sábado, 7 de novembro de 2015

Um ofício sem fim

Salvador Dali - Voyeur (1921)

Mulheres que se despem, casais movidos pelo desejo e que se abraçam como se a morte os espreitasse, nada disso o interessava. Deixava-se ficar não porque estivesse interessado nos múltiplos espectáculos que a vida dos homens lhe traziam, mas porque estar ali fazia parte do ofício. Um café forte e quente iluminava-lhe a alma e deixava-o a meditar naqueles corpos que, no descuido da noite, se ofereciam à sua visão. Seria um voyeur? Claro que não. Por vezes dormitava e, quando a temperatura descia, acordava. Apesar da sua fama, sempre odiara o frio. E lá estavam as mesmas mulheres a despirem-se, os mesmos casais a abraçarem-se, a mesma agonia perante a morte. Olhava. Teria de escolher alguém. Também ele tinha livre-arbítrio. No seu olhar não havia desejo mas apenas o tédio de uma missão cumprida uma e outra vez, numa repetição sem fim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O ritmo dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Teme-se muito - e não sem razão - a dependência dos objectos. Uma dependência fascinada, na qual sempre podemos ler um estranhamento de si, uma alienação. Contudo os objectos possuem os seus ritmos. O viandante deve aprender a olhar e a sentir esses ritmos, pois também os objectos fazem parte do caminho que ele deve percorrer. Também eles exigem a ascese do viandante, um prolongado exercício de observação e de aprendizagem. Também eles são manifestações do espírito.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O fascínio das antiguidades

Karl Schmidt-Rottluff - Antiguidades (1928)

O fascínio com as antiguidades, se já atormentava as mentes na Antiguidade Clássica, teve no Renascimento um notável incremento. A partir daí, à medida que a modernização das sociedades as afastavam da vida tradicional, o culto pelas antiguidades não parou de crescer. Nunca se pensa, contudo, que este fascínio é o sintoma de um vazio espiritual, a confissão de uma impotência de viver plenamente o tempo que nos foi dado, de nele escutar a voz do vento, aquele vento que sopra onde quer e que, perante o feitiço das formas mortas, não pára de nos chamar à vida.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Disciplinar-se a si

Pierre Bonnard - O exercício (1890)

Também a vida do espírito tem uma dimensão militar. Quantas vezes, mesmo na religião, se fala em milícia. Esta dimensão militar da vida espiritual não visa fazer a guerra ao outro, mas aprender a disciplinar-se a si. Também esta disciplina não significa a rigidez do hábito. Pelo contrário, a disciplina do exercício - da ascese - é o caminho para acolher esse vento que sopra onde quer.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (255)

Egon Schiele - Quatro árvores (1917)

árvores perdidas
esperam a luz do outono
um rasto de vida

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A hora da espera

Carlo Carra - Dopo il Tramonto (1926)

Deixar que o silêncio envolva o murmúrio das águas. Deixar que a luz do crepúsculo seja tomada pelo assalto da noite. Ali, onde toda a luz se apagou e toda a voz se suspendeu, o viandante começa uma nova viagem. Não à procura da sua luz ou da sua voz, mas à espera da voz que, vinda de lado nenhum, o iluminará e indicará o caminho.

domingo, 1 de novembro de 2015

Das artes e das letras

Fernand Léger - A leitura (1924)

Uma das distinções centrais entre a literatura e as artes plásticas pode ser pensada a partir do olhar. Na pintura e na escultura, o olhar concentra-se no objecto artístico. Repousa nele, perscruta-o, observa os jogos da cor, da forma, da luz. A relação entre a obra e o olhar é essencial. Na literatura, porém, essa relação é apenas instrumental. O leitor também fixa o olhar nas palavras do poema ou da narrativa, mas fixa-o aí para poder olhar para além do texto, para o mundo espiritual que é evocado. Nas artes plásticas, o espírito materializa-se e torna-se concreto. Na literatura, o texto é apenas um medium da relação entre o espírito do leitor e o da obra. É tudo isso que o quadro de Fernand Léger torna patente de forma tão ostensiva.

sábado, 31 de outubro de 2015

A terapia da acção

Pablo Picasso - Contemplación (1904)

A contemplação não é propriamente o oposto da acção. Agir arrasta sempre consigo uma qualquer dor. E esta dor transforma-se numa melancolia, a melancolia da acção. Quando a melancolia se torna insuportável, a contemplação emerge como a terapia da acção.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (254)

Dionisio Fierros - Acantilados en Asturias

águas entre montes
espelham o céu de inverno
murmúrio nas fontes

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As velhas casas

Chaim Soutine - Old House near Chartres (1934)

Há nas velhas casas um estranho encanto. Este nasce-lhe daquilo que elas puderam observar e absorver ao longo de uma vida maior que a dos homens. O espírito destes - as suas venturas, as suas aventuras e as suas desventuras - impregna-se nas paredes, no telhado, em toda o lado. As casas não são coisas inertes. Nelas concentra-se também a aventura espiritual do homem, seja esta grande ou pequena. Seja esta um triunfo ou uma derrota.