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sábado, 2 de março de 2013

Uma estranha justiça

Antonio Pérez Rubio - La aventura de Don Quijote cuando ataca a la procesión de los disciplinantes

Naquele tempo, os publicanos e os pecadores aproximavam-se de Jesus para O ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: «Este acolhe os pecadores e come com eles.» Jesus propôs-lhes, então, esta parábola: Disse ainda: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: 'Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde.' E o pai repartiu os bens entre os dois. Poucos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada. Depois de gastar tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passar privações. Então, foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E, caindo em si, disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.' E, levantando-se, foi ter com o pai. Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho.' Mas o pai disse aos seus servos: 'Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.' E a festa principiou. Ora, o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se de casa ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. Disse-lhe ele: 'O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo.' Encolerizado, não queria entrar; mas o seu pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse. Respondendo ao pai, disse-lhe: 'Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.' O pai respondeu-lhe: 'Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.'» (Lucas 15,1-3.11-32) [Comentário de Bento XVI aqui]

Num mundo como o nosso, onde a questão da justiça distributiva tem um papel central, esta parábola continua a ter uma força desconcertante. Se observarmos as teorias rivais sobre a distribuição justa dos bens resultantes da cooperação social, depressa percebemos que a rivalidade não põe em causa o essencial. Deve ser dado a cada um aquilo que lhe é devido. Onde não há acordo é sobre o que se deve a cada um ou o que cada um merece. Os critérios usados para determinar o direito dos indivíduos não geram consenso e, na verdade, são formas particulares para justificar as pretensões de cada grupo ou indivíduo.

A parábola inscreve-se na controvérsia com o formalismo religioso farisaico. O formalismo abandona os homens, abandona aqueles que estão transviados e perdidos na errância, usa um princípio de segregação que opõe justos e não justos. A questão central para Cristo, porém, está nos que estão perdidos, naqueles que não são contados, pelos homens, como pertencentes ao grupo dos justos. É uma faceta do velho conflito entre sedentários e nómadas. Perante a lei moral e religiosa, os sedentários – tipificados pelos fariseus – instalam-se no território da lei, privatizam-no e excluem do território aqueles que chocam com essa mesma lei. A errância em que estes se encontram – a ideia de pecado está intimamente ligada à errância – torna-os em nómadas, gente sem território, gente que se desterritorializa a cada momento. Enquanto nos justos o impulso vital seca, parece ser transbordante nos nómadas. É a este impulso que Cristo se dirige, que convoca. É esta convocatória que traz consigo o estranho princípio de justiça presente na parábola do filho pródigo.

Nele, o princípio de igualdade não é negado mas mostrado nos seus limites. Isto significa, antes de mais, um reconhecimento de que as várias teorias sobre a justiça distributiva e o princípio de igualdade possuem apenas um valor relativo. Esta relatividade não resulta de uma vitória de teorias individualistas ou socioculturais, mas do confronto com um padrão que ultrapassa a medida humana. A justeza (mais do que a justiça) do comportamento do pai perante os dois filhos emana de uma ordem que não é a que provém da razão calculadora (tipificada pelo filho justo). Implica um elevar-se ao padrão que faz com que um pai se alegre pelo retorno de um filho perdido na errância. Provoca os homens a deslocar a sua perspectiva do mundo e do bem e a aceder a um topos que integre e ultrapasse as conjecturas sobre a justiça fundada numa visão puramente humana da razão. O que não deixa nunca de ser chocante para esta e desconcertante para os homens.