sábado, 6 de junho de 2015

Haikai do Viandante (235)

JCM - Ruínas (2008)

ruínas são runas
traço escrito pelo tempo
são a voz do vento

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Poemas do Viandante (510)

Antón Goyanes - Sombra (1990)

510. volto ao vento da infância

volto ao vento da infância
à primeira casa

a velha porta aberta
espera-me ali

entro e sento-me em silêncio
no frio do passado

e uma sombra devastada
cresce para mim

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Uma visão panorâmica

Salvador Dali - Arquitectura surrealista (1932)

Se olharmos de longe o percurso da viagem que fazemos - da vida que vivemos - rapidamente descobrimos, nas linhas que a compõem, uma estranha arquitectura, a resolução existencial de um projecto de que, ao mesmo tempo, somos os autores e os operários. Projecto esse, contudo, que só descobrimos depois de realizado, do qual só tomamos consciência quando nos afastamos dele para obter uma visão panorâmica.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A luz do crepúsculo

Georges Rouault - Barcos de pescadores ao sol poente (1939)

Não, ele não era pescador. Sempre que podia, porém, embarcava com os homens do mar para ver chegar a noite. Enquanto os homens se entregavam à faina, ele contemplava o sol. Sentia uma vertigem quando o astro começava desaparecer na linha do horizonte. A noite aproximava-se, mas uma estranha luz, a luz do crepúsculo, permanecia viva. Ele olhava para ela e sentia-a, naquela hora, como uma promessa. Também ele era um homem crepuscular. Acreditava secretamente, contudo, na promessa. A noite viria, mas a luz triunfaria e ele descobria a verdade que se ocultava no crepúsculo que o habitava, no crepúsculo que ele própria sentia ser.

terça-feira, 2 de junho de 2015

O centro e a periferia

Egon Schiele - Subúrbio I (1914)

O centro atrai os homens pois é ali que reside a possibilidade de reconhecimento e, por isso mesmo, a possibilidade de fama e de glória. O centro é o dispositivo - a grande máquina - que sustenta a vaidade dos homens, que produz o seu fascínio consigo mesmos, que alimenta a grande fábrica do narcisismo. O viandante deve aprender o caminho da periferia, deve amar o subúrbio, deve caminhar para desolação. Não apenas porque abandonou qualquer ilusão sobre si mesmo, mas porque descobriu que é no irrelevante, no desprezado, no subúrbio que fala a voz que o chama, que é aí, onde o reconhecimento foi suspenso, que ele é reconhecido naquilo que é. É aí o verdadeiro centro do mundo.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O mistério da encarnação

Umberto Boccioni - Dynamism of a Cyclist (1913)

O mundo contemporâneo preocupou-se, essencialmente, com o dinamismo dos corpos. Melhor: interessou-se, em primeiro lugar, com a dinâmica dos mecanismos, pois o corpo, no século XVII, foi reduzido a uma máquina e, desde então para cá, nunca o deixou de ser, uma máquina cada vez mais eficiente e atraente, mas não mais do que uma máquina. Para penetrarmos no mistério - no sagrado mistério, diria - do corpo é preciso, em primeiro lugar, suspender o fascínio pelo seu dinamismo mecânico. Depois há que ousar e perceber que o corpo não é outra coisa se não espírito que ganha carne, espírito encarnado. E aqui reside o mistério, o mistério da encarnação.

domingo, 31 de maio de 2015

A dissolução da fronteira

Isidre Nonell Monturiol - Repouso (1902)

Sentou-se e encerrou-se dentro de si. Exauridas as forças, não é a energia que pretende recuperar. Isso seria desviar-se do caminho, esquecer-se do que a levou ali. Quer perder-se, abandonar-se, liquidar toda a resistência que, em si, a opõe à luz do espírito, ao chamamento da voz que, ao pronunciar o seu nome, a convocou para a vida. Repousa do mundo para que a fronteira se dissolva e tudo ganhe sentido.

sábado, 30 de maio de 2015

O grande rio do silêncio

JCM - Mitologias (os afluentes do silêncio) (2014)

O grande rio do silêncio, assim começo a minha crónica. Olho-o, sentado na varanda, e vejo frases, palavras, sílabas, as pequenas letras a caminharem para ele. Nascem impetuosas, mas logo se moderam e fazem do ritmo um exercício de abstinência, para desaguarem puras e belas no rio que as conduzirá ao oceano. Aí, livres do peso vocálico, abrem-se para que os deuses as tomem de volta, as enriqueçam de segredos e enigmas, e as devolvam plenas aos homens, para bênção ou desdita destes.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Haikai do Viandante (234)

JCM - Mitologias (2014)

sob o nevoeiro
esconde-se a luz do sol
eis o dia primeiro

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O seu caminho

JCM - Mitologias (2014)

Foi o desejo de solidão que o levou ao mar. A solidão, porém, era apenas um sintoma, talvez um sinal daquilo que chamava por ele. Sentado no pequeno veleiro, olhava o oceano e deixava que o silêncio que habita o bramir das águas chegasse até ele. Tarde ou cedo, meditava, ouviria a voz que o chamou e saberia o que ela queria dele. E assim, durante todos os dias que viveu, levantou-se, embarcou e navegou de manhã à noite, sempre com a esperança de ouvir aquilo que que dele a voz queria ao trazê-lo à vida. No momento da morte percebeu, porém, que a voz falara sempre dentro dele e que o seu caminho era apenas ir e vir nas águas infinitas do oceano.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Poemas do Viandante (509)

Georgia O'keeffe - Black Cross, New Mexico (1929)

509. No centro da escuridão

No centro da escuridão
desenho a luz.

E com ela ilumino
as minhas palavras.

Sílabas incendiadas
no meio da tormenta.

Letras de água e fogo,
uma flor na cruz.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Estar na margem

Henri Rousseau - Nas margens do Oise (1908)

Estar na margem não é ser marginal. Estar na margem não é ser excluído. A margem não é um destino terrível para todos os seres humanos, só para aqueles que sonham estar no centro do palco. Viandante é aquele que descobriu que não há diferença entre a margem e o centro. Para ele, todos os centros são periferias e todas as margens, o centro do ser.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A leve alteração

Joan Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

As lentas e imperceptíveis metamorfoses do espaço exigem um espírito aberto para a diferença. O que significa isto? Significa que a vida espiritual não é uma abstracção mas um exercício contínuo de abertura e atenção ao diferente. Não apenas à diferença ostensiva que nos fere o olhar, mas também à leve gradação que simboliza a liberdade do espírito. O divino não se manifesta só na radical alteridade. Também na leve alteração habitam os deuses.

domingo, 24 de maio de 2015

Um naufrágio

Henri Edmond Delacroix Cross - O naufrágio (1907)

Um súbito pensamento levou-o para o mar, embarcou incauto para o grande naufrágio, para o lugar onde a morte e a ressurreição marcaram encontro, o decisivo encontro da sua vida. Não sabia o que acontecera, mas mergulhara uma e outra vez nas águas tempestuosas do oceano. A primeira, trémulo de medo, sentiu-se envolvido num turbilhão que parecia não acabar. A segunda, como se submergisse na tranquilidade benévola do regaço infinito de Deus. Olhou-O, na face. Morreria? Ao emergir, descobriu-se ressurrecto. Sabia agora o grande segredo da vida e entregava-se, sem resistência, à dança da morte. De súbito, uma mão aproximou-se e puxou-o das águas. Ouviu vozes e tudo em si se desvaneceu. Foi o que ele me disse. 

sábado, 23 de maio de 2015

Haikai do Viandante (233)

JCM - Colour Dreams (2014)

irrompe a lua
no frio céu azul da tarde
o deus que te aguarda

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Uma pequena luz

JCM - Black & White Dreams, Valladolid (2006)

A luz afunda-se no oceano e deixa a noite crescer dentro da cidade. Então ele anoitece pelas praças e vielas, espera, como uma promessa, o regresso daquilo que o ilumina, o chama para a vida, o visita mesmo se dorme. Quando a noite é mais negra, ainda uma pequena luz bruxuleante fulgura no fundo do seu coração. Abre os olhos, e ela ali está. Despida. Então ele soletra-lhe o nome e estende-lhe a mão, sente a pele deslizar-lhe sob os dedos. Deseja-a. Ela sorri. Todo o seu corpo freme e o olhar cintila. É a luz que o ilumina, a voz que o ergue da morte e o ressuscita para a eternidade de cada dia. Desperto, descobre-se só, mas a luz arde ainda num lugar secreto, no fundo silencioso da caverna da sua consciência.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aprender a quietude

JCM - Time on space (2008)

Podemos pensar que a viagem espiritual é como um mergulho nas águas inóspitas do oceano. Isso, porém, é uma ilusão fundada no voluntarismo que tomou conta da nossa cultura. Na verdade, a viagem espiritual é antes um aprender a estar quieto e silencioso, um aprender a deixar que o espírito se derrame sobre si, como as águas do oceano se derramam sobre as velhas rochas, para que, lentamente, uma vida nova cubra a pedra rude com um verde belo e vigoroso.  

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Poemas do Viandante (508)

Jean François Millet - Nu reclinado

508. a noite em que tudo dorme

A noite em que tudo dorme
desce nos teus dedos.

Vem vagarosa e sublime
poisar sobre mim.

E eu oiço uma canção breve
na luz do teu rosto.

Assim embalado canto
e logo adormeço.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Um terrível fascínio

Daniel Vázquez Díaz - A fábrica adormecida (1920)

O mundo como fábrica. Nesta metáfora nós encontramos a apoteose de uma civilização baseada na pura acção. Melhor, numa acção degradada já em mera fabricação de artefactos para serem dados ao consumo. O acto de fabricar exerce sobre os homens um terrível fascínio. E é nesse fascínio que o homem aliena a sua natureza contemplativa, onde toda a acção é suspensa e o homem entrega-se à escuta da Voz que chamou por ele.

domingo, 17 de maio de 2015

Sobre vestígios

JCM - Vestígios (2014)

O homem pode encarar a vida de diversas formas. Há aqueles que julgam que o mais importante é deixar vestígios no mundo, como se este fosse o seu império. Outros há, contudo, que, a dado momento, descobrem a irrelevância do seu próprio vestígio. Tarde ou cedo ele será definitivamente apagado e esquecido. Resta-lhes preocupar-se com o vestígio que a vida no mundo deixa neles, aquilo em que ela os ajudou a tornar-se.

sábado, 16 de maio de 2015

O que se pode tornar visível

Romolo Romani - Imagem (1908)

Estamos de tal maneira habituados às nossas imagens precisas e nítidas que nunca nos questionamos se, nos primeiros tempos de vida, eram estas imagens precisas e nítidas que se apresentavam perante os nossos olhos. Muito provavelmente não. Uma dura mas inconsciente aprendizagem conduziu-nos à focalização do olhar. Vemos aquilo que aprendemos a ver. E se para lá destas imagens, que agora nos são visíveis, outras, talvez mais nítidas e precisas, estejam ocultas, estejam perdidas na invisibilidade a que nos condenamos pelo uso habitual dos sentidos? Esse é o trabalho do viandante, viajar de imagem em imagem, procurar no invisível aquilo que se pode tornar visível.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Raízes na terra

JCM - Símbolos, signos e sinais. Lisboa, Jardim Botânico, (2007)

Como a árvore, também o viandante deve lançar as suas raízes na terra. Só aquele que tem raízes fundas pode suportar as intempéries que o vento - aquele vento que sopra onde quer - traz consigo. Sem raízes na terra, como pode o homem olhar para o alto, contemplar os céus, e não ser arrastado na queda? Só aquele que desce pode encontrar a seiva que o fará subir.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Haikai do Viandante (232)

Nandor Mikola - In the Morning (1987)

desce sobre mim
a solidão da manhã
vida e luz sem fim

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A força do amanhecer

Max Pechstein - Dawn (1911)

O amanhecer é frequentemente usado - até à usura - para simbolizar o começo de algo novo. A persistência da sua força simbólica não deriva, contudo, da analogia entre o começo do novo dia e aquilo que na vida dos homens é tomado como novo. A força simbólica do amanhecer é muito mais profunda pois reside nas forças poderosas da natureza que se manifestam nessa hora e no impacto que essas forças têm sobre o corpo, a alma e o espírito dos homens.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Convite à passagem

JCM - Muros (Lugo), 2007

Aquilo que detém o corpo é impotente para deter o espírito. O obstáculo não é um limite mas uma provação que solicita a que o espírito, escorado na sua pobreza e na abertura ao que está para além dele, o ultrapasse e se ultrapasse. O muro não é o fim da viagem mas um convite à passagem.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Aprender a tactear

Carmen Dominguez - Con-tacto

Talvez a aprendizagem sensorial mais importante para a viagem espiritual seja a que se liga ao tacto. Na visão e na audição, por exemplo, o homem é passivo, recebe as imagens que o exterior lhe envia. No tacto há uma dimensão activa, na qual o sujeito procura os objectos a tocar. Ora como toda a aventura espiritual é um estabelecer de relação, estabelecer contacto com aquilo que nos transcende, aprender a tactear não será das aprendizagens de menor importância.

domingo, 10 de maio de 2015

Poemas do Viandante (507)

Corneille - Juegos de pájaros en un cielo de verano (1998)

507. pressente-se o voo

pressente-se o voo
das aves estivais

trazem consigo um resto
de calor amainado

pelas nuvens que vogam
esquecidas nos céus

pela penumbra aberta
que desce dos teus olhos

sábado, 9 de maio de 2015

Um grão de areia

Robert Delaunay - Saint-Séverin nº 3 (1909-10)

A desmesura que certas igrejas apresentam é diferente daquela que o Antigo Testamento simbolizou na Torre de Babel. Nesta estava plasmada a desmedida humana, a ambição prometaica de conquistar o território dos deuses. Na igreja cristã aquilo que é simbolizado é a pequenez do homem perante o mistério divino. Ao entrar nesse espaço, o orgulho do animal racional é devolvido à sua dimensão: um grão de areia perdido no universo.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

A improvisação e o imprevisto

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

Se o espírito é como o vento, sopra onde quer, a resposta do viandante só pode ser a improvisação. O improviso é aquilo que é solicitado pelo imprevisto. Improvisar, porém, não é entregar-se ao caos e ao acaso. É abrir-se à solicitação do espírito, a qual, para nós mortais, é sempre imprevista e sempre imprevisível.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Haikai do Viandante (231)

Pierre Bonnard - Lumière de soir, près de Vernon (1922)

a luz que te guarda
desce leve sobre a terra
assim cai a tarde