
do céu de anil

(21/10/2016)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Romaria

Francisco Iturrino - Romaria (1905-09)

Com demasiada rapidez se relaciona a ideia de romaria a uma peregrinação popular, onde se combina a devoção e a festividade. Como a generalidade das expressões de matiz religioso, o termo romaria possui uma dimensão simbólica. À letra significa a peregrinação a Roma, ao centro da cristandade ocidental. Isto significa, na prática, uma viagem da periferia para o centro. Simbolicamente, porém, esta viagem não tem uma dimensão física nem geográfica. Ela é a peregrinação que cada um faz da exterioridade da sua vida social ao centro de si mesmo, à Roma, digamos assim, que cada um traz em si. E esta viagem pelo território interior nem tem de ser religiosa, no sentido corrente do termo, embora ela seja sempre uma re-ligação consigo mesmo. Cada um a fará conforme se sentir chamado ao caminho. Uns pela arte, outros pelo saber, outros pelo ofício, outros pela religião. Todos, de uma forma ou de outra, são convocados à romaria.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (303)

Ernst Ludwig Kirchner - Alberi d'autunno (1908)

as cores de outono
descem sobre os meus olhos
fogo e abandono

domingo, 30 de outubro de 2016

O estado arenoso

Gonzalo Chillida - Arenas (1969)

A educação dos seres humanos tende a privilegiar a solidez. Torná-los sólidos, com uma vida solidamente assente na terra, com uma função consistente, em instituições, também elas, firmes como a rocha. A ilusão da solidez é o resultado dessa educação, uma ilusão persistente e, muitas vezes, inultrapassável. A vida do espírito, porém, procura a fluidez, tornar o homem livre como o vento, aquele que sopra onde quer. O primeiro passo é o da fragmentação daquilo que é sólido. As areias são já um compromisso com essa fluidez. Não são líquidas, mas também, na verdade, já não são inteiramente sólidas. O estado arenoso é o primeiro passo da libertação do espírito da ilusão da solidez. Tudo o que é solido se fragmenta e se desagrega.

sábado, 29 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (585)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-1929)

585. um círculo negro

um círculo negro
nasce
na planície cega
do olhar
no grito surdo
da sombra
no cheiro impuro
da virginal
virgindade da manhã

(21/10/2016)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O sono no bosque

Albano Vitturi - Bosco (1940)

Por vezes, sentava-me à sombra de uma daquelas árvores. Gostava do silêncio do bosque, da solidão que o habitava. Muito tinha ali brincado na infância. Dormia um pouco e depois voltava para casa. Uma tarde, porém, adormeci profundamente. Quando acordei, uma criança puxava-me pela gola do casaco. Senti-me velho e desmazelado. Devia cheirar mal. À minha volta não havia árvores, o bosque desaparecera e eu estava encostado à parede de um enorme prédio. A criança não parava de me puxar e, o que me aterrorizou, era singularmente parecida comigo quando tinha a sua idade. Não, não me pergunte quanto tempo dormi.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sem forma nem figura

Jacint Salvadó - Informel (1959)

A vida do espírito, nas suas diversas manifestações, é fluida, sem contornos definidos, por vezes parece um lago calmo ao entardecer; outras, um rio caudaloso na força do meio-dia. É o terror sentido perante a fluidez e o informal que leva os homens a projectar sobre ela esta ou aquela figura, a atribuir-lhe esta ou aquela forma. Ela, porém, nunca se conforme e irrompe ora selvagem ora murmurante, destruindo incessantemente as formas com que o nosso medo a tenta cobrir. Ela, a vida do espírito, é o que não tem forma nem figura. É apenas um puro fluir.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (302)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

os ramos despidos
folhas perdidas no chão
nostalgia de outono

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O enigma

Chema Cobo - El desconocido de si mismo (1984)

Há um momento na vida em que nos confrontamos com o enigma que somos. Desconhecidos de nós mesmos, empreendemos a viagem em busca dessa pátria feliz, talvez o paraíso, em que descobriríamos a nossa autêntica identidade, o ser que somos. Se formos persistentes, porém, descobriremos o mais importante. Não há nada para conhecermos, nenhum enigma para revelar. Há que viajar e isso é tudo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (584)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono, número 30 (1950)

584. folhas de outono

folhas de outono
viajam vagarosas
no clic-clac
dos meus dedos
e
traem
ritmos rudes
no rumor das ruas
no clac-clic
dos teus segredos

(20/10/2016)

domingo, 23 de outubro de 2016

A tempestade

Marco Manzella - Diálogo sobre las variaciones atmosféricas (2001)

Sentava-se, pegava num livro, olhava a rua pela janela. Passado algum tempo, perguntava se iria chover. As primeiras vezes, nem liguei. O tempo estava indeciso, a pergunta parecia razoável. Não é que o desenrolar da conversa não me deixasse perplexo, deixava. Mais tarde, começou a perguntar-me se iria chover, mesmo quando o dia estava esplêndido. Não foi a incongruência que me atormentou, foi a revelação. Não tinha notado, mas agora era claro. Sempre que ela se sentava com um livro nas mãos e me perguntava se iria chover, uma fúria tomava conta dela e desencadeava uma tempestade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

Poemas do Viandante (583)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

choro o chumbo
transformado
em ouro
na cinza suave
e no restolho
onde nasce
negra de nigredo
a obra
grande e rubra
de um coração erguido
na luz do desejo

(20/10/2016)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Possessão

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Tudo começou com pequenas e esporádicas perdas de consciência. Perguntava-me, ao levantar-se, quem ela era, mas antes que eu tivesse tempo de responder, sorria e tudo voltava ao normal. Depois, as crises tornaram-se frequentes. Passava dias inteiros sem saber sequer o nome, embora levasse a vida habitual. No mês passado, porém, tudo se agravou. Levantou-se e começou a rosnar-me. Tive medo. Tentei apaziguá-la. Ela então ladrou e mordeu-me. Desorientado, acabei por sair. Comprei o que precisava. Agora passeio-a pelo jardim à trela, depois ela senta-se aos meus pés, enquanto vejo televisão e lhe afago a cabeça. Fora das refeições, nunca lhe tiro o açaime.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (301)

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

silêncio na noite
pássaros poisam nos ramos
um véu sobre a terra

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Caminho de sombras

Mateo Vilagrasa - Camino de sombras (1997)

A experiência da duração, do trânsito do tempo e da contínua mudança, torna manifesto que a vida do homem sobre a Terra é, na verdade, um caminho de sombras. Aquilo que, por um instante, pareceu luminoso, logo se torna sombrio, até que o passado o encerra na escuridão. Talvez o homem não avance de claridade em claridade, mas ande de sombra em sombra. Em cada uma, haverá a sua dose de luz e o seu quinhão de trevas. Perante uma luz infinita, o aparente progresso que a expressão "de claridade em claridade" parece significar torna-se risível. Esta ideia de um progresso para a luz é ainda um elemento sombrio que se espalha sobre o homem e o conduz pelo caminho das sombras.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (582)

Morris Louis - Alpha, Alpha (1960)

582. um alfa cresce

um alfa cresce
na alma
teme em silêncio
o destino do
ómega
e prende-se
à
seda de sílex
da boca que clama
de alfa em alfa

(06/10/2016)

domingo, 16 de outubro de 2016

Do assentimento

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

O assentimento, que a expressão de origem hebraica amém traduz, é compreendido, muitas vezes, como a conformação passiva a um destino. Essa compreensão obscura acaba por ocultar um outro lado do assentimento. O da luta com a suspeita, a confrontação com o incerto, o dilaceramento da dúvida. Assentir, desse ponto de vista, não é a aceitação de uma derrota, mas a expressão de uma vitória sobre si mesmo.

sábado, 15 de outubro de 2016

A mulher de castanho

James Whistler - Arrangement in Black and Brown: The Fur Jacket (1870)

Vi-a várias vezes. Muitas vezes, mesmo, mas isso não prova a sua realidade. Se havia nevoeiro, e aqui, naquele tempo, o nevoeiro não era raro, ela, envolta pela névoa, caminhava lentamente avenida fora. Passava diante desta casa, onde sempre vivi, e perdia-se mais além. Nunca trouxe outra roupa senão um vestido e um casaco castanhos. Jamais falou com alguém ou cruzou o olhar comigo. Um dia, apesar do grande nevoeiro que tinha caído, ela não passou. Na manhã seguinte, quando saí de casa, deparei-me à porta com um monte de roupas velhas. Reconheci-as. O nevoeiro não tornou a cair sobre a cidade.