domingo, 18 de maio de 2014

Poemas do Viandante (457)

Bill Brandt - Hampstead, London (1945)

457. esse corpo que se entrega

esse corpo que se entrega
despido ao olhar

esse amor desatinado
a gritar no peito

esse desespero manso
perdido na face

esse desejo de luz
nunca satisfeito

sábado, 17 de maio de 2014

Exercícios da errância

Deborah Turbeville (desconheço título e data)

Os caminhos que levam a lado nenhum, o estar perdido na floresta, tudo exercícios da errância, desse errar que nos afasta do alvo e nos faz cair da esperança de chegar a bom porto. Esperamos apenas um sinal, talvez a companhia de alguém que, perdido também, possa acompanhar-nos e partilhar connosco a dor da perdição. Talvez nesses instantes Paulo de Tarso tenha razão. Ali onde abunda a perda, superabunde a graça.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O paraíso perdido

Charles Marville - Stream of Armenonville, Bois de Boulogne (1858-60)

Talvez todos os seres humanos tragam dentro de si uma secreta imagem do paraíso perdido, desse lugar ameno de onde teria sido excluído todo o conflito. Sempre que podem, tentam reproduzi-lo na terra, imaginando lugares onde os homens se possam recolher na natureza e esquecer a dura vida a que estão condenados. Estar num lugar desses é sempre um exercício de rememoração, um activar de uma memória de algo que não vivemos mas que trazemos dentro de nós. Uma memória projectiva.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

De espaço em espaço

Jacinta Gil Roncalés - Hacia otros espacios (1991)

A viagem é sempre o caminhar por outros e para outros espaços. Mas se ficarmos presos ao truísmo, não compreenderemos nunca que viagem e vida nada têm de diferente. Para nos afastarmos da banalidade, o melhor será pensar o espaço como uma metáfora, a qual nos abre para uma outra compreensão dessa viagem. Cada novo espaço significa uma nova forma de experimentar o mundo e de ser. Com a transformação dos espaços é o viajante que se torna outro.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Os poderes da terra e da sombra

Eliot Elisofon - Marlon Brando kneeling before Kim Hunter in 
a Broadway production of Tennessee Williams’s A Streetcar Named Desire (1947)

Olha-se a cena de Marlon Brando e Kim Hunter e percebe-se, de imediato, que o acto de ajoelhar perante outro ser é muito mais que um acto de submissão a um poder fáctico. Pelo contrário, é um acto da mais pura liberdade, aquela que nasce do amor, desse amor que tudo crê, tudo espera, tudo suporta, desse amor que descura o próprio interesse. A grandeza do cristianismo está toda aí. O homem que ajoelha perante Deus fá-lo por amor e não movido pelo medo de uma potência terrível e opressora. E sempre que, numa Igreja, alguém ajoelha por medo, por submissão a um poder terrível, já está longe do cristianismo e caiu na idolatria, ao transformar os poderes da terra e da sombra em divindades a que presta adoração. Só o amor é justificação para que alguém se ponha de joelhos.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Haikai do Viandante (188)

Florence Henri - Untitled, USA (c. 1940)

linhas de silêncio
na fria pureza do vidro
luz vento e destino

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Na cintilação da água

Joshua Benoliel - Fragatas do Tejo (1912)

Na trémula cintilação da água navegam os velhos sonhos da humanidade. Fragatas não são fragatas, mas símbolos de um desejo vindo de tão longe que não sabemos onde nasceu. Por maiores que sejam as rotas ou por mais exactas as cartas de marear, voltamos sempre aquele mistério que nos fala da queda do homem e da expulsão do velho paraíso.

domingo, 11 de maio de 2014

Fazer e esquecer

Brassaï - Sleeping Man (1955)

Também os sonhos fazem parte da viagem. Durante a vigília, o viandante segue o seu caminho, sabedor do que está a fazer, sentidos alerta e objectivos na mente. Durante o sono, porém, a viagem contínua, pois, ao sonhar, o viandante refaz caminhos e objectivos, entrega-se ao que, no fundo do seu inconsciente, indica o que há-de fazer e o que há-de esquecer.

sábado, 10 de maio de 2014

Nada a declarar

William Henry Fox Talbot - The Old Gamekeeper (1844)

O mais importante da viagem começa quando se descobre que não existe caça a guardar. Nesse momento, abre-se mão do mundo e das coisas. O viandante não é caçador nem proprietário. Vive daquilo que lhe é trazido dia após dia e recebe cada coisa com um cântico de acção de graças. Nada lhe pertence, nada quer. Passa esta e aquela fronteira, e diz sempre as mesmas palavras: nada a declarar.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Aridez e abandono

Ernst Haas - White Sands, New Mexico (1952)

Há momentos na vida dos homens em que tudo parece um deserto. A aridez toma conta da existência e um desmedido sentimento de abandono apossa-se da pessoa. A tentação é de sucumbir e entregar-se à lamentação por tão bizarro destino. Mas saberá o viandante qual a sua verdadeira situação? Não será nessas horas de abandono e aridez que mais perto se encontra da plenitude da vida?

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Sobre a sombra

Rodney Smith - Gary Descending Stairs (1995)

A sombra não é meramente uma metáfora conveniente para dar profundidade ao livre jogo da poesia. Ela é um verdadeiro símbolo. E como todos os símbolos, a sombra simboliza múltiplas, e por vezes contraditórias, realidades. Sombra é o lugar do homem, ele que não suporta nem as trevas nem a luz mais pura. Mas o próprio homem não é mais do que sombra, uma presença evanescente sobre a terra, uma presença que, para ter consistência e não se reduzir a uma mera ilusão, necessita da Luz que o arranca à escuridão.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Haikai do Viandante (187)

Manuel Baeza - Borboletas (1979-80)

borboletas voam
e no sol vazio da tarde
os sinos ecoam

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O guia do perplexo

André Kertész - Washington Square, New York, Winter (1954)

Jesus respondeu-lhes: «A obra de Deus é esta: crer naquele que Ele enviou». (João, 6:29)

Por contaminação do pensamento grego, somos conduzidos a reduzir a questão da crença ao domínio da teoria, à discussão sobre se uma determinada crença é verdadeira ou falsa, se há ou não justificação para essa crença, isto é, se há outra crença ou conjunto de crenças que a suportem. Esta forma de pensar é conduzida pelo desejo da evidência e pela busca de consolo que a certeza traz ao espírito. Ora os textos evangélicos, nomeadamente os trechos atribuídos, nessas narrativas, a Jesus Cristo, pouco têm a ver com a consolação da certeza. Mesmo quando é proposta a fé, como é o caso do texto citado de João, o sentido nunca é teórico nem visa afirmar uma certeza. Pelo contrário, o leitor fica perante um enigma, como se a fé fosse a porta para a perplexidade e o evangelho um guia do perplexo.

domingo, 4 de maio de 2014

Os limites da lei moral

Wolf Suschitzky - Street Cleaner, Westminster, London (1937)

Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença. (Lucas, 24:31)

Pensamos muitas vezes que o reconhecimento do outro é o cerne da nossa conduta na comunidade, seja esta qual for. Esse reconhecimento é o centro da moral social e da vida ética. O estranho episódio relatado por Lucas mostra-nos todavia os limites do reconhecimento e da vida moral. Os discípulos de Emaús reconheceram-no, mas nesse reconhecimento perderam-no, como se a lei moral fosse ainda um obstáculo ao que o Cristo vinha trazer aos homens.

sábado, 3 de maio de 2014

Poemas do Viandante (456)

Roger Fenton - Vista, Furness Abbey (1860)

456. sonhar na noite e gritar

sonhar na noite e gritar
dentro do passado

e esperar que uma mulher
venha delicada

com as mãos incendiadas
e a boca em fogo

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A silenciosa escuta

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se, de novo, sozinho, para o monte. (João, 6:15)

A solidão surge nesta passagem de João em contraponto não com a vida em comunidade mas com o exercício do poder. Aquilo que cabe a cada um de nós reger não é os outros homens mas a si mesmo. O poder é o lugar expressamente rejeitado por Cristo. Todos conhecemos a sua palavra: o meu reino não é deste mundo (João, 18:36). De onde é então o seu reino? Melhor do que uma resposta dada pelo hábito, será meditar o versículo em epígrafe. Ele dá-nos uma indicação essencial: ao rejeitar um reino, o reino humano de natureza política, ele indicou o caminho do outro, o caminho da solidão.  Trata-se de um estranho reino, cuja notícia apenas pode chegar pela silenciosa escuta na solidão, mesmo que essa solidão seja rodeada pela presença da comunidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Haikai do Viandante (186)

Man Ray - Dora Maar (1936)

no rumor do céu
abre-se a luz cintilante:
logo cai o véu

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Perder a Graça

August Sander - Unemployed man (1928)

Um dos maiores equívocos dos tempos modernos reside em olhar as pessoas sem trabalho como um problema essencialmente económico. Esse olhar perverso esconde que a nossa condição original é a de seres sem emprego e sem préstimo, seres que, pelo nascimento, foram abandonados no mundo. O facto de dar emprego a alguém significa, como o mostra a origem latina (implicāre), envolver. Envolver no mundo onde se manifesta a Graça da comunidade significa acolher segundo a ordem da Graça. Um desempregado não é um excedentário económico, mas alguém a quem a comunidade obliterou a Graça do acolhimento. Graça essa que a própria comunidade recebeu para por todos distribuir.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Depende da perspectiva

Rodney Smith - Skyline, New York (1992)

Sobre as coisas humanas não há verdade possível de partilhar entre o homens. Aquilo que cada um vê depende do lugar de onde olha e do sítio para que olha. Este perspectivismo não afecta apenas a verdade. Afecta também a viagem que cabe a cada um fazer. Nenhum peregrino faz a peregrinação feita por outro, nenhum viandante faz a viagem realizada por terceiros. Tudo depende daquilo que se é e da forma como se escuta a voz que o impele ao caminho. Também a viagem depende da perspectiva.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A dor do refugiado

David Turnley - Elderly Bosnian Refugee Crying. Tuzla, Bosnia-Herzegovina (1995)

As lágrimas de um refugiado não são apenas o sintoma de uma situação crítica na ordem do mundo. A perda da pátria e o estar num território estranho, no qual não se tem direito de cidadania, são terríveis experiências do mundo. Mas a dor do refugiado é ao mesmo tempo símbolo e reminiscência. Símbolo de um outro exílio e reminiscência de uma pátria não terrestre que todos trazemos em nós. Por isso, a dor do refugiado não é apenas dor de quem perdeu a cidadania na cidade terrestre, é também a dor de quem descobriu que já era refugiado na sua própria pátria.

domingo, 27 de abril de 2014

A procura do sentido

Wolf Suschitzky - Sunday morning, Oldham (1946)

Escutar o silêncio da solidão ou a velha ária do abandono. Nessa música está todo o destino da humanidade. Atirado para o mundo, o homem vê os laços a desfazerem-se. E se atravessa a estrada não é para recompor o que está a perder, mas procurar um sentido - um novo sentido - para tamanha solidão e tão grande abandono. E tudo se joga nesse instante. A perdição ou a salvação dependem da descoberta ou não do Sentido. 

sábado, 26 de abril de 2014

Poemas do Viandante (455)

Paul Gauguin - O cavalo branco (1898)

455. Tenho um cavalo de seda

Tenho um cavalo de seda
À minha espera

Nele entro na terra fria
Nunca cavalgada

E no ritmo do galope
Descubro o silêncio

Descubro um velho cântico
Na boca calada

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Tornar-se vazio

Charles Clifford - Carrera de San Jerónimo, Madrid (1853)

O essencial não é ser isto ou ser aquilo, mas tornar-se vazio, desocupar em si o espaço ocupado pelo desejo e pela ilusão, e esperar que, nesse mesmo instante, o vazio seja preenchido pela Vida exuberante, pela Realidade que, estando para além do domínio da aparência, só nesse vazio de si se manifesta.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Haikai do Viandante (185)

Wolf Suschitzky - Embankment, London (1947)

água e penumbra
um rio de pedra e luz
repousa na sombra

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O alfa e o ómega

Édouard Boubat - Paris, France (1962)

Os termos alemães Urmensch e Übermensch poderão ajudar-nos a compreender um dos elementos estruturais da nossa cultura. No entanto, não devemos traduzir Urmensch por homem primitivo ou pré-histórico, nem Übermensch por super-homem. Urmensch pode ser visto como o homem primordial, aquele que é o paradigma de toda humanidade e que está presente no fundo de cada ser humano. Por seu turno, o Übermensch ainda é o homem, mas, ao mesmo tempo, é mais que humano. Não há uma diferença entre o Urmensch e o Übermensch, embora para cada homem em particular, cada ser humano empírico, eles constituam dois pontos diferentes da viagem. Um, o homem primordial, é o ponto de partida, o outro o ponto de chegada. A tradição religiosa do Ocidente, o cristianismo, está toda ela aqui. Um é o alfa e outro é o ómega. Nessa tradição, o Cristo é, ao mesmo tempo o alfa e o ómega, o Urmensch e o Übermensch, o início e o fim do caminho.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um grão de areia na duna

Brett Weston - Dune, Oceano (1934)

Recebemos uma estranha educação. Devido a ela, o homem convence-se que é livre quando, de ego inflacionado, impõe aos outros a sua vontade. Não estranha que liberdade e império possam conflituar. A liberdade, porém, nasce da ausência de ilusões sobre si mesmo, nasce quando o homem se descobre como um grão de areia perdido na imensidão da duna.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Da elevação e da queda

Brassaï - Les Escaliers de Montmartre, Paris (1930)

A escada surge, muitas vezes, como o símbolo de uma árdua subida ao que é mais elevado, mas é também um instrumento de descida. Melhor, a escada é uma forma de ocultar a própria queda. Descer tranquilamente é ainda uma forma de passar para um nível menos elevado, para um grau de compreensão da realidade menos luminoso, para um afastamento daquilo que é superior. Como todos os símbolos, a escada tem uma natureza ambígua. Mostra ao homem o esforço da elevação e esconde-lhe a tragédia da queda.

domingo, 20 de abril de 2014

Domingo de Páscoa

Agnes Marttin - Sem título n.º 11 (1977)

Na genealogia da palavra Páscoa encontramos duas raízes que merecem meditação. Em primeiro lugar, a pesakh hebraica, que significa literalmente passagem. Em segundo lugar, a pascua, vinda do latim vulgar e com a significação de pastagem. A Páscoa, na tradição católica, não é, então, apenas um tempo de transição ou uma experiência do trânsito da morte para vida, de ressurreição. Sendo isso, ela é também alimento, aquilo que permite manter a vida viva.

sábado, 19 de abril de 2014

Sábado de Aleluia

Agnes Martin - Canción (1962)

A transição entre a morte e a libertação dessa morte é feita pelo canto de louvor. É isso que encontramos no denominado tríduo pascal, como se a transição entre a morte e a ressurreição se fizesse cantando. Isto permite-nos compreender uma outra forma de dialéctica, diferente daquela que tem no seu cerne a negação. O negativo é agora o ponto de partida, mas o homem através do canto de louvor - Aleluia! - ergue-se à plenitude da vida, à emancipação da morte e à afirmação da vida.