Jackson Pollock - Sem título (1939-40)
Observamos a realidade sempre de uma forma sintética. Os elementos heteróclitos que a compõem são-nos dados como se fizessem parte de um todo e possuíssem entre si uma ligação. Mas, ao mesmo tempo, temos a percepção da multiplicidade de elementos heteróclitos, como se, no instante em que o espírito sintetiza e nos oferece uma totalidade, ele se entregasse a um acto de vandalismo e cortasse o todo em milhentos fragmentos. É com este jogo da análise e da síntese, do todo e da parte, do ser e do ente que o espírito constrói as descrições daquilo a que chamamos real. Mas não será tudo isso ainda fruto de um impulso biológico para a sobrevivência e uma construção social aprendida a partir da mais precoce infância? Parece-me tudo isso demasiado animal e demasiado social, isto é, demasiado humano, para ter alguma relação com a realidade em si e com a verdade. Quando se fala em teofanias, milagres e manifestações diversas do sagrado, temos a tendência para perceber essas irrupções como suspensão da ordem da natureza, uma contradição com as leis das ciência naturais e com a própria natureza. Não estará, contudo, a questão mal colocada? Não serão essas manifestações uma suspensão da nossa descrição do mundo, irrupções que, como uma metáfora poderosa que altera o sentido do texto, desconstroem a habitual imagem do mundo? Nas manifestações do totalmente outro, para usar a designação de Otto para sagrado, não será a ordem da natureza que é posta em causa, mas os processos bios-sociais com que nos adaptamos ao mundo e nos habituamos a ele, tornando-o habitável pelo hábito de uma descrição consolidada dos estados de coisas. Mas uma descrição consolidada não significa verdadeira, significa apenas funcional social e biologicamente. As teofanias rasgam esse véu e obrigam a reescrever o texto com que interpretamos o mundo, até se tornarem numa espécie de metáforas mortas que já nada de inédito propõem.