James Ensor - Ecce Homo
Naquele tempo, os judeus voltaram
a pegar em pedras para apedrejarem Jesus. Jesus replicou-lhes: «Mostrei-vos
muitas obras boas da parte do Pai; por qual dessas obras me quereis apedrejar?»
Responderam-lhe os judeus: «Não te queremos apedrejar por qualquer obra boa,
mas por uma blasfémia: é que Tu, sendo um homem, a ti próprio te fazes Deus.» Jesus
respondeu-lhes: «Não está escrito na vossa Lei: 'Eu disse: vós sois deuses'? Se
ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus e a Escritura não
se pode pôr em dúvida a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é
que dizeis: 'Tu blasfemas', por Eu ter dito: 'Sou Filho de Deus'? Se não faço
as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; mas se as faço, embora não queirais
acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a
compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.» Por isso procuravam de novo
prendê-lo, mas Ele escapou-se-lhes das mãos. Depois, Jesus voltou a retirar-se
para a margem de além-Jordão, para o lugar onde ao princípio João tinha estado
a baptizar, e ali se demorou. Muitos vieram ter com Ele e comentavam:
«Realmente João não realizou nenhum sinal milagroso, mas tudo quanto disse
deste homem era verdade.» E muitos ali creram nele. (João 10,31-42) [Comentário de
Agostinho de Hipona aqui]
O texto de João começa com a exposição de um conflito em torno da
identidade de Jesus. Para os judeus, Cristo blasfemava pois, sendo homem,
fazia-se a si mesmo Deus. Quem era Ele? Um homem ou Deus? Surpreendentemente, a
questão sobre a identidade de Jesus é transformada por Este na questão da
identidade do homem, de qualquer homem. A opacidade da figura de Cristo surge
assim como continuação da obscuridade que cada um é para si mesmo. Não é apenas
Cristo que é um mistério para o homem, é o próprio homem que é mistério para si
mesmo.
Como compreender a fúria daqueles que pegavam em pedras? De certa
forma, a figura de Jesus Cristo funciona como um espelho. Ao verem-se nesses
espelho, os homens não gostam do que vêem. A imagem de si-mesmos que lhes é
devolvida está longe de lhes agradar. Observam-se numa figura onde sobressai
uma mutilação e uma feiura que não podem, por orgulho, suportar. É como se a
presença de Cristo lhes dissesse: vós sois deuses, como está na Lei, mas transformastes-vos
em meros apedrejadores, pois já não sabeis quem sois nem qual o vosso caminho.
A solidariedade entre o mistério da identidade de Cristo e o mistério
da identidade do homem tem como corolário a ideia de que a descoberta de Cristo
é, para cada homem, uma viagem para si mesmo, uma descoberta de si e da sua
própria verdade. Que isto indigne a razão torna-se evidente pelo facto de que
nem as obras visíveis – essas provas materializadas de uma identidade que
ultrapassa a mera consideração de um eu empírico – são o suficiente para
acalmar os homens. A natureza do Cristo, a sua identidade, é um escândalo para
a razão presa à abstracção lógica e limitada à informação empírica. Esse
escândalo, contudo, não é diferente daquele que reside na identidade e natureza
de cada homem. É esse escândalo que, através de Cristo, somos solicitados a
aceitar e é esse mesmo que mais tememos em aceitar. Por isso, não faltam pedras
nas mão.