domingo, 6 de março de 2016

Uma carta

Alfonso Sucasas - Carta a Rosalía (1989)

Escrevi esta carta como se tivesse alguém a quem a enviar. Imagino uns dedos a abri-la, a ânsia a bater no coração antes de os olhos tomarem de assalta as palavras, palavras escritas num azul tão puro, como aquele que o céu deixa ver nos dias de primavera. Ao imaginar, esses dedos e o pulsar do coração sob os seios, enterneço-me. Há tanto tempo que não me enterneço. O meu coração endureceu e eu escrevo a carta para te poder imaginar a lê-la e enternecer-me na melancolia que haveria em ti, se eu te tivesse escrito e se tu abrisses a carta para ler as palavras que te escrevi com o mais puro azul que o céu tinha.

sábado, 5 de março de 2016

Poemas do Viandante (530)

Francisco Sebastián - Entardecer (1987)

530. Entardece

Entardece
neste inverno
incerto,
neste dia
escuro e frio.
Entardecem,
na sombra
dos teus olhos,
os barcos 
que passam 
no rio.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Espero

John Marin - Figuras en una sala de espera (1931)

Espero. Espero entre esta gente que também espera. Conversam por cima do meu silêncio. Invejo-os. Eu nada tenho a dizer. O que me resta é olhar, fingir que não os oiço. O que poderia eu dizer? Em mim tudo é incerteza, opinião inacabada. Começo a formular um juízo e logo me calo. Escrúpulos? Sim, não seria falso. Quem nada sabe, o que pode dizer, como pode julgar? Deixo-me envolver no silêncio que paira sob aquelas vozes, O silêncio cresce dentro de mim, toma forma, oprime-me o peito e solta-se como uma nuvem. Paira no ar e desce lentamente sobre as bocas que falam, e elas tornam-se mais lentas, mais abafadas, mais indecisas. A nuvem adensa-se e as vozes são já uma sombra, quase uma treva, até que a noite as engole e emudecem. Espero e falo no silêncio da minha voz.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Paisagem e realidade

João Hogan - Paisagem (1948-50)

A paisagem é uma das mais poderosas invenções do espírito. Um hábito ancestral leva-nos a crer que as paisagens são objectivas, que se manifestam perante o nosso olhar, e que, dessa objectividade, se prova a sua realidade. Aquilo a que chamamos paisagem, porém, não é mais que uma invenção espiritual, uma realização que o espírito projecta no ecrã do mundo. São irreais então as paisagens? Não, não são, pois resultam de uma realização e é esta que dá toda a realidade ao que chamamos real. 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Haikai do Viandante (274)

Piet Mondrian - Along the Amstel (1903)

secreto silêncio
a sombra desceu no rio
árvores de inverno

terça-feira, 1 de março de 2016

Memória e identidade

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

A memória, na tradição platónica, tem um papel central na vida espiritual. O que se joga nesta é uma reminiscência a activar sobre sobre o mundo verdadeiro que, antes de entrar no corpo, a alma teria contemplado. Esta relevância da memória faz-se sobre um processo de aniquilação das memórias sensíveis que a vida quotidiana deixa em nós. As memórias temporais são um obstáculo à vida do espírito, como a história do destino da mulher de Lot ensina numa outra tradição. Esta destruição da memória sensível significa, porém, um desfazer da identidade construída, como se a vida espiritual não fosse mais do que um caminho entre essa identidade construída e uma enigmática identidade originária recebida.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A manifestação do espírito

Thomas Hart Benton - City Building (Study for America Today) (1930)

O mundo material construído pelo homem exerce um poderoso fascínio. Esse fascínio nasce da aparência plástica que seduz o olhar. Esta sedução traz nela um perigo. Ficar preso na azáfama das aparências, na sua exuberância, e esquecer que tudo o que assim se oferece aos sentidos não é outra coisa senão o operar do espírito. A realidade - se quisermos usar esse equívoco conceito - está para além daquilo que captamos através das sensações. Ela reside não na matéria mas no espírito que age sobre ela e lhe dá uma configuração. O que vemos - ou que sentimos, melhor - não é mais do que uma manifestação da vida espiritual.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O poeta e o anjo

Mário Eloy – O Poeta e o Anjo (c. 1938)

Recosto a cabeça no regaço dela e penso. Onde se inscreve a fronteira entre o poeta e o anjo? Dói-me, dói-me todo o corpo. Os anjos, esses, não têm dores. Os anjos não têm corpo, diz-se. Na cabeça daqueles corpos que não são corpos há, porém, ritmo, uma música, a música das esfera celestes. E eu oiço essa música. Toma-me por dentro, corre por artérias e veias e explode-me no coração. É nesse momento que escrevo. Escrevo o que oiço. Escrevo a sombra do cântico dos anjos, escrevo o eco longínquo da música das esferas celestes. Agora que tudo se apaga, agora que a minha cabeça repousa, por uma última vez no regaço dela, já não oiço música alguma. Abro os olhos e vejo um anjo. Um anjo que ainda não sou mas que serei quando...

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (529)

Albuquerque Mendes - Os Frequentadores do Cabaret Voltaire (1983)

529. No velho cabaret

No velho cabaret,
eu dançava
preso na agonia,
suspenso
de um corpo,
de um copo de vinho,
da luz que tece
a sombra da noite,
a carícia da morte.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (528)

Caspar David Friedrich - Winter Landscape with Church (1811)

528. Na paisagem

Na paisagem
invernosa
descubro
a velha cruz
que na terra
fez cair
como neve
uma mancha
pura de luz.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Uma mesma realidade

Lima de Freitas - O Contemplador de Mundos (1997)

Um dos passos fundamentais na vida do espírito é a compreensão do equívoco que separa contemplador e coisa contemplada. Esta dualidade funda-se na que opõe produtor e contemplador. Na verdade, em qualquer área da vida do espírito, aquele que produz, aquele contempla e a coisa contemplada são uma mesma e única realidade, fruto do acto de produção que é ao mesmo tempo um acto de contemplação ou vice-versa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Confronto entre a vida e a vida

Artur Bual - Pietá

O filho morto nos braços da Virgem - essa eterna cena que dá pelo nome de Pietá - deixa-se captar, na pintura de Artur Bual, em toda a complexidade que ela contém. Não se trata apenas da dor humana sentida pela mãe que perde o filho, mas da situação equívoca onde esse filho se encontra. Essa equivocidade é idêntica à da semente que, morta na terra, ressuscita com e para uma outra vida. Também na morte do Cristo, no acolhimento que os braços da mãe fazem do filho morto, se joga o terrível - pois inclui nele a morta, por simbólica que ela seja - confronto entre duas formas de vida. Na Pietá de Bual - no seu gestualismo figurativo - capta-se o momento onde, na morte, essas duas vidas se misturam, se confrontam e se separam.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (273)

Mário Cesariny - Linha d'Água

nessa linha d'água
ergue-se a luz de setembro
sonho e miragem

A grande utopia

Adriano Sousa Lopes - Pastor na Serra da Estrela

Uma longa tradição - religiosa e política - associou aquele que dirige um grupo humano à figura do pastor. Este tem como missão cuidar do rebanho, evitar a perda de alguma ovelha. O pastor era a metáfora, num mundo tradicional, para o mestre espiritual e o chefe político. A modernidade aniquilou essa velha relação entre o pastor e o rebanho. Contudo, ela não destruiu a figura do pastor. Pelo contrário. Tornou-a um imperativo para cada homem. Cada um deve ser o pastor de si mesmo, cuidar de si espiritual e materialmente. Auto-governar-se. É esta - e não a sociedade igualitária - a grande utopia do tempos modernos.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dentro do labirinto

Eduardo Batarda - Composition (1988)

Cheguei ao extremo da razão. A partir daqui tudo perde a luz clara trazida por uma arquitectura sóbria e rectilínea. A minha casa, a rua onde vivo, a cidade... Tudo isso é um labirinto. Fio de Ariadne? Para quê, se a saída do labirinto me leva a um outro, e a saída deste me precipita num novo labirinto? Na verdade, descubro-o agora, não há retorno ao palácio iluminado pela luz da razão. Dou um passo na nova escuridão e o meu coração estremece. A noite caiu sobre mim e nada mais resta do que caminhar, mãos a roçar as paredes e deixar-se levar pelo instinto. O labirinto está dentro de mim, o labirinto sou eu, e no fundo do meu coração - sempre o soube - habita o Minotauro. Está sentado e, na tranquilidade das trevas, espera-me.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (527)

Alfred Stevens - The Bath (1867)

527. No murmúrio

No murmúrio
dos teus olhos
há um poço
de água funda,
onde deixei cair
a rosa que colhi
nas margens do rio
que corre
no teu sangue.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Paisagem espiritual

João Hogan - sem título (1972)

Imagina-se, demasiadas vezes, a vida do espírito em analogia com paisagens florescentes, como se ela fosse um passeio sentimental destinado a almas doces e delicadas. Quantas vezes, porém, a paisagem espiritual é despida, crua, rugosa, como se toda a vida tivesse sido evacuada e apenas restasse um frio petrificado sob o vento, sob esse vento que corre onde quer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (526)

Artur Bual - sem título (1986)

526. De súbito, cavalos

De súbito, cavalos
irrompem na tela.
E a sua sombra
negra galopa
na planície verde
banhada pelo fogo
dos teus olhos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A tua casa

Álvaro Lapa - s/título (s/d)

O que resta das antigas memórias, das grandes casas, das avenidas largas, do fluxo das pessoas perdidas pela cidade? Passados tantos anos, filho pródigo, volto para casa, e já não há casa, nem rua, nem pessoas. Olho de longe e vejo a ruína que cresceu no solo e tomou conta do mundo, daquele mundo onde vi a luz pela primeira vez. Sento-me no chão e fecho os olhos. O silêncio rodeia-me, abre sulcos dentro de mim, rasga-me a carne. Um fio de sangue corre da minha boca, para logo coagular. Saboreio-o e oiço o rugir da terra. A cidade, as ruínas que restam, avança sobre mim. Imóvel e silencioso, abro os olhos e espero que caia a primeira pedra. Eis a tua casa, oiço.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (272)

Ando Hiroshige - A Vilage in the Snow (1831-34)

montanhas ao longe
cobrem de inverno a aldeia
neve sobre a terra

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O duelo

Albert Bloch - Duel (1912)

Em tempos, o instituto do duelo servia para lavar a honra. A lei acabou por triunfar sobre a honra. A verdade, porém, é que não eliminou o duelo. Este retirou-se do exterior e fixou-se dentro de cada um. O espírito confronta-se consigo mesmo e desse duelo sairá o caminho que a vida deve seguir.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Conversão do olhar

Marc Chagall - Sobre a cidade

A cidade dos homens, por maior que seja o interesse que se lhe devote, nunca deixa de ser sentida como limitada e limitante. Nela cruza-se a necessidade da natureza e a convenção social, formando uma férrea irmandade que submete cada um. A vida do espírito é um ir para além da necessidade e da convenção. Seja na arte, na religião ou no amor, o homem eleva-se a uma outra dimensão, onde as leis da natureza e as regras da sociabilidade perdem significação habitual e ganham um novo sentido ao serem olhadas de cima e do exterior. A vida do espírito é uma conversão do olhar.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Da liberdade

Francisco Iturrino - Potros en el campo (1912-14)

Inúmeras vezes se simboliza a liberdade dos homens através da analogia com os animais em plena natureza. Este é um equívoco fundamental. A natureza e a vida dos animais é comandada pela necessidade, pela mais estrita necessidade. A liberdade começa quando, movido pelo espírito, o homem se afasta da manada e limita, tanto quanto pode, a necessidade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (525)

Henri Le Sidaner - Le Quai (1898)

525. Nas águas

Nas águas
ergue-se 
o silêncio
feito de névoa
e de noites
perdidas
pelo cais.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Do semear e do colher

Kazimir Malevich - A Colheita (1910-11)

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Eclesiastes 3:1)

Há um tempo para semear e outro para colher, é verdade. O que a vida do espírito, contudo, mostra é que esse tempo não está determinado. Debaixo dos céus, qualquer momento é tempo de sementeira e qualquer momento é hora de colheita, pois o semear e o colher não são já determinados pelos ritmos naturais, mas, como frutos desse vento que sopra onde quer, irrompem de súbito, provenientes de uma outra ordem que não a da necessidade natural e dos ritmos ancestrais da certeza.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (271)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

neves na montanha
e um rio que corre invernoso
tempo de partir

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Sombras de domingo

Henri Le Sidaner - Dimanche (1898)

Quando chega a Primavera, volto sempre ao mesmo sonho. Deito-me, nas noites de sábado, e o sono vem rapidamente. Depois, depois, não sei como acontece. Estou escondido no bosque, a cidade ao fundo, e vejo desfilar grupos de jovens mulheres. Vêm e vão serenas. Falam baixo, apenas um murmúrio. Esforço-me por as ouvir, mas nunca o consigo. Falam sobre mim, tenho a certeza. Fingem, porém, ignorar-me. Olho-as, olho-as sempre demoradamente. Por fim, escolho uma, nunca a mesma. Escolho aquela a quem vou pedir em casamento. Tomo a decisão e corro para ela. Quando a estou a alcançar, ela sorri-me, como se esperasse por mim. Estende-me a mão e desaparece. Acordo, a luz da manhã entra-me pela janela. É domingo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A espera

Marcus Stone  - Waiting (1921)

A espera pode ser uma etapa crucial na viagem. Nem toda a espera, porém, tem em si esse poder de se tornar um elemento central na vida do espírito. Quando a espera é tida como instrumental, um tempo que antecede qualquer realização a vir, nesse momento ela é um obstáculo. É preciso que o viandante aprenda a deter-se na espera e não esperar dela outra coisa senão o que ela é, pois na pura espera já está tudo o que se há-de encontrar.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (524)

Georgia O'Keeffe - Abstracción, rosa blanca n. 2 (1927)

524. Uma onda?

Uma onda?
Um deserto?
Apenas a rosa
branca e lívida
que se abre
para o longe
aqui tão perto.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Sonho e realidade

Max Beckmann - Rêve de París, Colette, Eiffel Tower (1931)

Na história da humanidade o sonho sempre desafiou a argúcia interpretativa dos homens. Antevisão do futuro ou sintoma de conflitos passados, o sonho foi e é motivo para uma recusa do presente. E no entanto ele é uma poderosa manifestação da presença do espírito, de um espírito que se liberta da coacção da lógica formal e dos constrangimentos espácio-temporais. Nessa libertação emerge uma outra realidade, aquela que as estruturas lógicas do entendimento e as formas da sensibilidade ocultam e sonegam na vida quotidiana.