sábado, 13 de agosto de 2016

Sob o império dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Presos ao fascínio dos objectos, mede-se, de forma pouco meditada, o vigor espiritual de uma civilização pelos objectos nela produzidos ou, quando objectos naturais, por ela valorizados. Os objectos, contudo, possuem os seus próprios ritmos e estes estão longe de ser os ritmos do espírito humano. Seduzidos pelo dinamismo das coisas, os homens esquecem o seu próprio ritmo e alienam-se a si mesmos, ao sujeitar a sua vida espiritual ao ritmo das coisas. Tornam-se, sob o império dos objectos, coisas entre coisas, objectos entre objectos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (566)

Maria Helena Vieira Da Silva - Batalha de vermelhos e azuis (1953)

566. vermelhos ao vento

vermelhos ao vento
eriçados na
angústia do azul
marcham pelo campo
e esperam
a fénix ou a esfinge
ou a grande batalha
a vir nos dias
de calor
a vir nas chuvas
de inverno

(04/08/2016)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cegueira de Édipo

André Masson - Édipo (1939)

Das múltiplas peripécias da vida de Édipo, a mais decisiva de todas é a que ocorre quando ele se cega. Nem o abandono à morte pelos pais, nem o salvamento miraculoso e a subsequente adopção por Pólibo, rei de Corinto, nem o assassinato do verdadeiro pai, tão pouco a derrota da esfinge e o casamento com a sua mãe e a coroação como rei de Tebas possuem o significado espiritual da cegueira auto-infligida. Em todos os momentos anteriores, Édipo move-se segundo o senso comum que pertencia à sua casta. E esse mover-se no que é comum está intimamente ligado ao seu desconhecimento de si mesmo. A revelação da identidade tonou-o cego para o que é o comum, tornou-o indivíduo e abriu os seus olhos para uma luz que não é visível. Édipo, ao cegar-se, tornou-se indivíduo e sábio. Abandonou o caminho do herói, a procura da glória, e a vida do espírito, como um caminho apenas seu, abriu-se diante dele.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (292)

Gustavo Torner - Átomos - Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

fogo sobre fogo
a campina incendiada
um corvo em agosto

terça-feira, 9 de agosto de 2016

A mulher adúltera e a consciência de si

Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)

Um episódio central para compreender a dependência da modernidade ocidental - aparentemente, tão pouco cristã - do cristianismo é o da mulher adúltera (João 8:1-11). Dois elementos evidenciam já a ultrapassagem da leitura formal da tradição. Em primeiro lugar, a não condenação da mulher em contradição com a lei mosaica. Essa não condenação, porém, emerge da afirmação da subjectividade dos actores do episódio, dos acusadores e da acusada, e este é o segundo elemento. É a confrontação com a sua subjectividade que leva os acusadores a abandonar o projecto da acusação. A própria mulher é posta diante de si mesma e da sua consciência nas palavras finais de Cristo. O que há de notável neste episódio - mais do que a retórica gasta e inútil do amor - é o confronto entre as estruturas objectivas do mundo social exterior aos indivíduos e a consciência subjectiva. E é nesta que tudo agora se deverá decidir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (565)

Tal-Coat- Aigu réfléchi (Silex et gris) (1958)

565. cinzento e sílex

cinzento e sílex
destilam
um rumor de cinza
no murmúrio
levitante do lago
na sombra
ferida do fogo
na volúpia
fortuita da floresta

(04/08/2016)

domingo, 7 de agosto de 2016

O fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

As grandes visão apocalípticas, como as do fim do mundo, são interessantes não por aquilo que anunciam mas pelo desejo que nelas se manifesta. Não nos dizem o que vai acontecer mas o que o homem, em algum momento da sua história, desejou que acontecesse. A profecia do fim do mundo conta-nos, então, que este - o mundo - se tornou de tal modo insuportável que desejámos que ele tivesse um fim. O que o espírito deve aí procurar, para se instruir e e fazer a sua viagem, não é o que vai acontecer num futuro qualquer, mas aquilo que desencadeia o desejo de rejeição, aquilo que encerra a vida espiritual num círculo de ressentimento e dor. 

sábado, 6 de agosto de 2016

O filho pródigo e o homem moderno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

Na parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-31) há uma equivocidade central que tem o efeito surpreendente de transformar em filho perdido não aquele que dissipou os bens herdados mas o que se manteve fiel à casa paterna e à regra nela existente, isto é, que se manteve fiel à tradição formal. O reconhecimento é dado ao que experimentou o peso e as consequências da autonomia e se reencontrou depois de se ter perdido. Aquele que nunca se perdeu, o que se manteve fiel à forma, fica preso no ressentimento, incapaz de lidar com as mudanças introduzidas pelo tempo. Esta parábola é fundamental para podermos compreender por que motivo a modernidade, com todas as suas características, emergiu no âmbito do cristianismo. O filho pródigo é o arquétipo ancestral do homem moderno, o que faz de cada um de nós filho pródigo em busca de si mesmo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Caçar o tigre

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Pode-se imaginar a caça ao tigre como um momento fundamental de toda a vida espiritual. Não no sentido literal, mas aquilo que no homem pode ser simbolizado pelo tigre, o seu lado selvagem e perigoso. Mas mesmo aqui, caçar o tigre não significa matá-lo ou sequer domesticá-lo. Caçar o tigre significa fazer dele a energia propulsora que permite vencer a gravidade e tornar-se livre como o vento, esse vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (564)

Tal-Coat - [Paisaje] (1954)

564. estas paisagens

estas paisagens
maculadas
pelo ocre do ócio
pela oxidação
das tintas
crescem nas margens
do sangue
e ondulam na
cegueira de uma
metáfora
ao desaguar
no porto da solidão

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Metamorfoses

James Whistler - Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights (1872)

Há uma verdade à luz do dia e uma outra à luz da noite. Não são apenas as coisas que sofrem metamorfoses, que se transformam naquilo que não são. Também a verdade é itinerante, tomando sempre novas figuras. Os homens são tentados a contrariar os seus sentidos, em crer numa imutabilidade eterna da verdade. Esta, porém, sofre de uma inquietação estrutural e nunca se reconhece a não ser nesse acto de se metamorfosear.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (291)

André Masson - Le Couvent des Capucins - Céret (1919)

montanhas azuis
no verão desmesurado
monge em oração

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Casa de Verão

Xaime Quessada - Estio (1960)

Um dia muito quente. Não havia uma sombra ou uma fonte. Quase que morri. De súbito, avistei a casa. Enorme, mas sem portas. Apenas janelas. Uma estava aberta. Aproximei-me, havia gente lá dentro. Chamei, não houve resposta. Entrei pela janela, ninguém olhou para mim. Pareciam estátuas, mas respiravam. Havia água e comida. Sentei-me entre eles, comi e bebi. Adormeci sobre a mesa. Acordei manhã cedo, eles lá estavam imóveis. Tornei a comer e, ao sair, levei água comigo. No dia seguinte, voltei ao mesmo lugar. Não havia qualquer casa, apenas um grande carvalho e uma fonte a rumorejar. É lá que paro sempre que ali passo. Virão, estou certo. Devo-lhes a vida.

domingo, 31 de julho de 2016

Poemas do Viandante (563)

Manuel Gil Pérez - Formas dinâmicas espaciais (1957)

563. o fulgor do fogo

o fulgor do fogo
abre-se em amarelos
e a melancolia
desce pelo espaço
onde espero
o sol de setembro
e a promessa
de um outono
outonado no fogo
que desavindo desce
dos teus olhos

sábado, 30 de julho de 2016

O dom de olhar

Paul Cezanne - Os Jogadores de Cartas (1890-92)

Não sou um jogador. Falta-me o talento e a sorte. Eles sim, são verdadeiros jogadores de cartas. Toda a sua vida está ali entre mãos, pronta para ser deitada sobre a mesa. A minha vida nem a sinto como minha. Como poderia sentar-me à mesa e jogá-la numa última cartada? Eles jogam e eu vejo, e ver é a condição de quem está de fora. Pergunta-me: fora de quê? Fora de mim. Quem está fora de si está fora de tudo, do mundo, da vida, do jogo. Olhe-os. Tudo neles é inocência, pertencem ao instante em que as cartas caem sobre a mesa. Eu? Eu não me pertenço, não sei jogar. Chego aqui e olho. Foi-me concedido o dom de olhar. Tem toda a razão, é uma maldição.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O desejável do desejo

Paul Ackerman - L'au-delà est désirable

Só o além é desejável. Não apenas porque aquilo que constitui esse além tenha o poder de atrair o desejo, o poder da sedução, mas porque a dinâmica deste desejo é o de nos fazer transcender, de nos raptar da pura imanência onde estamos presos e de nos atirar para o desejável que está sempre além e que por isso mesmo o nosso desejo tanto deseja.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Tempo perdido

Manuel Ruiz Pipó - À la recherche du temps perdu

Em busca do tempo perdido. Não há maior equívoco do que a ideia trazida pelo título da obra de Proust. E o equívoco não nasce do caso do tempo perdido jamais poder ser encontrado. Nasce do simples facto de não existir tempo perdido. Todo o tempo vivido faz parte de um caminho e nunca, na verdade, é perdido, seja qual for o sentido em que se tome a expressão tempo perdido. É sempre um tempo de um caminho onde o que caminho se procura reencontrar.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Poemas do Viandante (562)

Franz Marc - Cavalo a sonhar

562. o cavalo sonha-se

o cavalo sonha-se
pesado no
pesadelo da noite
e vê-se vergado
ao peso do sono
ao temor da terra
pisada pelos
cascos fogosos
que acendem o
ardente ardor
da cavalgada

Dançar numa casa de loucos

George Wesley Bellows - Dance in a Madhouse (1917)

Dançar numa casa de loucos poderia ser uma metáfora sobre os transtornos - e eles são sem fim - da vida no mundo. No verdade, porém, a metáfora ilumina a vida espiritual. Num mundo caótico e irrazoável, a vida do espírito é como uma dança, na qual os que dançam se entregam, sem premeditação ou projecto, ao ritmo da música num espaço tornado caótico pela presença de todos os que dançam.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Haikai do Viandante (290)

Claude Monet - Summer, Field of Poppies (1875)

campos de papoilas
o sol bravio do verão
uma sombra cai

domingo, 24 de julho de 2016

No mundo dos híbridos

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

A aventura espiritual da arte moderna, tantas vezes mal entendida, tem a sua raiz na liberdade do espírito. É esta liberdade, servida pela faculdade da imaginação produtora, que permite um exercício de hibridação como aquele que o quadro de Max Ernst mostra: hibridar o reino dos artefactos mecânicos com o reino vegetal. Esta produção híbridos têm uma longa tradição que remonta às antigas mitologias. Ela revela-nos que, para além da estrita necessidade - que na arte tomou a forma da imitação, uma servidão ao dado -, existe um reino que, não sendo do domínio do caos nem da arbitrariedade, revela uma ordem mais livre e mais inesperada. Uma ordem onde o espírito, como o vento, sopra onde e como quer.

sábado, 23 de julho de 2016

Poemas do Viandante (561)

Winifred Nicholson - Abstracct sequence (Variation on Cyclamen and Primula) (1935-36)

561. frias florescem

frias florescem
as flores sibilantes
na sílaba
deste sábado
e na cintilação
do cíclame
reflecte-se
a prímula
da primavera

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A flor cortada

Giuseppe Pelizza Da Volpedo - Flor cortada (1896-1902)

Sonhei-as. Durante meses, tive o mesmo sonho. Um bosque ameno e um cortejo matinal de raparigas vestidas de branco. À entrada dispunham-se em procissão e caminhavam. Iam em silêncio. Quando chegavam ao centro do bosque, eu acordava e nunca descobria aonde iam. Uma noite, decidi não me deitar e, pela aurora, entrei no bosque. No centro, havia uma clareira. Escondi-me. Acabaram por chegar. A luz sombreada iluminava-as. Eram belas como no sonho. A que vinha na frente cortou uma flor e, para meu espanto e terror, saiu da clareira. Caminhou para mim e estendeu-me a mão. Esperávamos por ti, disse. Olhei. Era o meu rosto que eu via na flor cortada.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

O canto do cisne

Ignacio Díaz Olano - Cisnes (1927)

Sabe-se há muito que a lenda do canto do cisne (estes seria mudos, mas antes de morrer entoariam o mais belo dos cantos) não corresponde a qualquer realidade. Esta não verdade empírica não deixa, porém, de conter a sua verdade. Um dado mundo espiritual, ao entregar-se na noite da história, entoa a sua mais bela canção. Mais do que anunciar as trevas que se aproximam, o canto do cisne sublinha a esperança do dia que, terminada a noite, triunfará no esplendor da aurora. O canto do cisne não é uma canção de morte mas de esperança.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A casa do Homem

Felix Vallotton - In the Shadow (1916)

Pensamos, em primeiro lugar, a sombra como o lugar do mal. Este não suportaria a sua exposição à luz, que o denunciaria, e recolhe-se na sombra para exercer o seu império. Num segundo momento, constatamos que a pura luz seria insuportável mesmo para o bem. A intensidade da luz tornar-nos-ia cegos. Por fim, percebemos que a sombra é o lugar do homem, tanto para o mal como para o bem. Nem as trevas absolutas nem a pura a luz, mas a sombra. É neste registo sombrio que uns caminham de claridade em claridade, mas sempre sob a protecção da sombra, e outros vão de escuridão em escuridão, mas ainda e sempre na forma de sombra, cada vez mais densa. A sombra é a casa do homem sobre a Terra.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poemas do Viandante (560)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-29)

560. o círculo negro

o círculo negro
de malevich
é lua nova
aluada e perdida
no fundo frio
e esconso
de um universo
sem sóis que
no desvão do dia
de luz o iluminem

(19/07/2016)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Sem bandeiras

Lorenzo Viani - All'ombra della bandiera

O espírito não tem bandeiras nem causas. Manifesta-se de diversos modos - na arte, na religião, na filosofia - e estes modos de manifestação são as únicas limitações que admite. Erguer uma bandeira ou arvorar uma causa - mesmo que artística, ou religiosa ou filosófica - é limitar-se a um ponto de vista particular de tal modo que deixa de ser vida espiritual. Causas e bandeiras sombreiam um solo juncados de morte. A pátria do espírito é a vida infinita.

domingo, 17 de julho de 2016

Aos domingos

Henri Le Sidaner - Dimanche (1898)

Nunca senti os domingos como uma maldição. Não se equivoque. Vivi a melancolia de domingo à tarde, do fim-de-semana que acaba, da iminência de cair na terrível realidade. Não, não era o sentimento de uma maldição, porém. Por pesada que fosse a ameaça de segunda-feira, o domingo era sempre um dia de glória. Ia até ao bosque, aquele ali em frente, e diante dos meus olhos desfilavam raparigas, belas raparigas. Conversavam, riam, diziam frivolidades. Se conheci alguma? Não sei o que responder. Eu vi-as, mas elas nunca me viram. Quando nasci, já tinham morrido há muito. Tem razão, era uma disfunção na ordem do tempo. Foi ela que salvou os meus domingos.

sábado, 16 de julho de 2016

Cair em tentação

Max Beckmann - Temptation (1936-37)

A tentação é vista muitas vezes como provação que é colocada à vontade, para testar a sua fortaleza. Esquece-se, porém, o outro lado, o do desejo. Não é só a força da vontade que é testada na resistência à tentação. É também a força do desejo em ultrapassar a resistência da própria vontade. Cair em tentação pode nem significar que a vontade é fraca, mas que o desejo é excessivo.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Poemas do Viandante (559)

Gerardo Rueda - Contraponto (1971)

559. contraído e pronto

contraído e pronto
o ponto
semeia sombras
na alvura
branca do papel
traços em
contraponto
e uma fuga fulva
descreve
entre ponto e linha
um mundo
frívolo e cruel