Carlos Schwartz - Purificación (1998)
Antes da festa da Páscoa, Jesus,
sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai,
Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao
extremo. O diabo já tinha metido no coração de Judas, filho de Simão
Iscariotes, a decisão de o entregar. Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo
perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para
Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à
cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e
a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. Chegou, pois, a Simão Pedro.
Este disse-lhe: «Senhor, Tu é que me lavas os pés?» Jesus respondeu-lhe: «O que
Eu estou a fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.»
Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus:
«Se Eu não te lavar, nada terás a haver comigo.» Disse-lhe, então, Simão Pedro:
«Ó Senhor! Não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» Respondeu-lhe Jesus:
«Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo. E
vós estais limpos, mas não todos.» Ele bem sabia quem o ia entregar; por isso é
que lhe disse: 'Nem todos estais limpos'. Depois de lhes ter lavado os pés e de
ter posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: «Compreendeis o que
vos fiz? Vós chamais-me 'o Mestre' e 'o Senhor', e dizeis bem, porque o sou. Ora,
se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés
uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós
façais também. (João 13,1-15)
[Comentário de Teresa de Lisieux aqui]
No texto de João cruzam-se, de forma inopinada, duas acções rituais, a
ceia e o lava-pés. Pode-se pensar a ceia pascal como simbolizando um ritual de
reforço da vida comunitária (embora a simbólica que lhe está associada é de tal
maneira poderosa que o seu significado é inesgotável) e o lava-pés como um
ritual de purificação, uma purificação que se inscreve já no âmbito de uma
purificação anterior (Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois
está todo limpo), talvez o baptismo.
Três indicações parecem claras. A persistência de uma comunidade está
ligada a uma conduta de purificação contínua. Em segundo lugar, o ritual
purificador estabelece uma interacção entre o que purifica e aquele que é
purificado. Ninguém se purifica a si mesmo, mas é purificado pelo Outro. Por
fim, assistimos a uma subversão da ordem hierárquica presente na comunidade.
A comunidade em causa não é uma comunidade política, embora se
inscreva nela. Os textos evangélicos estão cheios de referência à presença obsidiante
de uma comunidade mais alargada que a comunidade constituída pelo Mestre e
pelos discípulos. Isto não significa que se esteja perante uma contra-comunidade
ou uma comunidade alternativa. Significa que a comunidade instituída por Cristo
se inscreve na outra como o ideal dessa própria comunidade, como símbolo de uma
comunidade justa que vive segundo a verdade.
Esta comunidade que é pela sua realidade símbolo ideal de qualquer
comunidade humana exige, no seu compromisso com a justiça moral e a verdade, um
processo contínuo de purificação. A justiça e a verdade só se tornam acessíveis
pela purificação da intenção. O que é surpreendente é que a intenção pura não é
dada a priori, mas resulta de um
processo de interacção entre o homem e Deus, na pessoa de Cristo. Não sou eu
que me purifico, mas o Cristo que há em mim ou que está presente na comunidade.
Purificar é um serviço que o mais elevado, o que é puro, presta aos
homens e, por isso, é Cristo que lava os pés aos discípulos e não o contrário.
A hierarquia humana é subvertida por Cristo. O mais elevado serve os menos
elevados. O Mestre e Senhor veio para servir, para que os homens fossem
purificados da errância que é estar no mundo sujeito às vicissitudes da
existência empírica. Curiosamente, esta subversão da normal hierarquia humana
tem por finalidade instituir na comunidade uma igualdade entre os seus membros:
Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos
lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade,
dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. O poder
purificador é transmitido à comunidade na figura do outro. São os outros que me
tornam puro e esse é o seu serviço, bem como o meu é purificar os outros. A
purificação da intenção de cada um reside na sua capacidade de descentramento e
de escuta. Não há intenção pura no solipsismo ou na afirmação narcísica da sua suposta pureza.
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Com o comentário de hoje termina a aventura,
pois foi uma verdadeira aventura, de comentar os textos evangélicos propostos pela
tradição católica para cada dia da Quaresma, a qual termina também hoje. Como
se disse (aqui),
os comentários não se inscrevem nem no campo da liturgia nem da teologia, áreas
para as quais o comentador não tem qualquer competência. Os comentários
inscrevem-se numa leitura espiritual e filosófica de textos capitais da cultura
ocidental, numa tentativa de os retirar da recepção habitual, que os foi
banalizando e trivializando, e de apreender o espírito que neles sopra e o
escândalo que eles, ainda hoje, poderiam provocar. Escândalo para a razão e não
para a vida social, pois esta tornou-se estranha aos textos. Estranheza proveniente
tanto da indiferença como de certa recepção religiosa
que os banaliza e trivializa ao ponto deles, com a sua enorme potência
escandalizadora, não provocarem já – falo em termos gerais e não em casos
particulares – quaisquer sobressaltos na consciência. Aconteceu com estes textos
o mesmo que, segundo a estética de Walter Benjamin, aconteceu com as obras de
arte na época da sua reprodutibilidade técnica, perderam a aura. Estes
comentários foram uma tentativa – por parte do comentador – de recuperação –
pelo menos, para si – dessa aura perdida.