terça-feira, 18 de março de 2014

Que assim seja

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

Que resta ao homem mergulhado no abismo? Não seria ridículo interrogar-se sobre a sua situação, especular sobre os fundos abissais ou as possibilidades de chegar a terra segura? Sim, tudo isso seria ridículo e inútil. Se o abismo o convocou e se ele seguiu a intimação, a única resposta possível é: que assim seja.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O desabrigo dos sem-abrigo

Oscar Gustave Rejlander - Homeless (1860)

A condição de sem-abrigo não é acidental, não é o resultado dum azar na vida ou duma deficiente mobilização das faculdades racionais do homem. Sem-abrigo é a condição do homem no mundo, por maior que seja o palácio onde vive, por maiores que sejam os cuidados e a segurança mobilizados. Estar vivo é estar desabrigado, exposto à arbitrariedade dos elementos naturais, aos caprichos da sociedade, ao jogo da sorte, em suma, à surpresa da vida. Estar desabrigado, porém, pode ser também um acto de se tornar disponível para ouvir aquilo que, no fundo do homem, chama por ele.

domingo, 16 de março de 2014

De degrau em degrau

Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

Um dia ouvi que uma certa tribo de esquimós, cujo nome já não recordo, tinha mais de sessenta palavras diferentes para designar o branco. Viviam numa paisagem onde, praticamente, só existia a cor branca e tiveram necessidade de apurar a linguagem para especificar as diferenciações que lhes permitiam viver. Também o viandante tem necessidade de introduzir diferenciações na paisagem por onde caminha. Fá-lo como se criasse os degraus duma escada infinita, onde cada degrau impele o espírito para um novo e já transitório degrau.

sábado, 15 de março de 2014

Esquecer-se de si

Robert Capa - FRANCE. 1944. Normandy. Omaha Beach. The first wave of American troops lands at dawn.

O mais difícil da viagem não é o caminhar, o mais difícil é desprender-se de si ao caminhar. Seja para onde for que o viandante se volte, o ego - o seu pequeno ego - apresenta-se como o herói, o falso herói, duma gesta imaginária. Sim, sabemos que o essencial é cumprir a injunção faça-se a Tua vontade, mas dentro de nós grita mais alto a vontade própria. E quanto mais o viandante quer que ela morra e ceda os seus direitos, mais ela luta por se afirmar e conquistar território. O mais difícil é aprender a morrer para si mesmo, esquecer-se de si.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

Amedeo Modigliani - Sol reflectido na água (1905)

452. Este sol que traça sombra

Este sol que traça sombra
na copa das árvores.

Estas árvores perdidas
na boca da tarde.

Esta tarde incendiada
no fundo de ti.

E tudo agora renasce,
Sombra e sol sem fim.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Escrita e caminho

Aurelie Nemours - Écriture (1975-1995)

A escrita não é a mera fixação duma comunicação oral. Se o fosse, a sua função seria meramente instrumental. Na escrita - ou na Escritura - inscreve-se uma indicação. Ela não indica aquilo que está para trás, mas antes o caminho que o viandante deverá seguir, aquilo que está além e o aguarda.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Na sombra do esquecimento

Sol LeWitt - Scribbles on color (1990)

Recordemos o fundamental. As nossas pegadas no mundo não passam de pequenos rabiscos feitos na areia duma praia com mar tormentoso. Convencemo-nos de que somos os heróis duma gesta gloriosa, mas mal inscrevemos no mundo o tracejado da nossa acção, logo a água e o vento conspiram e nos devolvem para a sombra silenciosa do esquecimento. Chegados aí, estamos em nossa casa.

terça-feira, 11 de março de 2014

Haikai do Viandante (179)

Mon Montoya - ¿Hasta cuándo conservaron la ilusión de que podrían quedarse? (1999)

estranhos sinais
rasgam dorida a planície:
anjos e animais

segunda-feira, 10 de março de 2014

Dentro do crepúsculo

Carlo Carra - Depois do pôr-do-sol (1926)

O crepúsculo simboliza a condição do homem sobre a terra. Ele está a meio-caminho entre as trevas da noite e a luz triunfante da manhã. A errância pode conduzi-lo à mais densa escuridão, mas a viagem pode trazê-lo a uma cada vez maior claridade, como se caminhasse sempre dentro do crepúsculo, mas a cada passo, embora sem nunca desaparecer, a sombra fosse diminuindo.

domingo, 9 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

João Queiroz - Sem título (2007-8)

452. Espero-te no deserto

Espero-te no deserto,
despido de mim.

Sei-te longe mas tão perto,
és um não e um sim.

Velho destino incerto,
não, não terás fim.

sábado, 8 de março de 2014

Obstáculos e portas

John Constable - A boat passing a lock (1824)

Superar um obstáculo não significa o fim dos obstáculos. Abrir uma porta não implica que se tenha chegado ao destino. A viagem não tem fim. Infinitas são as portas e inumeráveis os obstáculos. Ao viandante, apenas cabe continuar o caminho e dar graças pela porta que se abriu ou pelo obstáculo disposto no caminho.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma nova inocência

Luc Tuymans - Disenchantment (1990)

O triunfo da ciência moderna e da razão instrumental trouxeram o fim do mundo encantado em que o homem vivera até então. Com esse fim, nasceu a nostalgia do encantamento, o desejo de reencontrar essa unidade perdida entre a natureza e a sobrenaturalidade. Esse passado não é apenas um estranho país. É uma pátria para sempre interdita. O retorno a essa inocência - uma inocência culpada pelo que havia nela de desconhecimento - está-nos vedado. A perda dessa inocência, porém, abriu o caminho para uma nova inocência, aquela que nasce do conhecimento e da dissolução da culpa.

quinta-feira, 6 de março de 2014

O leitor final

Antonio Tápies - O leitor final. A carta (1950)

Perante uma comunicação - uma carta, um livro, etc. - o que significa a expressão "leitor final"? Será o último destinatário? Será aquele que toma a leitura como um fim? Não. Por leitor final devemos entender aquele que ao ler se toma a si como fim. Ler faz parte da viagem, dessa viagem que cada um faz para si mesmo. O enigma que o texto traz consigo não reside no próprio texto mas naquilo que ele desencadeia no próprio leitor, de tal forma que este se descobre como o fim de todas as suas leituras.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Da sonolência temporal

Elizabeth Holsman - Um dia sonolento (1915)

Nos dias de torpor manifesta-se ao espírito uma certa qualidade do tempo que não é visível noutras alturas. É como se o tempo objectivo se tornasse mais lento, e a própria temporalidade se mostrasse cansada. Argumentar-se-á, não sem razão, que essa experiência se deve à nossa disposição psicológica e a uma certa configuração neuronal. Ambas levarão a uma antropomorfização da natureza, projectando a sonolência do homem na própria realidade objectiva. Nada melhor para o comprovar do que a medição exacta dos ciclos do dia e da noite. O que podemos perguntar, contudo, é pelo motivo que, em certas alturas, nos leva a considerar o tempo como lento. Não será a própria realidade e o decurso do tempo a exigir de nós esse tipo de interpretação? Não terá a natureza a necessidade de multiplicar as temporalidades, para melhor se manifestar, desprendendo-se de uma leitura objectivista dada pela medição do relógio?

terça-feira, 4 de março de 2014

Para além do homem

Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)

                                         Digno de compaixão é o homem que não ultrapassa o homem (Séneca).                                                                                       
Ser mais que homem é o desejo inscrito no coração da humanidade, como se a ideia de se ser aquilo que se é fosse escandalosa e digna de compaixão. Nesta ânsia de ultrapassagem podemos pensar com Nietzsche o sobre-homem, mas também podemos pensar o não homem, a não humanidade. Esta não significa obrigatoriamente uma inumanidade entendida como barbárie e ferocidade animal, mas algo que seja incomensurável com o homem. Por exemplo, Deus que permanece inefável para o discurso humano.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Haikai do Viandante (178)

Paul Klee - Landscape with yellow birds (1923)

um raio de sol
e uma revoada de pássaros
chama a primavera

domingo, 2 de março de 2014

Do finito e do infinito

Jacinta Gil Roncalés - Busca do infinito (1991)

A marca mais manifesta da nossa finitude é a natureza insaciável do desejo humano. Essa insaciabilidade, porém, não nos mostra apenas a nossa limitação e finitude. Torna manifesto, ao sentimento e à razão, o infinito, como se a insaciabilidade de que padece a nossa faculdade de desejar fosse o reflexo - melhor, o negativo fotográfico - do infinito que chama por nós.

sábado, 1 de março de 2014

Poemas do Viandante (451)

Salvador Dali - La ilusión diurna: La sombra del gran piano acercandose (1931)

451. Chove. Chove no silêncio

Chove. Chove no silêncio
deste dia de Março.

Uma água de primavera
desce sobre o mundo

e desenha no teu rosto
a luz duma sombra.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Para lá da esperança e do medo

Lawrence Alma-Tadema - Between Hope and Fear (1876)

A expectativa domina a vida dos homens. A necessidade vital de prever o que vai acontecer acaba por dividir o homem entre o medo e a esperança, as formas negativa e positiva de expectativa. A viagem, porém, só começa quando se abandona qualquer expectativa, quando se deixa de lado tanto o medo como a esperança. Nessa hora, começa a aceitação. Aceitar, porém, é a mais difícil das aventuras.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ascensão e pausa

Johannes Itten - Ascensão e Pausa (1919)

Como pensar a vida sobre a Terra? Se esta é a nossa condição, ela não é a finalidade para a qual o desejo dos homens, de uma maneira ou de outra, se dirige. Ascender, elevar-se, subir a escarpada montanha, eis aquilo que move o mais secreto dos segredos do homem. A pausa na ascensão é o tributo que há que pagar à gravidade, esse desejo que a Terra tem de nela prender os seus filhos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Acção de graças

Markus Luepertz - Acção de graças (2001)

Talvez o mais importante na viagem que cabe a cada ser humano seja a acção de graças. Esta não é meramente um exercício religioso, onde o fiel, perante a divindade, reconhece a graça recebida e a sua omnipotência. A acção de graças é um acto social de reconhecimento daquilo que em nós é devedor do outro, seja este outro um ser humano, um animal ou a natureza em geral. E o que haverá em nós que não seja devedor do outro? Na acção de graças confluem a generosidade da graça e o reconhecimento. Nessa confluência está o alicerce de toda a comunidade autêntica.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (177)

Esteban Vicente - Ao longe (1970)

obscuras paisagens
erguem-se sobre os meus olhos
ferozes imagens

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Elemento fogo

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Fogo (1986)

Ao atingir a perfeição, tudo incandesce, a terra, a água, o ar. No princípio e no fim está o fogo. Crepita nas lareiras, braveia na floresta, sopra no fundo das galáxias. No escuro da noite, quando o coração se exalta e o espírito se ilumina, é o fogo que desce e se torna vida.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Elemento ar

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Ar (1986)

Descobre-se no sopro, canta no vento, viaja incógnito sobre terra e água. Tão subtil que parece o símbolo da ciência, a promessa de um voo, o desígnio de um profeta que, tomado pela vertigem, anuncia um mundo de fogo e desolação.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Elemento água

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Água (1986)

Presa à terra e toda ela ânsia de mobilidade, metamorfose, figura que ao perder-se se transfigura. No seio, a leveza do ar e o desejo do fogo, a vida que se incendeia. No frio, é pedra e gelo, anúncio de morte. Água, o mistério dos mistérios. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Elemento terra

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Terra (1986)

Dos quatro elementos, a terra é o mais pesado. Traz com ele o segredo da gravidade e enraíza os homens no lugar a que chamam pátria ou lar. E no entanto está prestes a liquefazer-se, pois é pó, poeira arrastada pelo vento. E sob o sopro do vendaval, as casas entregam-se à ruína e os impérios desfazem-se.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Como as árvores

Liubov Popova - Árvores (1911-12)

Árvores, raízes na terra, ramos erguidos aos céus. Se há alguma coisa que estamos a perder é a percepção da árvore como símbolo da condição humana. Também o homem pertence à terra, é nela que tem as suas raízes, mas é ao alto, aos céus, que deve aspirar. No entanto, o peso da gravidade dobra-lhe a cerviz e, impotente, o olhar perde-se no pó. Será ainda capaz de voltar a olhar para uma árvore e deixar-se instruir por ela?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (176)

Carmen Dominguez - Cuando la luz confesó

um mistério habita
no sagrado ser da luz
voa e logo grita

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Na orla do bosque

Camille Pissarro - Lisière d'un bois (1879)

Estar na orla do bosque é permanecer na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Ali o viandante hesita, talvez tomado pelo pânico, talvez forçado pela tradição do cálculo. O que ganha e o que perde? O medo ou a interrogação retêm-no nesse lugar ensombrado. Terão mais força os velhos hábitos ou a voz que o chama conduzirá o seu desejo? É na fronteira, nesse espaço irreal, que os homens, indecisos, acabam por dissipar o tempo. Fugir ou adentrar-se no obscuro território que está para além da raia, eis o dilema onde a vida se dissolve.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ocaso

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Não é quando o Sol se põe e a noite desce que a viagem termina. O poente é antes o sinal de partida. Ao viandante espera-o a noite escura, a noite onde tudo se dissolve e o velho sentido das coisas é arrastado para o nada donde saiu.