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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Máscaras e armaduras

Charles Clifford - The Armor of Philip III, 1866

Fala-se muitas vezes de máscaras sociais, estando estas ligadas aos diferentes papéis que os seres humanos desempenham. São um dos artefactos cénicos que são mobilizados na vida social. Nelas está sempre presente a dimensão do disfarce, o qual nos permite encarar de forma menos traumática as interacções que são exigidas nos espaços públicos e privados em que vivemos. A questão é que a máscara, sem que o pensemos, transforma-se muito cedo em armadura. Um dispositivo de defesa, de protecção, mas também de ataque. O que dá solidez às máscaras sociais é o facto de elas serem armaduras disfarçadas, armaduras mascaradas. Proteger-nos do perigo e conquistar vantagens, eis o programa da nossa animalidade. Para chegar à vida do espírito não basta tentar arrancar o disfarce, a máscara, é preciso perceber o que se esconde nele. E o que se esconde não é um suposto verdadeiro ser, mas a armadura do combatente, o sinal do seu desejo de conflito.

sábado, 2 de setembro de 2017

Destruições e escombros

Edward Weston - Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939

Há uma tendência para ver a vida do espírito como alguma coisa de glorioso, onde o viandante vai de luz em luz, de glória em glória. A esta fantasia edulcorante contrapõe-se uma realidade feita de destruições e escombros, ambos dolorosos. Não haverá para o homem maior dor que a destruição da suas mais íntimas ilusões. Olha e à sua volta tudo são escombros.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A porta do esquecimento

Chema Cobo - Amnesic Gate (1986-87)

Entrar pela porta do esquecimento é uma condição fundamental para a vida do espírito. Aquilo que não se esquece salta sempre como obstáculo no caminho. Uma distracção, um desvio, uma alienação. Entrar pela porta do esquecimento é um exercício de purificação e, ao mesmo tempo, a criação de uma clareira para que a realidade brote plena e total.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Vida interior

Meyer Schapiro - Abstract Interior (1950)

Um dos equívocos mais perigosos para a vida interior é confundi-la com uma existência plena de abstracções. Um conceito, por exemplo, é uma mera representação, enquanto a vida é sempre uma presença, um estar presente aqui e agora. O caminho do espírito começa sempre por um elevar-se da inocência concreta ao domínio da abstracção - é o momento da representação - para, de seguida, conquistar-se a si mesmo como realidade viva e plena, como presença pura no devir. Este é o tempo da sabedoria.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

A luz

Odilon Redon - L'Homme ailé ou L'ange déchu (1880)

A ambiguidade do título do quadro de Redon, independentemente das razões que assistiram ao pintor, marca um dos traços da nossa cultura. O desejo de se elevar e o temor de cair. O destino tanto de Ícaro como do anjo decaído está relacionado com a luz. Um aproxima-se tanto da fonte da luz, o Sol, que as asas derretem. Outro, Lúcifer, o anjo da luz, não resiste à desmedida de ser portador da luz. Em cada uma destas figuras, o espírito ocidental exprimiu a dificuldade de se relacionar com a Luz. Não por acaso, João, o evangelista, escreveu: a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

domingo, 30 de julho de 2017

Um Cristo crucificado

Odilon Redon - Crucificação (1910)

Olhamos o quadro de Odilon Redon e, perante a data, perguntamos, perplexos, o que faz ele ali. Ali não se trata do Museu de Orsay onde se encontra, mas de 1910. Depois do Iluminismo, do positivismo e dos diversos materialismos, por que razão tornar a apresentar um Cristo crucificado? Se nos deixarmos instruir pela pintura, talvez seja possível compreender alguma coisa. O que vemos é a solidão e o abandono do Cristo. Elas são o negativo que permitiram construir o mundo que ainda é o nosso. Pensa-se muitas vezes que a grande vantagem que o Ocidente construiu se deve à ciência e à técnica. Isso, porém, não passa de uma aparência. A vantagem que nos permitiu inclusive chegar à ciência e à técnica funda-se toda ela nessa consciência difusa de que a solidão e o abandono experimentados pelo Cristo na cruz são a nossa verdadeira condição. Sobre este alicerce construímos o resto. Umas vezes para o bem, quando aceitámos a verdade do homem; outras para o mal, quando o medo foi mais forte do que a aceitação.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Vida espiritual

Rodney Smith - Skyline, New York, 1992

O que nos ensina esta fotografia sobre a vida do espírito? Para o percebermos é necessário compreender o que ela faz. Toda a fotografia é um corte no tempo, um momento que foi subtraído ao fluxo da duração. Ao olhar a fotografia, percebe-se de imediato que os figurantes estão a encenar esse momento excluído do decurso da temporalidade. Aquilo que qualquer fotografia faz espontaneamente esta fá-lo deliberadamente, como se retornasse sobre si mesma e transformasse a inocência original e espontânea numa virtude adquirida por um longo exercício de ascese. A vida espiritual é essa ascese para tornar deliberado aquilo que um dia foi espontâneo.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Modelos

Deborah Turbeville - From the Valentino Collection, 1977

A moda é impensável sem os modelos e os desfiles que estes protagonizam. Tudo isto está intimamente ligado à transitoriedade. Dura uma estação e torna-se de imediato passado, pois qualquer coisa de novo está a irromper e a abrir a clareira da próxima colecção. Os fogos de artifício que rodeiam o fenómeno ocultam, contudo, a presença da eternidade no transitório de uma roupa. Mais do que manequins, suportes de vestuário ou calçado, os modelos são arquétipos espirituais, uma espécie de ideias platónicas, eternas e imutáveis, de cuja natureza os mortais pretendem participar. Vestidos ou sapatos não são objectos utilitários, mas o elemento metafísico que estabelece essa participação. 

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Desdobrar-se

Carel Blazer - Double print, portrait, 1932 

O desejo de se desdobrar é uma revolta contra os limites da condição humana. O corpo impõe-nos a unidade, mas o espírito é múltiplo e incansável na processo de diferenciação. Jamais está apaziguado com a unidade que a materialidade do corpo lhe impõe. Por isso, inventa continuamente novas e novas formas de se tornar outro, de se tornar múltiplo, de ser muitos apesar de possuir apenas um só corpo. Se o corpo lhe impõe que se dobre, ele, o espírito, responde desdobrando-se.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Construtores de pontes

William H. Fox Talbot - Suspension Bridge, Rouen (1846)

Na vida espiritual do homem - seja em que área for - a construção de pontes tem um lugar central. É certo que as diversas artes, no século XX, tentaram eximir-se a esse papel, encerrando-se muitas vezes em si mesmas, erguendo muros que as preservassem do contacto com o outro. Esse encerramento, porém, leva-as ao estiolamento. O espírito - onde se inclui o que anima as artes - é mediação, experiência da alteridade, ruptura com o idêntico e com a clausura. É por isso que todo o homem de espírito é um pontífice, um construtor de pontes.

domingo, 28 de maio de 2017

Viagem para si

Will Faber- Buscándome a mí (1968)

Buscar-se a si mesmo é como a tarefa de retorno de Ulisses à pátria. Múltiplos são os obstáculos que, durante a vida, se interpõem no caminho daquele que empreende a viagem de regresso si. Muitos nem se apercebem que há uma viagem a fazer. Outros soçobram no caminho vítimas de ilusões. Por fim, há os que empreendem a viagem para Ítaca, sabendo-a sempre ali e sempre distante. Sabendo que a Ítaca que encontram, sendo real, ainda é uma imagem e um símbolo da Ítaca a devem chegar. Descobrem que a viagem é infinita.

sábado, 13 de maio de 2017

Os caminhos do espírito

 Francis Wu - Shellfish Catching at Dawn, undated

Basta uma simples fotografia de uma actividade material para se perceber que a vida do espírito possui múltiplos caminhos. Antes das sendas singulares, estão vias mais gerais, a que se dá o nome de culturas. Estas conferem enquadramento e sentido para a aventura individual. O caminho espiritual, seja em que área for, é sempre um processo de singularização. As culturas mais do que dispositivos de diferenciação são meios de intermediação entre o universal e o singular.

sábado, 6 de maio de 2017

A fresta

Gilbert de Chambertrand - Paris Street, 1930s

De que se fala quando se fala de vida espiritual? Essencialmente de três coisas. De busca, de fresta e de luz. Ao homem foi dado, como circunstância da sua vida, o reino da sombra. Por vezes, afunda-se nas trevas exteriores ou interiores. A vida espiritual, porém, é a busca sem fim da fresta, uma pequena fresta, por onde a luz possa entrar na sua vida. Se a queda nas trevas é o apagamento de todo o sentido, a busca de uma fresta por onde a luz possa penetrar é a viagem incerta para a terra do sentido e da significação. O que dá sentido a uma existência? Qual a sua significação?

domingo, 30 de abril de 2017

Das sensações

Eugene Hutchinson - Hands (Texture) - (anos 1940s)

Condicionadas por filosofias como as de Platão ou, na Idade Moderna, de Descartes, algumas concepções da vida espiritual ocidentais desprezam a dimensão corporal do espírito e com elas a própria natureza espiritual das sensações. É através das sensações, porém, que o mundo se abre em símbolos para o homem e que o próprio homem se simboliza a si mesmo. E sem essa dimensão simbólica não há vida espiritual possível.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Silhuetas

Ruth Orkin - Central Park South silhouette. New York  (1955)

Estamos convencidos de que vemos, se os olhos funcionam e há luz suficiente, as coisas como elas são. E se aquilo que vemos não passar de silhuetas, perfis desenhados a carvão sobre a sombra? Como interpretar essas silhuetas? Será que precisamos de tornar a visão ainda mais aguda através de lentes cada vez mais potentes? Esse estratagema, porém, apenas nos devolve novas e novas silhuetas, como se estas insistissem em dizer que são símbolos não para a visão mas para a meditação sobre o mistério que habita cada coisa que se torna presente aos homens.

sábado, 1 de abril de 2017

Alienação

Harold Feinstein - Sharing a Public Bench (1949)

As grandes cidades são máquinas exuberantes de bulício e entusiasmo, onde o espírito se sente não apenas exaurido como, na verdade, estrangeiro. O negativo da condição citadina é o cansaço que despe os homens da sua humanidade e os encerra na penumbra que deles se apossou. A isso se deve chamar, com propriedade, alienação, esse sentimento de se sentir estranho no lugar onde se está e na pele em que se vive,

domingo, 26 de março de 2017

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

A grande batalha não é aquela que se trava com armas e que visa a morte do inimigo. A grande batalha dá-se no palco oculto de cada um. É o combate decisivo da guerra que se trava contra as próprias ilusões, com o desejo de irrealidade que habita o ser humano, com a cegueira e a surdez que tomaram conta de nós e que, na maioria das vezes, julgamos, com convicção quase invencível, que são a nossa mais autêntica realidade. A grande batalha é o combate decisivo pela verdade de si mesmo. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Velhas árvores

Edvard Munch - Old Trees (1923-25)

As velhas árvores exercem sobre a imaginação um fascínio tão grande como o fogo ou a água. Estes remetem para os elementos primordiais que seriam, juntamente com o ar e a terra, como um dia se supôs, os componentes de que todo o resto se fabricaria. A velha árvore fascina a humanidade, contudo, por outro motivo. Melhor, por vários motivos. Ela, devido à sua dimensão, parece ligar o fundo da terra ao próprio céu. Vemo-las como como um eixo de ligação entre mundos. Mas não é só por isso que elas nos fascinam. A sua idade, muitas vezes incomensurável com a esperança de vida dos homens, e a sua impassibilidade acordam em nós o desejo, nunca satisfeito, de enfrentar o tempo e as suas peripécias. Fascinam-nas porque são mensageiras da eternidade perante olhos demasiado conscientes de que são breves e passageiros.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O começo

Max Beckmann - Begining (1949)

O começo de algo ou de alguém nunca deixa de exercer sobre os homens um certo fascínio. Esse fascínio vem menos da novidade do que da possibilidade. Em cada começo há um mundo possível que permanece velado e misterioso. Que possibilidades se abrem ali? Como vai o espírito libertar-se do véu que o cobre? Terá forças para isso ou sucumbirá perante o peso da tarefa. Há começos gloriosos que conduzem a grandes derrocadas. Há também começos obscuros que, silenciosamente, se erguem à glória. Todo o começo, apesar de já conter em si tudo o que há-de vir, é incerto. O tempo se encarregará de transformar a incerteza na mais definitiva e irremediável das certezas.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Meditação breve - 4. Niilismo

Jesús de Perceval - Hasta que se aniquile (1965)

O que é o niilismo? A desvalorização de todos os valores? Não, propriamente. O niilismo é a consumação da tendência para o nada que habita tudo aquilo que existe. O niilismo é a retirada do espírito de um modo de vida que, um dia, pareceu eterno e que o tempo, essa máscara vulgar da eternidade, revelou na sua verdade, isto é, no nada que era.