quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (588)

Gerardo Rueda - Ballesta (1961)

588. o arquipélago do ardor

o arquipélago do ardor
emerge no mar
suspenso
na luz arenosa
da areia branca
e pérola
de um oceano côncavo
como um coração
a sangrar
de ilha em ilha

(21/10/2016)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (304)

Charles Guilloux - Paisagem fluvial (1893)

nas nuvens do céu
vêem-se as águas do rio
espelho e imagem

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Uma chávena de chá

Columbano Bordalo Pinheiro - Uma chávena de chá (1898)

Os dias eram preenchidos e alegres. Falávamos sobre isto e aquilo, fazíamos planos e cumpríamos os planos. A vida fora generosa connosco e permitia-nos ócios prolongados. Ele pouco tempo perdia com a administração dos bens. Todas as tarde tomávamos chá e deixávamo-nos enredar pelo desejo e por novos planos e novas aventuras. Foram anos de felicidade absoluta, como se fosse ainda possível um paraíso sobre a Terra. Os deuses, porém, são ciosos da sua exclusividade. Raramente estão dispostos a oferecer-nos um paraíso eterno. De tudo, resta este hábito, uma chávena de chá no silêncio da tarde.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

domingo, 6 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (587)

Vicente Rojo - Señales (1967)

587. súbitos sinais

súbitos sinais
soam
no silêncio sonoro
do sonho
no signo suave
da saudade
o símbolo suado
e sonâmbulo
da sombria solidão

(21/10/2016)

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A espera

Edward Hopper - Mañan en Cape Code (1950)

Chegava à janela, abria-a e ficava longas horas a olhar o horizonte. A princípio pensei que esperava alguém ou alguma coisa. A cena, porém, repetiu-se sem cessar. Não era, por certo, pessoa ou coisa que ela aguardava. Veio o Verão, depois o Outono e os anos foram passando. Havia nela uma fidelidade inabalável ao ritual, uma fé inextinguível. Há dias, a manhã despontou sob uma grande tempestade. Ela abriu a janela, debruçou-se sobre o parapeito. Um raio atingiu-a. Por momentos, reverberou e depois caiu. Havia no seu rosto sem vida um rasto de felicidade. Tinha chegado o que há muito esperava.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (586)

Liubov Popova - Komposition (1918)

586. sangue de vidro

sangue de vidro
escorre
no vitral verde
da melancolia
e abre-se
na noite de azeviche
para gotejar
no coágulo azul
a arder no azeite
puro
do céu de anil

(21/10/2016)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Romaria

Francisco Iturrino - Romaria (1905-09)

Com demasiada rapidez se relaciona a ideia de romaria a uma peregrinação popular, onde se combina a devoção e a festividade. Como a generalidade das expressões de matiz religioso, o termo romaria possui uma dimensão simbólica. À letra significa a peregrinação a Roma, ao centro da cristandade ocidental. Isto significa, na prática, uma viagem da periferia para o centro. Simbolicamente, porém, esta viagem não tem uma dimensão física nem geográfica. Ela é a peregrinação que cada um faz da exterioridade da sua vida social ao centro de si mesmo, à Roma, digamos assim, que cada um traz em si. E esta viagem pelo território interior nem tem de ser religiosa, no sentido corrente do termo, embora ela seja sempre uma re-ligação consigo mesmo. Cada um a fará conforme se sentir chamado ao caminho. Uns pela arte, outros pelo saber, outros pelo ofício, outros pela religião. Todos, de uma forma ou de outra, são convocados à romaria.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (303)

Ernst Ludwig Kirchner - Alberi d'autunno (1908)

as cores de outono
descem sobre os meus olhos
fogo e abandono

domingo, 30 de outubro de 2016

O estado arenoso

Gonzalo Chillida - Arenas (1969)

A educação dos seres humanos tende a privilegiar a solidez. Torná-los sólidos, com uma vida solidamente assente na terra, com uma função consistente, em instituições, também elas, firmes como a rocha. A ilusão da solidez é o resultado dessa educação, uma ilusão persistente e, muitas vezes, inultrapassável. A vida do espírito, porém, procura a fluidez, tornar o homem livre como o vento, aquele que sopra onde quer. O primeiro passo é o da fragmentação daquilo que é sólido. As areias são já um compromisso com essa fluidez. Não são líquidas, mas também, na verdade, já não são inteiramente sólidas. O estado arenoso é o primeiro passo da libertação do espírito da ilusão da solidez. Tudo o que é solido se fragmenta e se desagrega.

sábado, 29 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (585)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-1929)

585. um círculo negro

um círculo negro
nasce
na planície cega
do olhar
no grito surdo
da sombra
no cheiro impuro
da virginal
virgindade da manhã

(21/10/2016)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O sono no bosque

Albano Vitturi - Bosco (1940)

Por vezes, sentava-me à sombra de uma daquelas árvores. Gostava do silêncio do bosque, da solidão que o habitava. Muito tinha ali brincado na infância. Dormia um pouco e depois voltava para casa. Uma tarde, porém, adormeci profundamente. Quando acordei, uma criança puxava-me pela gola do casaco. Senti-me velho e desmazelado. Devia cheirar mal. À minha volta não havia árvores, o bosque desaparecera e eu estava encostado à parede de um enorme prédio. A criança não parava de me puxar e, o que me aterrorizou, era singularmente parecida comigo quando tinha a sua idade. Não, não me pergunte quanto tempo dormi.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sem forma nem figura

Jacint Salvadó - Informel (1959)

A vida do espírito, nas suas diversas manifestações, é fluida, sem contornos definidos, por vezes parece um lago calmo ao entardecer; outras, um rio caudaloso na força do meio-dia. É o terror sentido perante a fluidez e o informal que leva os homens a projectar sobre ela esta ou aquela figura, a atribuir-lhe esta ou aquela forma. Ela, porém, nunca se conforme e irrompe ora selvagem ora murmurante, destruindo incessantemente as formas com que o nosso medo a tenta cobrir. Ela, a vida do espírito, é o que não tem forma nem figura. É apenas um puro fluir.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (302)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

os ramos despidos
folhas perdidas no chão
nostalgia de outono

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O enigma

Chema Cobo - El desconocido de si mismo (1984)

Há um momento na vida em que nos confrontamos com o enigma que somos. Desconhecidos de nós mesmos, empreendemos a viagem em busca dessa pátria feliz, talvez o paraíso, em que descobriríamos a nossa autêntica identidade, o ser que somos. Se formos persistentes, porém, descobriremos o mais importante. Não há nada para conhecermos, nenhum enigma para revelar. Há que viajar e isso é tudo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (584)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono, número 30 (1950)

584. folhas de outono

folhas de outono
viajam vagarosas
no clic-clac
dos meus dedos
e
traem
ritmos rudes
no rumor das ruas
no clac-clic
dos teus segredos

(20/10/2016)

domingo, 23 de outubro de 2016

A tempestade

Marco Manzella - Diálogo sobre las variaciones atmosféricas (2001)

Sentava-se, pegava num livro, olhava a rua pela janela. Passado algum tempo, perguntava se iria chover. As primeiras vezes, nem liguei. O tempo estava indeciso, a pergunta parecia razoável. Não é que o desenrolar da conversa não me deixasse perplexo, deixava. Mais tarde, começou a perguntar-me se iria chover, mesmo quando o dia estava esplêndido. Não foi a incongruência que me atormentou, foi a revelação. Não tinha notado, mas agora era claro. Sempre que ela se sentava com um livro nas mãos e me perguntava se iria chover, uma fúria tomava conta dela e desencadeava uma tempestade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

Poemas do Viandante (583)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

choro o chumbo
transformado
em ouro
na cinza suave
e no restolho
onde nasce
negra de nigredo
a obra
grande e rubra
de um coração erguido
na luz do desejo

(20/10/2016)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Possessão

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Tudo começou com pequenas e esporádicas perdas de consciência. Perguntava-me, ao levantar-se, quem ela era, mas antes que eu tivesse tempo de responder, sorria e tudo voltava ao normal. Depois, as crises tornaram-se frequentes. Passava dias inteiros sem saber sequer o nome, embora levasse a vida habitual. No mês passado, porém, tudo se agravou. Levantou-se e começou a rosnar-me. Tive medo. Tentei apaziguá-la. Ela então ladrou e mordeu-me. Desorientado, acabei por sair. Comprei o que precisava. Agora passeio-a pelo jardim à trela, depois ela senta-se aos meus pés, enquanto vejo televisão e lhe afago a cabeça. Fora das refeições, nunca lhe tiro o açaime.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (301)

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

silêncio na noite
pássaros poisam nos ramos
um véu sobre a terra

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Caminho de sombras

Mateo Vilagrasa - Camino de sombras (1997)

A experiência da duração, do trânsito do tempo e da contínua mudança, torna manifesto que a vida do homem sobre a Terra é, na verdade, um caminho de sombras. Aquilo que, por um instante, pareceu luminoso, logo se torna sombrio, até que o passado o encerra na escuridão. Talvez o homem não avance de claridade em claridade, mas ande de sombra em sombra. Em cada uma, haverá a sua dose de luz e o seu quinhão de trevas. Perante uma luz infinita, o aparente progresso que a expressão "de claridade em claridade" parece significar torna-se risível. Esta ideia de um progresso para a luz é ainda um elemento sombrio que se espalha sobre o homem e o conduz pelo caminho das sombras.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (582)

Morris Louis - Alpha, Alpha (1960)

582. um alfa cresce

um alfa cresce
na alma
teme em silêncio
o destino do
ómega
e prende-se
à
seda de sílex
da boca que clama
de alfa em alfa

(06/10/2016)

domingo, 16 de outubro de 2016

Do assentimento

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

O assentimento, que a expressão de origem hebraica amém traduz, é compreendido, muitas vezes, como a conformação passiva a um destino. Essa compreensão obscura acaba por ocultar um outro lado do assentimento. O da luta com a suspeita, a confrontação com o incerto, o dilaceramento da dúvida. Assentir, desse ponto de vista, não é a aceitação de uma derrota, mas a expressão de uma vitória sobre si mesmo.

sábado, 15 de outubro de 2016

A mulher de castanho

James Whistler - Arrangement in Black and Brown: The Fur Jacket (1870)

Vi-a várias vezes. Muitas vezes, mesmo, mas isso não prova a sua realidade. Se havia nevoeiro, e aqui, naquele tempo, o nevoeiro não era raro, ela, envolta pela névoa, caminhava lentamente avenida fora. Passava diante desta casa, onde sempre vivi, e perdia-se mais além. Nunca trouxe outra roupa senão um vestido e um casaco castanhos. Jamais falou com alguém ou cruzou o olhar comigo. Um dia, apesar do grande nevoeiro que tinha caído, ela não passou. Na manhã seguinte, quando saí de casa, deparei-me à porta com um monte de roupas velhas. Reconheci-as. O nevoeiro não tornou a cair sobre a cidade.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (581)

Alexander Calder - Grande Espiral (1970)

581. tintas em espiral

tintas em espiral
sobem e
descem
na vertigem dos dedos
e
são signo e
são sinal
no ardor azul
do vermelho vidrado
em laranja
amarguiamarela

(19/09/2016)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Uma incongruência

Luis Pintos Fonseca - Cristo

A aguarela do pintor pontevedrino Luis Pintos Fonseca (1906 - 1959) tem o poder de tornar patente a incongruência histórica do cristianismo. Como foi possível que Cristo crucificado, a simbolização da humilhação, do abandono, da irrelevância social, se tornasse, juntamente com a herança helénica, o núcleo dinamizador da mais poderosa civilização material e cultural que alguma vez se manifestou sobre este pobre planeta? Olhamos a aguarela e vemos na morte - e morte na cruz - a semente de um florescimento exuberante. Quando o discurso do mundo se centra no fausto e no poder, não deixa de ser incongruente e causar perplexidade que aquilo que o Ocidente é tenha a sua origem num Deus que veio para morrer.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (300)

William Turner - Lluvia, Vapor y Velocidad (1844)

as primeiras chuvas
caem sobre a terra seca
vapores de outono