quinta-feira, 30 de maio de 2024

Impressões 118. Noite

Jorge Pinheiro, sem título, 1977 (Gulbenkian)

A noite desloca-se sobre a Terra. Sombra apaziguadora do cansaço trazido pela luz. Poder da desordem que, ameaçado pela força do cosmos, abre a porta para dança do caos. Textura da morte semeada na aridez dos campos e na volúpia dos oceanos. O seu caminho não tem fim.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (9)

Adam Elsheimer, Pan and Syrinx, 1610-1620

Frívolas fantasias pairam na tarde,

enchem os céus de nuvens e promessas,

rasgam nos corações a esperança,

desenham nas estradas fios de sombra.

 

A luz cresce ainda pelos campos,

toca o sal da terra com o ardor

do sol primaveril, com o desejo

que desliza dos seios das mulheres.

 

Águas de Primavera são promessas

trazidas pelas sombras deste dia,

tecidas pelas mãos brancas da tarde.

 

A natureza é campo de júbilo,

onde o desejo cresce, salga a terra

e dardeja os corpos das mulheres.

 

Maio de 2024


domingo, 26 de maio de 2024

Micronarrativa (66) Pescadores

Hans Baumgartner, Fischer an der Mosel, 1937

Não, não são os peixes que atraem os pescadores ao rio. Levam o barco para o meio das águas, pegam nas canas de pesca e lançam, presos aos fios, anzóis armadilhados. Querem enganar o tempo e trazê-lo do leito viscoso para a cesta, onde esperam vê-lo contorcer-se e, sem poder recriar as fantasias com que ilude os homens, morrer nos braços vivos da eternidade.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

O sal do silêncio (114)

Carlos Botelho, Sé de Lisboa, 1938 (Gulbenkian)
A evanescência da memória acentua-se pela deslizar das águas. Sobre as pedras do passado, paira um silêncio tão leve que lembra o murmúrio de um anjo ao passar ou o som do sal a desprender-se da mão de Deus para temperar a insípida textura da terra.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Meditação breve (195) Esperança

Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian)

Quando a vida comum é tocada pela ausência de sentido, a expectativa do homem eleva-se da dureza da terra à imponderabilidade dos céus. Se se olha para cima, espera-se o auxílio e, com ele, o sentido que ajuda a viver no mundo que o perdeu. A esse movimento que transporta o olhar de baixo para cima deu-se, desde sempre e declinado em infinitas línguas, o nome de esperança.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (8)

Francis Picabia, Procesión de Sevilla, 1912

São tardes de assombro no caminho.

Espanto pelas coisas renascidas,

libertadas da morte invernal,

do trôpego casebre da tristeza.

 

Uma procissão vinda do passado

descia ruas cobertas de verdura.

As pétalas das rosas cintilavam

nascidas no contágio da memória.

 

Trago em mim o silêncio do espanto.

Abro os olhos na luz secreta e pura,

no caminho exacto do assombro.

 

Passam pequenos anjos entre andores,

as pétalas pisadas perdem cor.

Renascem em mãos lívidas as rosas.


Maio de 2024


sábado, 18 de maio de 2024

Diálogos morais 66. Destino

Julia Margaret Cameron, The Parting of Lancelot and Guinevere, 1874

- Chegou a altura.
- De quê?
- De que será?
- Não faço ideia.
- Como hei-de dizer?
- Diz, estou a ouvir.
- De deixar o destino seguir o seu caminho.
- O destino tem um caminho?
- Então, não tem?
- Pensava que o destino fosse o caminho.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

A memória do ar (30)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

Quando, cansado de deambular pela vastidão da Terra, o vento abandona os seus trabalhos, o ar permanece fiel ao desejo imemorial de imobilidade. Tudo se suspende, as águas do rio, a viagem das nuvens, a inquietação da noite, o pulsar da morte na fímbria do coração. 

terça-feira, 14 de maio de 2024

Geometrias de fogo (30)

Paula Rego, Contos populares portugueses, 1975 (Gulbenkian)

Há no fogo uma beleza rude, o exercício de um fascínio arcaico, a promessa de uma grande espectáculo. As labaredas dançam e o espírito deixa-se contaminar pela variação e mudança que elas, como um velho dragão, sopram sobre o mundo. Tudo muda, pensa-se, enquanto o fogo permanece firme na sua impermanência.

domingo, 12 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (7)

Camille Corot, View of Marino in the Alban Mountains in the Early Morning, 1826 – 1827

Um hálito de lume na cidade

desce sobre o rio, sobre os jardins

tocados pelo sopro do crepúsculo.

Desce sobre o tempo da memória.

 

Fogos de Primavera ardem céleres

nos recantos da noite, nos lugares

onde os corpos dançam no orvalho

trazido pelos braços da incúria.

 

Desenho no papel um fogo mortal,

os jardins inflamados da cidade,

corações desprezados, sem morada.

 

Esquecido do nome, vou na noite

e danço no orvalho incendiado

pelo fogo fremente da aurora.

 

Maio de 2024


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Haikai do Viandante (436)

Otto Scharf, Waldbach, 1902

Água rasga a terra.

Promessas de luz e sombra

soltam-se no rio.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

A sombra da água (30)

Albrecht Dürer, Study of water, sky and pine trees, 1495-6

Era uma água tornada sombra, animal que se metamorfoseia para se confundir com o ambiente. Esconde-se para evitar os monstros do dia e ser esquecida pelos fantasmas da noite. Água perdida na errância, esquecida do caminho que da terra leva ao oceano.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Espírito da Terra (30)

Dórdio Guimarães, Paisagem alentejana (Évora), 1941

Uma paisagem iluminada pelo sol. No diverso das cores, manifesta-se uma sabedoria arcaica, aquela que, sob o império do espírito , determina o lugar das coisas, o espaço dos animais, as possibilidades dos homens sobre a Terra.

sábado, 4 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (6)

Júlio Resende, sem título, 1952

Remota Primavera dança dentro

dos meus olhos cerrados, no ardor

daqueles dias sem nome e nas noites

tocadas pelo vento cru do sangue.

 

Entardece o esplendor daquelas horas

varado pela espada da cegueira.

Uma sombra trespassa o coração.

As palavras refluem no silêncio.

 

Danço na noite pálida do sangue

e ergo a Primavera na fogueira

dum jogo de palavras sem pudor.

 

Levanta-se a espada dessas horas.

Trespassado e vil, o corpo cai

sem amparo na fenda fria da noite.

 

Abril de 2024


quinta-feira, 2 de maio de 2024

Signo sinal 17. Fim do mundo

Juan José Aquerreta, Amor en el fin del mundo, 1991
Pode-se pensar em palavras monstruosas ou em impulsos tresloucados provenientes de um coágulo sanguíneo. Pode-se meditar na força da gravidade e no seu poder de esmagamento ou na violência idiomática da guerra. Aí haverá sempre o signo do fim do mundo, desse evento que rasgará o silêncio das planícies e aniquilará a saliência das montanhas. Se do amor houver sinal, então um outro mundo começa a despontar com um manto de auroras e a promessa de cascatas caindo para o lago do futuro.