segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 19. A coéfora coralista

Eugène Atget, Boulevard de Strasbourg, Corsets, Paris, 1912
A coéfora comprou um coelho e de corpete, como uma coralista, contou como cogitou o contrato do comodoro colaborante. Era um coro de corpetes concebido num corpo de cólera. Cobre? Cobalto? Coral, disse o cónego, compra-se no comércio do comodoro, no covão do colibri ou no covil do cotim.  

domingo, 29 de novembro de 2020

Micronarrativa (44) A incerteza

Frank Eugene, Gustel Königer, 1909

O que a esperava não sabia, apenas olhava o horizonte e aguardava o que dali haveria de chegar. Na tranquilidade do rosto, pontuava a expectativa e no coração desenhava-se uma estranha contabilidade. Seria o bem ou o mal que encontraria. Com o corpo preso na incerteza, deu os primeiros passos e, sob um sol intenso, fez-se ao caminho. Ao longe, alguma coisa a aguardava.

sábado, 28 de novembro de 2020

Haikai urbano (64)

João Hogan, Casario de Lisboa, 1952
Ocres de Lisboa
tecem teias de silêncio
no sol da memória.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Diálogos morais 51. Não era a mesma coisa

Alejandro Mesonero, Conversación
- Sabes uma coisa?
- O quê?
- A filha da...
- Não me digas nada, soube ontem.
- Fiquei para não viver.
- Também não é motivo para tanto.
- A pobre da mãe.
- São coisas que acontecem.
- Agora, acontecem mais.
- É verdade.
- No nosso tempo, também havia quem.
- Pois havia, mas não era a mesma coisa.
- Não, claro que não. Hoje é tudo bem pior.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 51

Lev Lvovich Kamenev, Fog. Red pond in Moscow in autumn, 1871
Sentam-se na sombra
dos salgueiros.
Pensam no primeiro
amor, na água lustral
e nas promessas
idas no rigor da invernia.

Tocam o instante de luz
em que o coração
vibrou virginal
e ateou um fogo
na paisagem
silvestre do sentimento.

Meditam nas árvores
levadas pelo tempo,
no banco vazio
onde o amor cantava
a finitude
de tudo o que é eterno.

Novembro de 2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Meditação Breve (144) A solidão do singular

The New York Times Photo Archives. 43rd Street and Broadway. New York. 1937
Não há como as agruras do clima para revelar essa solidão inultrapassável que habita no coração do indivíduo. Pura singularidade, toda a comunhão se dissolve e a energia, sempre tão pouca, concentra-se em chegar ao abrigo, por mais tosco, pobre ou infame que seja.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

As águas do Letes

John Martin, Sadak in Search of the Waters of Oblivion, 1812
Conhecera-o há muito. Tal como eu, devia andar pelos trinta no virar do milénio. Desapareceu, pouco depois. Houve notícias desencontradas. Que estava na selva amazónica ou num ashram na Índia. Que teria morrido numa emboscada em África. Nada disto era verosímil. Reencontrei-o há dias. Não me conheceu. Falei com ele durante várias horas. Não havia vestígio do passado na sua memória, embora os gestos, o olhar, o tom da voz, a forma como se movia ou vestia, até alguma precipitação na fala eram os dele. Perguntei-lhe onde tinha estado antes de chegar aqui. Respondeu-me, perplexo, que em lado nenhum. Depois, pensou e disse que tinha vindo por um rio cuja água lhe saciara a sede. Que não lhe fizesse mais perguntas sem sentido. Não fiz. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (3)

Józef Rapacki, A daybreak (Landscape - Thaw), 1897

O dia irrompe e um sol ainda pálido ilumina a Terra. As neves do rigoroso Inverno começam a perder consistência e formam pequenos lagos, que mais tarde secarão, deixando o solo ávido do trabalho ancestral do arado.

domingo, 22 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 11

Olga Wisinger-Florian, Prater Avenue in Autumn, ca. 1900
A queda, esse acontecimento que molda as existências e as tinge com o cobre da finitude e da falibilidade. Sentados por terra, nesses Outonos arcaicos, entre o medo do predador e o desejo da presa, os olhos humanos contemplavam o estranho espectáculo que se lhes abria. As folhas ainda há pouco verdejantes amareleciam, acobreavam e caíam baloiçando no ar, se uma brisa as tocava. O chão juncava-se de folhas caídas e os homens, ainda mal despertos para o sentido da vida, descobriam-se também eles folhas secas que o Outono haveria de fazer cair. 

sábado, 21 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 50

Manuel Cargaleiro, sem título, 1961
O lume foi aceso, a mesa posta.
Os dias são longos anos
de mãos abertas
para a vereda azul do Natal.

O hálito do Outono arrefece.
Dos teus lábios saem
palavras colhidas no rosário
da memória lavrada pelo silêncio.

A noite inclina o corpo para o fogo.
O crepitar da madeira,
faúlhas como pássaros ébrios,
a porta fechada para o frio da rua.

Novembro de 2020

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 18. Um acrobata na Acrópole

Fernand Léger, Los acróbatas del circo, 1918

Acrescia, acrescentava, como um acrata, quase um acrânio. Acriançado, acreditava na acrasia, na acrimónia, na acracia. Ó acrílico acrense. Ó acromata acrofóbico. Ó acre acrobata, acrólito na Acrópole.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Micronarrativa (43) O sonhador

José de Almada Negreiros, A sesta, 1939

Alguém, não se sabe onde, sonha-os exaustos pelos ritos nupciais, cansados da corveia devida ao deus do amor. Sonha-os dormindo, o sonhador e os sonhados, e estes não são mais que vestígios perdidos no campo tumultuoso daquele que, submetido ao império do sono, lavra o campo vazio da solidão.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (2)

Ribeiro Christino, A mata do Rôsso (Barqueiros – Douro), 1922
Entre a pedra rude, o viandante traça na terra a sua viagem. Com decidida demora, descobre a vida a brotar do recôndito mistério oculto sob o solo terroso. Deixa-se encadear pelos aromas selvagens e no reverberar da luz ouve a melodia dos seus passos ao caminharem para si mesmo. 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A viúva traída

Bruce Davidson, Widow of Montmartre. Paris, 1956
Há coisas que acontecem porque alguém se esqueceu de cumprir uma promessa ou honrar um pacto. Era assim que ela respondia quando a questionavam sobre a razão de se entregar ao álcool. Se lhe perguntavam quem a enganara, encolhia os ombros. Um dia prometeu-me a verdade, caso lhe levasse algumas garrafas de álcool. Levei. Então, lúcida, contou. Fora muito bela e casara com o homem mais belo que havia ao cimo da terra. Amava-o, perdidamente. A morte, porém, enciumada disputou-lho. Fez-lhe frente. A morte perguntou-lhe que condição punha para o deixar ir. Ela respondeu: Nenhuma, mas se o levas, não me deixes entre os vivos. De acordo, respondeu a morte. O meu marido morreu há trinta anos, disse, e a morte traiu o acordo que fizera comigo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 49

Jesús María Cormán, 2.3 Richter Scale, 2001

A folha pálida da madrugada 
chega trazida 
pelo uivo virginal do vento. 

Pássaros sem nome desenham 
cornucópias invisíveis 
na névoa presa ao nascente. 

Alguém deixa cair um copo, 
e a praça ilumina-se 
no tilintar trepidante do vidro. 

Novembro de 2020

domingo, 15 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 10

Ricardo Bensaúde, Crianças correndo atrás de um pássaro, 1958

É um longo fascínio aquele que prende o coração dos homens ao voo dos pássaros. Presos à terra, a imaginação trabalha para se elevar aos céus. Os olhos brilham perante dança volátil, as horas de observação sem fim, a esperança sempre renascida e sempre frustrada de um dia ganharem asas e voar. Essa observação arcaica daqueles que voam tornou-se uma duradoura tradição. Como aprendem a caminhar na terra e a usar a linguagem, todas as crianças aprendem a olhar os céus, pois no seu coração, ainda antes de nascerem, habita já o desejo de voar. 

sábado, 14 de novembro de 2020

Diálogos morais 50. O princípio da felicidade

Walker Evans, Subway Passengers, New York, 1941
- Ainda não percebi o que te diverte.

- Não me estou a divertir.

- Não?

- Não.

- Esse ar de superioridade.

- Poupa-me, por favor.

- E quem me poupa a mim?

- Eu poupo-te, bem sabes.

- Bem sei? Sempre o mesmo sorriso cínico.

- Sempre os mesmos comentários idiotas.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O sal do silêncio (40)

Ansel Adams, Road after Rain, Northern California, 1960

A luz vacilante toca a estrada vazia, onde a chuva espalhou uma humidade e prata. Se algum solitário por ali se perder, os pássaros de Inverno virão em seu socorro, cobrindo-o com o véu de sombra do seu voo, com a seda refulgente do seu silêncio.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (1)

Ilda David, Espírito da Terra, 1999

Ali, nesse lugar onde uma árvore se enraíza e ganha alento para se elevar ao alto, reside o espírito da terra. Não a poeira fugidia, não a rocha dura, mas a matéria dúctil que, como uma mãe silenciosa, acolhe o pássaro vegetal e a metáfora de luz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 48

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983
Os lódãos oscilam
presos na poeira
do silêncio.

Sombras suspensas
dançam no ouro
do lusco-fusco.

Um pássaro poisa
num ramo,
e a terra treme.

Ondula a noite,
se uma folha cai
rente ao regaço.

Outubro de 2020

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 17. A vibrátil viagem

José Caballero, Dos personajes en un automóvil, 1920

O Vanderlei e a Valquíria vão de viagem ver o venerado vigário. Viajam ora velozes ora vagarosos. Vêem no vinho vida viciosa, desses vultos vulcânicos, dessas víboras valdevinas, desses vermes verrumantes. Ao vento, vibram na visão dos vales. Ó Vanderlei, ventilou a Valquíria, verificaste se veio o velhaco do vibrador? Vrum, Vrum, e, no velho Volvo, lá vão volteando na via virtuosa.
 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Pintura e haikus (19)

Mark Tobey, Entre la Sérénité et l'Inquiétude, 1956
 Redes neuronais
na inquietação de Outono.
Serenas sinapses. 

domingo, 8 de novembro de 2020

Meditação Breve (143) Pobres Penélopes

Júlio Resende, Mulheres de pescadores, 1951
Mulheres de pescadores, pobres Penélopes a tecer redes de sombra e aço para que os seus Ulisses lhes tragam do mar uma rosa, um rubi, o restolho de água enrodilhado no lençol violáceo da morte.

sábado, 7 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 9

Amadeo de Souza-Cardoso, Janellas e postigos, 1914
O espírito é um exímio construtor de fronteiras. A cada momento, delimita espaços, assinala estremas, tece linhas inultrapassáveis. Descontente, porém, com esse seu talento para conter a vastidão, entrega-se à tarefa de abrir fissuras no que tinha muralhado. A tentação do isolamento fecha-o, o medo da claustrofobia abre-o. Uma casa, da mais pequena e pobre ao grande palácio senhorial, não é mais do que esse jogo arquetípico de oclusão e abertura que assombra continuamente o espírito.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 47

René Bertholo, Pintura, 1959

Um prelúdio de pólen e poeira vibra
na música vacilante
nascida na teia do tempo.

Atmosferas de prata e néon,
o rasto de um cometa,
estrelas à deriva na esfera celeste.

Sobre a relva do jardim, salgueiros
pendem para o leito
onde salobra dorme a água da solidão.

Outubro de 2020

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Meditação Breve (142) Sinais dos tempos

Dorothea Lange, A sign of times - depression, 1934
Não há como o tempo para produzir sinais. Não fora a desatenção congénita, a indiferença cultivada e o temor das notícias, e a cada instante o homem disporia de signos e sinais que o abririam para a verdade do mundo, para o saber da terra e para os arautos dos céus. O tempo, não há outro mensageiro como ele.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 8

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Tocar os animais pela lezíria, traçar rotas que só os cavalos conhecem, viver da aurora ao crepúsculo no silêncio onde rumoreja a erva e o murmurar sibilante do vento. Depois, estender a mão sobre o touro, e a noite eleva-se do animal, para que uma lua de feno e sargaço encontre aí a sua casa e dela derrame a luz virginal, onde se celebrarão as núpcias sagradas entre o dia e a noite.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Haikai do Viandante (404)

Benvenuto Benvenuti, Frate Foco, 1925
 Na velha cabana,
espero o dom do Inverno.
Silêncio e fogo.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O sal do silêncio (39)

William Turner, Barco a arder, 1826

Um barco arde no silêncio do mar. Aos céus elevam-se águas em fogo e as colunas de fumo lembram o dia em que Ifigénia foi imolada, para que os helenos tomassem o rumo da perdição de Tróia. Num bote oculto pelas ondas, o deus dos oceanos faz a contabilidade dos vivos e dos mortos, enquanto o vento sopra e as nuvens se avermelham, reverberando como um lençol de cobre batido pela inclemência solar.
 

domingo, 1 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 46

Fernando Calhau, S/Título #706, 1967
Aos domingos, as aparências
descem pelos olhos,
vêm vestidas de seda e sombra.

Seres de sisal desfilam em cortejo
diante da comoção
de espectadores sem fé.

No céu, as constelações irradiam
uma luz lenta, demorada,
ondas de sal sobre as rosas.

A cidade sonâmbula espera
pelo cristal de um deus,
vindo no resplendor do meio-dia.

Outubro de 2020