sábado, 31 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (311)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

manhã de inverno
o sol cai sobre os ciprestes
campos de saudade

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Criadores de espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Na ideia de espantalho pensa-se uma ilusão capaz de provocar medo e, desse modo, evitar que certo objectivo seja realizado. É um truque difundido há muito nos campos para protecção das culturas. O ser humano, contudo, é exímio em criar espantalhos para si mesmo, para que não seja confrontado com os objectivos que a vida lhe coloca e os tenha de realizar. Muitas vezes, o maior dos espantalhos, a grande ilusão, reside numa aparência de realização e na congratulação com aquilo que se costuma designar por triunfo na vida.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (600)

Zao Wou-Ki - 10-11-58/30-12-70

600. incandescências de areia

incandescências de areia
embutidas
no basalto do dia
desfiguram-se
entre a sépia
do deserto
e o cobalto que
desce na estátua
daqueles olhos

(05/12/2016)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A mulher sentada

Henri Rousseau - River Bank (1890)

Sempre a vi ali. Sentada, contempla o rio. Por vezes, levanta a cabeça e observa o arvoredo ou o casario, como se esperasse algum sinal, mas logo o olhar volta para o fluxo das águas. Nunca ninguém lhe dirige a palavra. Quem por ali passa ignora-a ou, comecei a desconfiar, não a vê. O banco é só dela e, por instinto, suponho, todos respeitam a propriedade. Nunca sai dali? É isso que quer saber? Se se ouve o dobre a finados, ela levanta-se, entra no barco, pega nos remos e desaparece na curva do rio. Quando volta, senta-se e volta a fixar os olhos nas águas que passam. Em silêncio.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Das trevas

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

Há duas espécies de trevas na vida do espírito. A primeira espécie é objectiva. Resulta da ausência absoluta de luz. São as trevas exteriores. A segunda é subjectiva. A luz é de tal maneira intensa que o espírito fica cego. São as trevas interiores. Às primeiras resta sempre a expectativa de que um foco de luz as ilumine. Às segundas há que aceitá-las e aprender a navegar na escuridão.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A conversação

André Hambourg - La conversation (1929)

Na vida espiritual, tomada numa ampla acepção, a conversação, como outros aspectos da vida dos homens, apresenta um ambiguidade essencial. Tomada como bavardage, tal como os franceses a entendem, ela é um factor de inibição do caminho, uma distracção, no melhor dos casos, e uma alienação, nos piores. No entanto, é fundamental como o encontro entre espíritos, encontro onde se inter-animam e se fazem progredir no caminho. É também estrutural enquanto diálogo consigo mesmo, onde a conversação estabelece a ponte entre as partes cindidas do self e lhe permite aperceber de uma unidade anterior a toda a cisão que o espírito sofre no mundo.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (599)

Bill Jacklin - Duet (1971)

599. a sonora sombra

a sonora sombra
desce
pelas escadas
da noite
e pura paira
na fronteira
irisada
de um fruto
ferido por terra

(04/12/2016)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (310)

Caspar David Friedrich - Mist (1807)

névoa na manhã
tudo se torna mistério
o natal chegou

Tempestade

László Péri - Der Strum (1923)

No caminho do viandante, a tempestade é um elemento central. Na tempestade dissolve-se a ordem estabelecida. Os hábitos, cristalizações de onde o espírito se ausentou, são desfeitos perante o inusitado do tempestuoso. Mais leve, o espírito reabre-se para o inédito de cada momento, salvo pelo troar da tempestade.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A adoração do Menino

Maestro del Retablo di Bolea - Adoración del Niño

Desde há bastante tempo que é moda olhar para o cristianismo a partir das práticas deletérias dos cristãos. Esse olhar enviesado oculta o papel profundo que o cristianismo tem no melhor que há na cultura e civilização ocidentais. Veja-se o exemplo retirado do quadro atribuído ao mestre do retábulo de Bolea. Sem o arquétipo presente na adoração do Menino, não haveria espaço cultural para uma das mais importantes conquistas civilizacionais da humanidade consignada nos direitos das crianças. Mesmo que muitos cristãos, nomeadamente padres católicos, tenham violado de forma infame esses direitos, a sua condenação começa no acto em que uma certa civilização ou cultura coloca no cerne das suas crenças a divindade do Menino Jesus, o respeito infinito pela criança, a qual, para além de humana, é divina. O que se diz dos direitos das crianças, poder-se-ia estender a todas as outras esferas dos direitos civilizacionais, nas quais a dignidade do ser humano, essa reivindicação iluminista, repousa, em última análise, nos textos neo-testamentários. Há coisas que não devemos esquecer.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (598)

Felo Monzón - Construcción (1975)

598. desenho labirintos

desenho labirintos
                ao correr
das mãos
             e toco
     com a noite
    as paredes
de argila
onde     uma música
                de segredos
me há-de prender
me há-de perder

(04/12/2016)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

De olhos fechados

Odilon Redon - With Closed Eyes (1890)

Fecho os olhos e é tudo o que me resta. A escuridão é benfazeja. Houve um tempo em que queria ter os olhos bem abertos. Era perspicaz e via tudo, pensava. Rapidamente, a desilusão chegava. Afinal não tinha visto tanto quanto julgara. Os olhos, por abertos que estejam, são maus julgadores. As aparências são mesmo aparências. A uma desilusão somou-se outra e outra. Parecia não ter fim. E em cada uma descobria que os olhos, os meus olhos, me tinham traído. Resta-me fechá-los e entregar-me à cegueira. No escuro não há lugar para a ilusão. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

No parapeito

George Seurat - Man at a Parapet (1881)

Se fosse um pássaro... Se fosse um pássaro poderia saltitar no parapeito sem medo de cair. Não, não sou um pássaro. Sinto apenas a vertigem e um desejo de voar. Tenho medo de olhar para baixo. Tenho medo do apelo do voo. Tenho medo. E não sei por que razão este parapeito me chama e por que motivo me debruço nele. Olho e vejo o que se passa lá em baixo. É tudo tão pequeno. Os homens, os carros. Será ali a ilha de Lilliput? Meu Deus, subo para o parapeito. Dei um passo e estou no vazio, mas as costas rasgam-se e umas enormes asas fazem-me deslizar no ar. Voo. Alguém grita:"É Gabriel, o Arcanjo". Calo-me, o que lhes direi?

domingo, 18 de dezembro de 2016

A adoração dos pastores

Rafael Durancamps - La Adoración de los Pastores

Aproxima-se o Natal. Uma das características deste evento é a sua inverosimilhança. A adoração dos pastores ao menino nascido no presépio de Belém é absurda. A natureza absurda destas narrativas não lhes vem de uma pretensa ingenuidade, mas da ausência desta. Estas narrativas foram concebidas não como um registo histórico-racional, mas contra esse mesmo registo. Dizem, pela sua simples existência, que não se dirigem à razão mas à imaginação. Não nos narram factos históricos mas trazem à luz modelos imaginários que estão para além do tempo e da história. A adoração dos pastores não retrata um facto do passado, mas um evento eterno que nunca deixou de acontecer. Na essência do cuidar do rebanho está um acto de adoração que transcende o pastor e o rebanho. É a alteridade, consubstanciada no adorado, que permite ao pastor ser aquilo que é.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (597)

Josef Albers - Constelación estructural. Alfa (1954)

597. de alfa em alfa traço

de alfa em alfa traço
no azeviche
dos céus
constelações
de luz
e letras lívidas
rastos de saudade
na solitária solidão de deus

(04/12/2016)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O fogo

Paul Serusier - The Fire Outside (1893)

Vinham todos os sábados. Um bloco de rocha servia mesa, talvez de altar. A primeira juntava lenha e ateava o fogo. Uma segunda trazia uma antiga panela de tripé e colocava-a sobre o fogo. Depois, vinham as outras, em procissão. O número era variável, mas nunca menos que uma vintena. Chegavam silenciosas, de olhar mortiço. Rodeavam o fogo, olhavam-no intensamente. Chegada a hora estendiam um prato vazio e as primeiras serviam-lhe a comida. Comiam e fitavam o fogo. Nunca uma palavra era dita. Acabada a refeição, iam-se embora como tinham chegado. Os olhos eram então um fogo insaciável.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (309)

Modesto Urgell Inglada - Entardecer

rosa sobre rosa
a planície entardece
terra e solidão

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Encerrar-se na sua concha

Georgia O'keeffe - From a Shell (1930)

Na concha simboliza-se o ambiente protegido e o refúgio inexpugnável. De que se protege aquele que se encerra na sua concha? Da ameaça exterior, das solicitações do mundo? Em aparência sim. Aparências, porém, são aparências e, muitas vezes, ocultam a realidade. Na verdade, procura-se protecção contra o vento. Não o elemento físico, mas aquele vento que sopra onde quer e tem o condão de confrontar o homem com aquilo que ele é. Ao encerrar-se na sua concha, o homem protege-se de si mesmo e da sua verdade.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (596)

Victor Vasarely - Belle-Isle (1949-52)

596. arquipélago negro

arquipélago negro
sobre azul
rochas presas
na água
da claridade
onde peixes
germinam e gemem
no gerúndio
fulvo
a obscurecer
de ilha em ilha

(04/12/2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Da ociosidade

Edward Burne-Jones - Pilgrim at the Gate of Idleness (1884)

Para os gregos o ócio era a condição de possibilidade da filosofia. Sem ele não seria possível uma vida espiritual efectiva e fecunda. Há um momento, porém, talvez ainda na Idade Média em que o ócio emerge como um inimigo dessa mesma vida espiritual. A ociosidade é retratada como uma donzela sedutora, tal como, muitos séculos depois, Burne-Jones, inspirado no Romance da Rosa, a retrata.  O peregrino tem de resistir à sedução do ócio para poder continuar a viagem. A acção ganhava assim uma preeminência, na vida espiritual, sobre a contemplação. O mundo moderno estava à porta. Lentamente, mas de forma inexorável, o peregrino tornou-se em turista ou em caixeiro-viajante.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Da vida dos sonhos

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Há a ilusão que o sonho é o veículo de uma comunicação entre o sonhador e uma qualquer realidade de natureza espiritual que reside num além. A ilusão nasce, em primeiro lugar, da cisão que leva a pensar na existência de um aquém e de um além. Em segundo lugar, da ocultação - embora as diversas escolas psicanalíticas tenham chamado a atenção para o equívoco - de que, no sonho, o espírito comunica consigo mesmo. Sendo como o vento, ele sopra onde quer. Fala do passado e fala do futuro, mas fá-lo sempre porque quer falar do presente, desse puro acontecer aqui e agora e no qual se manifesta toda a eternidade. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (595)

Iago Pericot - 41 inclinacions (1968)

595. o tempo inclina

o tempo inclina
a erva
do espaço
muro em delírio
parede de pálpebras
a sombra
branquinegra
perdida no
oblívio oblíquo
do anoitecer

(04/12/2016)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A página em branco

Enrique Clement - La máquina de escribir, Blanco y Negro (1930)

Sentava-me e começava a escrever. Os textos cresciam ao ritmo da agilidade dos dedos. Inventava e reinventava histórias, como se a cornucópia da abundância tivesse sido derramada sobre mim. Um dia, porém, as teclas da máquina de escrever pareceram-me ligeiramente presas. Limitei-me a empregar mais de força nos dedos. No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Passado semanas, tornou a acontecer. Nesse dia tive uma tontura. Mas, na manhã seguinte, a escrita fluía sem parar. Passados dois dias, os dedos foram impotentes para carregar nas teclas. Sobre mim desceu um grande nevoeiro. Até hoje. Esta é a última página que coloquei na máquina. Em branco.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (308)

Vincent Van Gogh - Estudio con abetos rojos en otoño (1889)

sobre os abetos
desce uma luz vermelha
folhas de outono

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Reabrir a porta

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. (João 3:3)

O momento do nascimento é o da primeira abertura da porta. A incomensurabilidade da existência está ali plena e totalmente disponível para o recém-nascido. A partir desse momento, por uma necessidade inelutável de sobrevivência, a educação – seja ela de que tipo for – encarrega-se de fechar a porta. Resta à maioria dos homens espreitar pelo buraco da fechadura. A isso chamam compreender a realidade. Alguns, porém, descobrem que a porta fechada já tinha estado escancarada. Abrir de novo a porta passa a ser então a sua missão. A isto chamou João, o Evangelista, nascer de novo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (594)

Wassily Kandinsky - Composition VI (1913)

594. o ondulado da harmonia

o ondulado da harmonia
arde em silêncio
no lume brando
do caos
no fogo
de um odor azul
em êxtase
na louca loucura
dos vermelhos
tintos de luz e mágoa

(08/11/2016)

domingo, 4 de dezembro de 2016

Partir pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

Ao domingo, descansava. Nos outros dias da semana, porém, trabalhava o dia inteiro. Partia pedras e acumulava-as em grandes montes. Infatigavelmente. Por vezes, repousava e bebia água ou comia alguma coisa. Logo voltava à tarefa, sem desfalecimento. Não, nunca vi sair dali qualquer pedra ou tirar proveito do terreno livre das pedras. Estas eram partidas e amontoadas. Não tinha com ele qualquer proximidade, mas um dia perguntei-lhe a razão do seu trabalho. Olhou-me estupefacto. Havia nos seus olhos uma ironia matizada pelo cansaço. Respondeu-me: e para que serve o seu? E continuou.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O espírito e a obra de arte

Joerg Immendorff - Anbetung des Inhalts (1985)

Existem obras de arte - pinturas, poemas, romances, peças musicais, etc. - cujo conteúdo provoca uma verdadeira adoração, permitindo que entre elas e o público se estabeleça uma relação religiosa, no sentido em que o vocábulo religião é derivado de re-ligação. O que acontece é que o espírito e a obra se reconhecem um ao outro como partes de um mesmo todo. Ao reconhecerem-se formam uma totalidade que está para além das visões parcelares com que os homens interpretam os acontecimentos do mundo. Esse encontro entre o espírito e a obra eleva o homem para um além que não apenas é incomensurável com aquilo a que chamamos realidade como lhe permite, apesar dessa incomensurabilidade, compreendê-la de forma mais ampla e profunda.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sagradas famílias

Pablo Picasso - Familia a orillas del mar (1922)

Neste quadro de Picasso, Família à beira mar, de 1922, podemos compreender a capacidade de metamorfose do espírito e a relação deste com aquilo que Carl Gustav Jung denominou de arquétipos. Olhamos o quadro e percebemos de imediato que, apesar da forma como os figurantes se apresentam nesta cena à beira mar, estamos perante uma refiguração da Sagrada Família. A própria ideia de Sagrada Família, tal como é dada no presépio de Belém, é já um momento refigurativo de uma experiência triangular entre o homem, a mulher e a criança bem mais arcaica. O espírito na sua infinita inquietude exprime-se então nesta tensão entre aquilo que é sempre novo e o que é permanente.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (593)

Georgia O'keeffe - Abstraction, white rose nº 2 (1927)

593. a rosa desliza branca

a rosa desliza branca
na pétala vil
da inocência
vai desvalida
e desavinda
corola de pudor
na aurora da boca
do deus tocado
tocado
pela harpa do desejo

(08/11/2016)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (307)

Wassily Kandinsky - Autumn in Bavaria (1908)

fogos de outono
descem frios nas folhas mortas
queda e solidão

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A verdadeira face

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

Raramente se pensa, ao valorizar a dimensão ética da pessoa, a presença nela, como pertencente ao seu núcleo, da máscara social - a dimensão da persona - que possui o duplo efeito de proteger o indivíduo nos seus contactos sociais e de distorcer a verdadeira face que se esconde sob a máscara e aniquila a autenticidade.  Deste ponto de vista, a pessoa é já uma inautenticidade. A vida espiritual é a viagem que conduz da máscara à verdadeira face, da pessoa ao si-mesmo. O perigo, porém, é grande, pois a verdadeira face pode ser sentida pelo outro como uma ameaça terrível e pelo próprio como uma fragilidade inultrapassável.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, 
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; 
assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Não por acaso, o vento - ou o sopro - é tomado como símbolo da vida espiritual. João diz-nos que nada sabemos daqueles que nascem do espírito. Não sabemos nem a sua origem nem o seu destino. Estão subtraídos à dinâmica da história, como se estivessem acima e para além dela. O vento como símbolo do espírito e da vida espiritual diz-nos ainda outra coisa. O vento suave pode refrescar e tornar a existência aprazível, mas o vendaval tem o poder de destruir. É um equívoco olhar para a vida espiritual como um mero exercício de consolação. Ela é também, e muitas  vezes, a violência que destrói os edifícios anquilosados onde tomou forma e que já não contêm a sua infinita ânsia de liberdade.

domingo, 27 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (592)

Georgia O'keeffe - Black abstraction (1927)

592. negro sobre negro

negro sobre negro
uma sombra
de azeviche
cai
na brancura do papel
e inunda
de abstracção
as asas brancas
e pálidas
do anjo perdido
no negror da noite

(08/11/2016)

sábado, 26 de novembro de 2016

Entre dois mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Houve uma época em que era moda falar da condição humana. Como todas as modas, também essa passou. Hoje em dia ninguém fala da condição humana. Não é que a humanidade tivesse perdido a sua condição, esta, porém, deixou de lhe interessar e tornou-se-lhe estranha. A condição do homem é a de estar entre dois mundos. Entre o visível e o invisível, como referia Platão no Fédon. Entre o tempo e a eternidade. Entre a terra e o céu, segundo a tradição do taoismo. Estar entre dois mundos não é apenas possuir um lugar, mas também uma função, a função de mediador, aquele que estabelece ligação entre o que está em baixo e o que está no alto. Esta é a condição humana.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (306)

Gustave Caillebotte - Rua de Paris em tempo chuvoso (1877)

envolta em chuva
a noite cai na cidade
água e solidão

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Armar espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Nunca os processos de educação dos seres humanos preparam estes para a liberdade espiritual. Essa liberdade, pela sua vastidão e pela sua profundidade, quando suspeitada, é sentida como um perigo. O espírito tem medo de si próprio, sente-se como uma ameaça para a ingénua tranquilidade em que foi educado. Como o agricultor que vê as suas colheitas ameaçadas pela liberdade das aves, o espírito entretém-se a armar espantalhos para se defender de si mesmo e evitar o confronto com o terrível que a sua liberdade traz.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (591)

Julião Sarmento - Amazonas (1992)

591. semeio flores e florestas

semeio flores e florestas
nas margens
do rio amazonas
onde vestidas de luz
e espadas
cavalgam
mulheres de torso
azul
e olhos outonados
na face fria
de uma amazona

(22/10/2016)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A voz

Giovanni Boldini - La Cantante Mondane (c. 1884)

O público estava em êxtase, preso naquela voz, como se só ela existisse. A diva, porém, tinha o ar de quem já não podia ver o pianista e assustava-se até com a própria voz. Olhava as pessoas como se formassem um bando de harpias e tremia. Por vezes, parecia suspender o canto, emudecer, mas não. O que me espantou foi ninguém ter dado por nada quando o corpo dela ficou hirto. Depois estremeceu e começou a apagar-se. Primeiro, perdeu os contornos, a seguir tornou-se uma sombra, uma névoa e, por fim, desapareceu. Só a voz persistiu, mais bela que nunca, enlouquecendo quem a ouvia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O cavalo de Tróia

Lovis Corinth - The Trojan horse (1924)

Nos dias de hoje tornou-se natural interpretar as narrativas míticas como uma reminiscência - por norma, distorcida - de acontecimentos reais. O efeito é rasurar a carga simbólica que a narrativa mítica traz consigo e, através dessa rasura, pôr de lado a natureza espiritual que o mito concentra em si e desencadeia naquele que o escuta e o perscruta. O cavalo de Tróia não foge à regra. As leituras ficcionais ou científicas anulam o ensinamento espiritual que o mito traz consigo. Muitas vezes, o espírito ilude-se a si mesmo e, julgando-se vencedor da aventura espiritual que elegeu, traz para si, como se fosse um prémio, o cavalo de Tróia que tornará patente a sua derrota e a ilusão em que persistia. 

domingo, 20 de novembro de 2016

Domingo de chuva

Émile Jourdan - Pluie à Pont-Aven (1900)

Os domingos são sempre dias onde se manifesta uma qualquer anormalidade. Por vezes, é a melancolia de uma tarde de sol que anuncia a desadequação à norma. Um domingo chuvoso traz consigo o mesmo poder simbólico. Não apenas retém os seres humanos nas suas casas, como é sentido como uma estranha injunção para que se recolham em si mesmos e, por um momento, esqueçam, nesse recolhimento, a inclinação para se dispersarem, movidos pelo fascínio que o mundo sobre eles exerce. Recolher-se em si, ainda que por instantes, é já um confronto consigo mesmo, um questionar sobre quem se é e sobre a vida que se tem. São perigosos os domingos de chuva.

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (590)

Jesús María Cormán - 5.8 Richter scale (2001)

590. poeiras sobre poeiras

poeiras sobre poeiras
erguem-se
ao som
de um violino
e tudo ondula
na onda sonora
de uma sequência
ordenada
ao ritmo
da escala de richter

(22/10/2016)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (305)

Benvenuto Benvenuti - Cipresse e colombe (194)

pombas e ciprestes
murmuram ao cair noite
vento e solidão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (589)

Jesús María Cormán - 2.3 Richter scale (2001)

589. treme a terra

                treme a terra
na leveza
escura do espaço
                oscila no ócio
da eternidade
                se grãos de areia
deslizam
pelos dedos
                vazios
e
                vacilantes de deus

(22/10/2016)

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.