Discípulo Anónimo de Saraceni - La negación de San Pedro
Naquele tempo, estando Jesus à
mesa com os discípulos, sentiu-Se intimamente perturbado e declarou: «Em
verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de entregar!» Os discípulos
olhavam uns para os outros, sem saberem a quem se referia. Um dos discípulos,
aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro
fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele,
apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou: «Senhor, quem é?» Jesus
respondeu: «É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado.» E molhando o
bocado de pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, logo após o bocado,
entrou nele Satanás. Jesus disse-lhe, então: «O que tens a fazer fá-lo
depressa.» Nenhum dos que estavam com Ele à mesa entendeu, porém, com que fim
lho dissera. Alguns pensavam que, como Judas tinha a bolsa, Jesus lhe tinha
dito: 'Compra o que precisamos para a Festa', ou que desse alguma coisa aos
pobres. Tendo tomado o bocado de pão, saiu logo. Fazia-se noite. Depois de
Judas ter saído, Jesus disse: «Agora é que se revela a glória do Filho do Homem
e assim se revela nele a glória de Deus. E, se Deus revela nele a sua glória,
também o próprio Deus revelará a glória do Filho do Homem, e há-de revelá-la
muito em breve.» «Filhinhos, já pouco tempo vou estar convosco. Haveis de me
procurar, e, assim como Eu disse aos judeus: 'Para onde Eu for vós não podereis
ir', também agora o digo a vós. Disse-lhe Simão Pedro: «Senhor, para onde
vais?» Jesus respondeu-lhe: «Para onde Eu vou, tu não me podes seguir por
agora; hás-de seguir-me mais tarde.» Disse-lhe Pedro: «Senhor, porque não posso
seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!» Replicou Jesus: «Darias a vida por
mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres
negado três vezes!» (
João 13,21-33.36-38)
[Comentário de Francisco de Sales
aqui]
Poder-se-ia fazer o elenco das figuras negativas perante Cristo. A
primeira figura do negativo seria a do não reconhecimento, a segunda a da indiferença, a
terceira a da negação e a quarta a da traição. Nos textos
evangélicos a primeira figura, e por vezes a segunda, assomam sob o modelo do
fariseu ou do doutor da lei. São negatividades exteriores, digamos assim. As
duas últimas figuras são exemplificadas por discípulos, Pedro e Judas, e remetem claramente para uma negatividade interior.
Um dos caminhos de interpretação do texto proposto para hoje seria
o de moralizar e propor uma avaliação ética da negação e da traição. Isso, porém,
seria reduzir o cristianismo a um mero caminho moral de vida, reduzindo a
figura de Cristo a um mestre da moral, a uma espécie de Sócrates judaico, que
teria trocado a argumentação lógica pelo paradoxo das parábolas. De certa
forma, foi isso o que o protestantismo acabou por fazer. O cristianismo,
contudo, dirige-se a uma transformação existencial, a uma conversão ontológica. Esta
conversão está muito para além do bem e do mal, para além da dimensão moral.
O que está em causa é a conversão da pessoa ao Cristo que há em si, o
abandono do eu empírico, da máscara social que sempre ressoa sob a palavra
pessoa. Assim compreendido o cristianismo, a questão da negação de Pedro ou da
traição de Judas ganha uma outra significação e – não negando a historicidade
do acontecimento – confronta-nos a nós mesmos naquilo que há de mais fundo e misterioso no nosso ser.
Negar é o que acontece connosco quando aquilo que nos é exigido ameaça
o nosso eu empírico, põe em causa a verdadeira mascarada com que nos
apresentamos na vida social e perante nós mesmos. No processo de negação há, de
facto, reconhecimento, mas esse reconhecimento é negado por motivos de
segurança do eu empírico, essa ilusão sempre ávida de segurança e de certificação da sua existência. Trair, por seu turno,
significará vender aquilo que há de mais essencial em nós. O aspecto comercial
da traição, embora importante, não é o mais significativo. O mais importante é
que a traição conduz à morte do Cristo que há em nós, à morte daquele que é o caminho
de libertação e de emancipação de cada um. Aquele que trai o Cristo, a fonte de
Vida que tem em si, morrerá, isto é, ficará confinado à sua dimensão empírica, à ilusão de si mesmo, ficará preso à máscara que criou.