terça-feira, 18 de novembro de 2014

As luzes do mundo

Otto Dix - Lichtsignale (1917)

A ânsia do homem pela luz leva-o muitas vezes a confundir as luzes do mundo com a luz do espírito. Basta, porém, alguma atenção para se vislumbrar, sob os efeitos das luzes mundanas, os sinais da morte e das trevas. Sempre que, pela mão do homem, a luz se excede em brilho e em exuberância, deveremos de imediato suspeitar que algo muito negro se acoita e esconde naquele brilho.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (213)

JCM - A night at the opera (2008)

Para lá dos montes
põe-se um sol outonal.
Fria luz no horizonte.

domingo, 16 de novembro de 2014

Do papel do equívoco

Jean Dubuffet - Banco de equívocos (1963)

Quantas vezes a vida não é senão um banco de equívocos, de erros, de mal-entendidos? Perante isso, há a tendência para ver a fonte do mal nas capacidades interpretativas do sujeito. É ele que se engana, que interpreta mal as vozes que o chamam, que se deixa enredas nas teias do erro. E no entanto a palavra equívoco tem, na sua raiz, um outro ensinamento. Pode-se dizer que a ambiguidade presente no equívoco está na igualdade (āequus) das vozes que chamam (vocāre) o homem. É a própria realidade que o enreda e o leva à perda. Mas se assim é, poderá ainda a perda ser considerada uma perda? Não será antes um caminho de aprendizagem?

sábado, 15 de novembro de 2014

Estabelecer pontes

Camille Pissarro - Charing Cross Bridge, London (1890)

A ponte enquanto símbolo não é apenas aquilo que une dois pontos do caminho que, por um qualquer acidente, se cindiu. A ponte é o único caminho que resta ao viandante, pois a sua viagem é o contínuo estabelecer de ligações entre o aquém e o além, descobrindo, porém, que o aquém, o além e a ligação que os une são uma e a mesma coisa. Só se pode unir aquilo que já está unido.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Abandonar-se

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Onde estiver o corpo, lá se juntarão também os abutres (Lucas 17:37).

Penetrar no mistério, perder a materialidade, tornar-se cada vez mais inefável, quase uma sombra, quase uma luz. E a viagem não é outra coisa senão este abandono da gravidade, este tornar-se imponderável, este abandono do corpo para entrar no reino onde a luz pronunciou o nosso nome.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (484)

Georges Seurat - Mulher sentada num prado (1882)

484. a dor desenfreada que se abre

a dor desenfreada que se abre
no coração

e pede que a sombra venha
sobre a luz

para que uma paz silenciosa
desça em ti

e assim te abras ao mistério
que há em mim

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O acesso

Al Held - Acesso (1967)

Quando nos perguntamos pelo acesso ao caminho tornamos esse acesso obscuro e enigmático. Mas o acesso ao caminho que nos cabe não é obscuro nem tem a natureza dos enigmas. Ele não é longínquo nem de uma realidade que nos transcende ou que pertença a outro tempo. O acesso está aqui e agora, está na mão que abrimos, nos olhos com que vemos, no coração que pulsa, na respiração que nos traz a vida.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uma certa ânsia

JCM - Entre ruínas (2014)

Nunca as ruínas devem deixar de ser motivo de meditação. Encontramos nelas, por vezes, uma certa beleza que não existia antes do efeito do tempo trazer a perda. Se a meditação se prolonga começamos a entrever que essa perda é menos efeito do tempo do que de uma certa ânsia que habita a matéria e a conduz à derrocada pelo desejo do espírito que nela se encontra ausente.

Haikai do Viandante (212)

JCM - Black & White Dreams (2014)

O dia escurece
na fria sombra da floresta.
Tudo anoitece.

domingo, 9 de novembro de 2014

Uma pequena fenda

JCM - Time on space (2007)

Muitas vezes a densidade da matéria parece constituir um muro que se ergue perante o viandante. A viagem parece então impossível e um fim anuncia-se na solidez daquilo que se constituiu como obstáculo. O espírito, porém, não deve descrer da potência da sua natureza. Nestes momentos, a viagem não é mais do que o trabalho de abrir uma pequena fenda na pedra. O tempo fará dela uma passagem.

sábado, 8 de novembro de 2014

O nosso lugar

JCM - Distopia (sem saída) (2014)

Esperamos sempre uma saída, um ir para além, uma transcendência. Esperamos sempre que haja uma porta que se possa abrir e um lugar para onde fugir. E se não houver? Se não houver, resta-nos permanecer no lugar que é o nosso, mas permanecer abrindo-nos à sua estranheza e ao mistério que ele contém. Para ele, não há um além nem um aquém. Ele é o aqui que é todo o aquém e todo o além que estão disponíveis para a nossa viagem.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A terra devastada

Jeffrey Smart - Wasteland I (1945)

Olhamos o baldio aberto pelo abandono e pensamos o que terá assim devastado a terra. A meditação leva-nos invariavelmente para a retirada do Espírito. Isso, porém, não passa de uma ilusão. O Espírito não se pode retirar de onde nunca esteve. A devastação é antes o sinal de que algo foi construído sem que o Espírito ali estivesse. Era apenas matéria e, como toda a matéria, teve o destino que é o seu, a desolação.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (483)

Edvard Munch - The hands (1893)

483. a velha desolação do dia que acaba

a velha desolação do dia que acaba
na luz da noite

o sussurrar de alguém que espera
a cor do destino

o silêncio que se abre na ausência
da tua voz

eis a renúncia com que a rosa se abre
à luz do fogo

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Atravessar a escuridão

JCM - Heimat XII (2007)

Aprender a traçar um mapa na escuridão. Caminhos que unem pequenos pontos de luz, algumas manchas luminosas a indicar um aglomerado de vida, o mistério das cores que vencem as trevas. A viagem não é mais do que esta travessia na escuridão na esperança de que tudo se torne luminoso. Não torna, essa não é a condição deste mundo nem de quem nele vive. Há que atravessar a escuridão.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um mero grão de areia

JCM - My foolish world (2014)

Se se perguntar o que é a alienação, as respostas tenderão a dar uma visão social ou mesmo política do estar alienado. Esse tipo de alienação, por importante que seja, é já e só secundário relativamente a uma alienação mais funda e estruturante. Trata-se do estranhamento do homem relativamente à sua natureza, a alienação antropológica. Esse estranhamento nasce da convicção, socialmente induzida, de que o homem é qualquer coisa, de que ele é algo mais do que um mero grão de areia, perdido num deserto infinito. O cristianismo chamou a atenção para essa ilusão ao fazer nascer o Cristo, o filho de Deus, num lugar que era a marca da pobreza. O Filho do Homem afinal - e esse é o grande escândalo - não era mais que um mero grão de areia.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Em alto mar

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Só ilusoriamente podemos pensar a viagem como sendo feita em terra firme. A solidez do mundo, contudo, é uma aparência e ao viandante não resta outro caminho senão o das águas. Como um barco em alto mar, ele é arremessado pelas ondas e vê-se envolto em tempestades. Por maior que seja o temor, nada mais pode fazer do que entregar-se ao elemento onde navega, aceitando essa vontade que está por cima da sua própria vontade.

domingo, 2 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (211)

JCM - Heimat XI (2007)

castanheiros em flor
abrem-se sobre a velha cidade
murmúrio e rumor

sábado, 1 de novembro de 2014

O passeio pelo bosque

Henri Rousseau - O passeio pelo bosque (1886)

Há na literatura espiritual uma analogia recorrente entre o paraíso e o bosque, o bosque deleitoso, esse jardim onde o homem reencontraria a sua natureza perdida com a queda. Essa visão deleitosa oculta, porém, algo de muito mais essencial. O bosque como lugar de contacto com a vida tal como ela é, fora das ilusões que o eu constrói na interacção social. De certa maneira, o bosque é o lugar das delícias e da luz, mas também do árduo contacto com os elementos telúricos e com a sombra. O passeio pelo bosque não é apenas a delícia dada pela ressurreição. Inclui nele a morte na cruz, para falarmos segundo a tradição religiosa do Ocidente.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (482)

Bernard Cathelin - Autumn at Les Rebattières (1960)

482. não é tempo de transumância

não é tempo de transumância
no baldio da terra

não é hora de peregrinar
no teu corpo

não é este o instante da viagem
em que te espero

não é ainda o rio da eternidade
onde me aguardas

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Em tremor

Jesús María Cormán - 6.6 Richter scale (2001)

Não, não é a terra que treme, mas o viandante que, na sua viagem, sente, em temor e tremor, a presença inefável do totalmente Outro. Não é o fim do mundo, é apenas o começo, esse princípio que não tem fim, esse fim que não princípio. Não se trata da destruição mas do começo da revelação.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O outro lado

José Manuel Ruiz-Zarco Perez - Al otro lado, Nº 74

É sempre o outro lado que procuramos, mesmo aqueles que rejeitaram já a tentação do movimento e da mudança ainda é ao outro lado que aspiram. O outro lado, todavia, não está senão naquele lado onde já nos encontramos. O estranho lugar onde somos é, ao mesmo tempo, o mesmo e o outro lado. E não há mais nenhum lado a que se possa ir a não ser aquele onde se está.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A tradição e o coração

Albert Bloch - The Blind Man (1942)

Deixai-os; são cegos condutores de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova (Mateus 15:14).

Cegos condutores de cegos. Esta referência, sempre tão citada, emerge, segundo Mateus, numa discussão sobre as tradições. O que está em jogo é a distinção entre uma tradição formal e ritualista, a dos escribas e dos fariseus, e uma orientação do coração proposta pelo Cristo. O coração, porém, deve ser entendido num espectro semântico muito mais amplo que o do mero sentimento. Trata-se antes da disposição do espírito e da luz que dele irradia. Quando a luz do espírito é substituída pelo código dos rituais, os homens tornam-se cegos. Eis um debate que preserva toda a sua actualidade.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Repouso e movimento

André Bauchant - Le repos au bord de la route (1932)

Talvez uma das mais fundas e inexplicáveis ilusões da espécie humana resida na distinção, ou mesmo oposição, entre o repouso e o movimento. Esta distinção está na base, por exemplo, da diferenciação entre a acção e a contemplação, entre Marta e Maria. Aquilo que o viandante aprende na viagem, porém, diz-lhe outra coisa, diz-lhe que se deve mover como se estivesse em repouso e repousar como se movesse. Diz-lhe que deve agir contemplando e contemplar como a forma mais elevada de acção. Diz-lhe que Marta e Maria não são duas irmãs, mas apenas uma e a mesma pessoa que acolhe, de múltiplas maneiras, o Cristo em sua casa.

domingo, 26 de outubro de 2014

A norma moral

Paul Ranson - The Blue Room or nude with Fan (1891)

Vivemos tempos em que se confunde - por vezes, de forma obstinada, contumaz, mas quase sempre com tonalidade farisaica - espiritualidade e moralidade. Esta última deriva, como o ensina o étimo latino, da vida social, e acaba por ser uma adequação ao espírito do tempo ou, em muitos casos ditos religiosos, uma rígida fixação em normas sociais abandonadas, mas que um dia operaram e fizeram sentido. A viagem espiritual, porém, não é um exercício moral. Convoca, por certo, a lei, mas não para julgar e punir os homens, mas para os ajudar a seguir o caminho onde aprenderão a despir-se de tudo o que é mundano, incluindo a norma moral.

sábado, 25 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (210)

JCM - Pele (2007)

também a árvore
subitamente se despe
o verão espreita-a

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (481)

Theo van Rysselberghe - Femme au Pegnoir Rose (1910)

481. envolver-te com o lençol da noite

envolver-te com o lençol da noite
e ouvir uma palavra

cobrir-te com o desejo do teu desejo
e ver as horas passar

sussurrar-te uma canção esquecida
e aguardar a morte

entregar-te o silêncio do meu corpo
e nada esperar

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Estranhos mapas

Sonia Delaunay - Broderie Feuillages (1909)

Estranhos mapas traz o viandante consigo. Se projectados no mundo, dão a ilusão de uma tapeçaria composta de folhas que o Outono arrancou das árvores e, pelo capricho do vento, ordenou em territórios contíguos. Mas o viandante há muito que descobriu que os mapas que vê para se orientar na viagem são a projecção na vida daqueles com que chegou ao mundo. Tudo aquilo que vê é ainda aquilo que ele traz dentro de sim.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Romper a névoa

JCM - Mitologias (numa manhã de nevoeiro) (2014)

Romper a névoa e ansiar a luz que está para além dela.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (209)

JCM - A night at opera (troncos no jardim botânico) (2008)

no seio do jardim
estranhas formas de vida
esperam por mim

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Acumular e abandonar

Rembrandt - Parábola do homem rico (1627)

E o que acumulaste para quem será? (Lucas 12:20)

Na parábola do homem rico, a qual, como todas as outras, gerou múltiplas interpretações, a pergunta que fica sem resposta - e o que acumulaste para quem será? - é central. Central por ficar em aberto, mas por outro motivo. O tom de censura é nítido e dirige-se muito para a prática da acumulação que não se limita, longe disso, aos bens materiais. Qualquer acumulação, inclusive a de bens espirituais, está aqui posta em cheque. A vida do espírito é o contrário da vida material. A essência desta é a acumulação. Na vida do espírito, a essência é o contínuo abandono, inclusive das ilusões espirituais. Na vida espiritual não se trata de ter, de ter muitas experiências espirituais, de fazer muitas leituras ou de se elevar à erudição e tornar-se um farol da cultura. Trata-se apenas de se despojar da ganga que a vida e a ilusão depositam no espírito do viandante para lhe dificultar a continuação da viagem. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa.