domingo, 12 de abril de 2015

Poemas do Viandante (504)

Edward Hopper - Morning Sun (1952)

504. no trânsito destes dias

no trânsito destes dias
cresce uma sombra

traz nela uma promessa
de frutos ao vento

traz nela uma melodia
feita de luz e rosas

no trânsito destes dias
sol e esquecimento 

sábado, 11 de abril de 2015

Ofícios e profissões

Joaquín Mir - Carpinteiro

O que distingue um antigo ofício de um profissão moderna? Esta ou é meramente rotineira ou exige conhecimento técnico; por vezes, ambas as coisas. Nela, porém, tudo se reduz à eficácia, nada mais possibilitando ao homem do que um contacto superficial e, muitas vezes, patológico com o mundo material. Os antigos ofícios continham neles uma possibilidade que se nos tornou estranha. Pelo afeiçoamento da matéria, pela excelência e virtuosismo dos actos, o artesão tinha a possibilidade de encontrar no seu quotidiano o caminho onde poderia realizar a viagem espiritual. Um ofício era um caminho possível para o espírito, uma profissão é uma corrida sem destino nem proveito para a alma.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Esquecer a sua natureza

Juán José Vera - Ansiedad (1951)

A ansiedade é compreendida, geralmente, como uma perturbação provocada pela eminência de um perigo ou de alguma coisa desagradável ao indivíduo. Se nos adentrarmos na arqueologia do termo encontramos a disposição para a inquietação. Ora esta disposição para estar inquieto tem o seu centro não no que está fora do indivíduo mas naquilo que ele traz em si e ocultou de si mesmo. O perigo de se alienar da sua verdadeira natureza, o perigo de se esquecer de si. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Filhos pródigos

Aristide Maillol - L'enfant prodigue (1889)

Por vezes surge a pergunta: quem é o viandante? A resposta é muito simples. O viandante é o filho pródigo que procura a casa onde nasceu, que busca acolher-se ao lar e à pátria onde pertence. Na verdade, cada um de nós é um filho pródigo e, por isso, está a caminho de casa. Cada um de nós é um viandante.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os quatro elementos

Ivonne Sánchez Barea - Aire I (1997)

A velha doutrina dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - tinha, na sua ingenuidade e inocência míticas, um potencial de descrição da realidade mais elevado do que aquilo que se pensa hoje em dia. Certamente, esse potencial não estava ligado a uma descrição física do universo, mas a uma descrição do homem, dos seus estados múltiplos possíveis. Não se pode dizer que esses elementos caracterizassem diversas formas de espírito humano, mas antes que seriam metáforas que designavam formas de ser que continham tanto o corpo como o espírito. Fundamentalmente, são metáforas das possíveis metamorfoses psicossomáticas, no sentido grego dos termos presentes nesta palavra, pelas quais pode o ser humano passar,

terça-feira, 7 de abril de 2015

Designações vazias

Agnes Martin - A rosa (1964)

A pintura contemporânea tende a estabelecer uma relação arbitrária entre o quadro e a designação que lhe é atribuída. Esta arbitrariedade deriva do choque entre o que é visível e a palavra. Talvez a finalidade desta estratégia seja a de marcar a diferença abissal entre o pictórico e a sua interpretação, já que toda a denominação pode ser pensada como interpretação. O espectador, desconcertado, tem de encontrar um caminho para a experiência estética e esquecer a palavra. Isto, contudo, é apenas um dos lados do problema. O outro é a revelação do carácter vazio - um vazio de grande plasticidade - da própria linguagem, onde as palavras estão disponíveis para acolher aquilo que se possa colocar dentro delas. O que é válido para a arte é válido para qualquer forma da vida do espírito, nomeadamente para a experiência religiosa. Entre as palavras e a experiência há um abismo, o qual é ocultado por uma crença mágica nas palavras. Elas, porém, são apenas designações vazias a que cabe dar, pela experiência efectiva, conteúdo e verdade.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Poemas do Viandante (503)

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

503. as tristes tardes de abril

as tristes tardes de abril
cheias de nostalgia

avançam frias e serenas
sobre a velha casa

ao longe ouvem-se sinos
e risos magoados

ouve-se a voz da tua sombra
aberta ao silêncio

domingo, 5 de abril de 2015

Da imperfeição do amor

Francisco Arjona - Amor imperfecto (1984-86)

E deixa o meu pranto chegar a Ti. (T. S. Eliot, Quarta-feira de cinzas VI)

Eliot conclui assim o último poema de Quarta-feira de cinzas. E o viandante interroga-se sobre este pranto, sobre a estranha necessidade que o poeta tem em que ele se eleve a Deus. E só um motivo ele descobre que mereça o pranto e a necessidade de o elevar ao Alto, o da imperfeição do amor. A limitação da capacidade de abrir-se à interpelação do totalmente Outro, de O escutar e de O fazer viver na comunidade dos homens. E talvez tudo isto se possa ainda explicar pelo primeiro verso do primeiro poema: Porque eu não espero voltar outra vez.

sábado, 4 de abril de 2015

A experiência da via

Stipo Pranyko - Altar para um agnóstico (1996)

Eu sou a via, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim. (João 14:6)

A vida espiritual confronta-se sempre com o agnosticismo. Este mais não é do que a confissão de um não saber, de ausência de conhecimento. Muito antes de João ter escrito as palavras de Cristo em epígrafe, Platão definiu o conhecimento como crença verdadeira justificada. A vida espiritual sofreria, então, de uma limitação que a colocaria na classe das crenças dogmáticas, às quais falta justificação. Não será por isso um conhecimento, uma gnose, o que, na verdade e de forma surpreendente, torna os crentes em agnósticos. Porém, há uma justificação que desfaz o hipotético dogmatismo e o concomitante agnosticismo. A crença na verdade e na vida justifica-se não por uma adesão irracional e incompreensível mas pela experiência da via, do caminho. A experiência é a mais radical justificação que uma crença pode obter. Assim sendo, a fé, como nos ensina a palavra latina fides, não é outra coisa do que o compromisso com a via, a fidelidade à própria experiência.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

A inversão da gravidade.

Saul Steinberg - Gravity Reversed (1961)

Sexta-feira de Paixão. Como é que nós, viandantes nos tempos modernos tão cheios de ciência, podemos interpretar este acontecimento fundador da nossa cosmovisão? Apenas uma expressão: inversão da gravidade. Aquilo que nos rebaixa tornou-se naquilo que nos eleva. E isso não é o menor dos mistérios.