segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A sombra da água (19)

Piet Mondrian, Farm with trees and water, 1906

Água de ambrósia envolta no âmbar do acaso. Assim, arrastado pelo ritmos da assonância, pensou o poeta a essência obscura da vida, pois nesta tudo é um fluir ora delicado, ora tempestuoso, como se fosse a sombra de um cedro no Verão ou o cio primaveril de um animal divino.

sábado, 2 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 10

Lucio Muñoz, Septiembre, 1985

De súbito, chegou Setembro

maculado por velhas sombras,

pelo carvão da nostalgia.

 

A cal das paredes recebe

a ondulação fria da luz,

o lamento triste do tempo.

 

A música do vento ecoa

pelas ruas cobertas de sílabas,

quase orações, quase silêncios.

 

Setembro de 2023

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Impressões 112. Entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens, 1944
Um homem passeia entre ruínas. Absorto, mergulha nas sombras projectadas pelas pedras do passado. Uma esperança toca-lhe o coração, um desejo prende-o ao lugar. Espera que um deus tenha uma reminiscência e, por um súbito impulso, volte ao templo onde terá sido cultuado e se manifeste, para que ele, passeante incansável pelo rumor de outros tempos, realize o seu desejo e descubra a vida verdadeira que a época que lhe foi dada para viver esqueceu.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Pintura e haikus (33)

António Areal, sem título, 1961 (aqui)

Paisagens incertas
polvilhadas de espectros.
Vozes sem palavras.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 9

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa Debaixo de uma Latada numa Tarde de Verão, 1982 (aqui)

O Verão ainda caminha,

suspenso na altivez dos dias,

preso pelo sisal das horas.

 

Distribui sonhos e promessas,

rosas pelo Jardim do Éden,

fantasias que não cumprirá.

 

Abrigo na cinza da sombra

pensamentos nunca pensados,

palavras de amor nunca ditas.

 

Agosto de 2023

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A memória do ar (18)

Theodor und Oskar Hofmeister, Elbstrand im Schnee, 1897

A devastação de Inverno liberta o ar da sua submissão ao sopro do Sol. Corre, então, frio e seco sobre paisagens desoladas, rasurando as suas histórias, para que outras e mais tentadoras sejam possíveis. Onde se suspeita a desordem por ele introduzida, deve-se também crer que haverá outro mundo que florirá quando a Primavera, com os seus imperativos, voltar.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

No limiar (9)

Lourdes Castro, Sombra Projectada de Marta Minujín, 1963

Tudo começa como um esboço e este é já uma promessa daquilo que ultrapassará a fronteira que divide o mundo possível do mundo real. Depois, o esboço transforma-se em sombra ténue, primeiro, e, paulatinamente, em sombra cada vez mais densa, como se procurasse a fonte luminosa que a criou e a ilumina para que possa subsistir. Ultrapassado o limiar, abandonados os espaços imponderáveis onde os corpos são pensados para se entregarem à dimensão sensorial que os há-de acolher, um novo ser emerge, pleno de glória que o tempo haverá de apagar.

sábado, 19 de agosto de 2023

A sombra da água (18)

Jacob van Ruisdael, Wooded Landscape with Waterfall and Approaching Storm, c. 1655 [Städel Museum, Frankfurt am Main]

Toda a água contém em si, como uma sombra nascida no princípio do tempo, uma inclinação para a tempestade. Umas vezes, o tempestuoso reside na própria água. Noutras, são elas que o chamam, para que, negro e ameaçador, traga cerzida na desordem a anunciação de uma nova ordem.
 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 8

Modesto Urgell Inglada, La fiesta mayor, procession

O vento do Norte reparte

as ninfas por fontes e rios,

traz aos dias os velhos mitos.

 

Agosto abre-se aos rumores

de festejos e procissões,

brilham os santos nos altares.

 

Desço a escadaria do tempo.

Sob a névoa de calor vejo

a luz de cada devoção.

 

Agosto de 2023

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Geometrias de fogo (18)

Helmut Middendorf, Elektrische Nacht, 1979

Como num perpétuo inferno, seres humanos mergulhados num destino de trevas entregam-se ao flamejar ansioso das labaredas nascidas no fundo obscuro do coração. Dançam homens e dança o fogo, a realidade contorce-se em geometrias de abandono e insignificância, o desespero move-se pelo território que recebeu em herança. Tudo arde.

domingo, 13 de agosto de 2023

Signo sinal 12. Águas pluviais

Hugo Canoilas, A água da chuva a cair nas bacias oceânicas,2020-2022 (aqui)

Os símbolos sulcam as pradarias oceânicas, onde rebanhos de animais vorazes aguardam as águas pluviais. Esperam delas a pureza decantada na atmosfera, o doçura que equilibrará o excesso de sais e dará um rumo aos que se perdem nos signos dos tempo ou nos sinais de novos mundos.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Haikai do Viandante (432)

Bernardo Marques, sem título (aqui)
Sentado, um homem
sonha a sombra do tempo.
Cai a luz da tarde.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 7

Salvador Dali, Las llamas, llaman, 1942

São paisagens feitas de fogo.

Árvores antigas em chamas

caem na terra abrasada.

 

Ao mortal silêncio das aves

respondem clamores humanos,

a úlcera do desespero.

 

Ano após ano o deserto

cresce no espólio da vida,

ergue-se, mortalha da Terra.

 

Agosto de 2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O sal do silêncio (102)

Júlio Resende, sem título, 1948 (aqui)
O silêncio da espera é o sal que tempera a expectativa. Sem ele a terra é desprovida de húmus, as coisas perdem os contornos, a vida não encontra o sentido. Aguarde-se em calma silenciosa e a chama do espírito virá trazida pelo vento.

sábado, 5 de agosto de 2023

A memória do ar (17)

Alexandre Estrela, O som no ar, 2010 (aqui)

O ar é o meio memorial onde o som encontra o modo de se propagar, fazer um caminho até que descubra uns ouvidos que transformem as ondas sonoras em signos significantes, em música ou ruído, em promessas de um antigo paraíso ou na ameaça de um inferno de estrépitos e de estrondos, prontos a derramar sobra a terra o tumulto do mal.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

No limiar (8)

Horst P. Horst, Dali Costumes, 1939
Por vezes, existe na matéria uma dolorosa inclinação para que se tornar humana. Não importa se é viva ou se, pelo contrário, é o mais inanimado dos materiais. Uma finalidade, transparente com a água pura dos regatos de infância, começa a fervilhar e umas mãos começam a moldá-la, segundo uma figuração inscrita na memória da terra. Como numa alucinação, os contornos surgem na mente e as mãos, incapazes de adormecer, tecem na pedra, no plástico, no gesso, na madeira, seja no que for, esses seres que ainda não são humanos, mas já trazem em si, no limiar que os limita, a humanidade que manifestarão aos olhos de quem passa.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 6

Jakob Nussbaum, On the Beach at Port Said, 1925

 

Conto em silêncio os meses

para desenhar do Verão

os sulcos suados da sombra.

 

Na infância, o calor era

domado pelo véu do vento,

o verde a dançar nas árvores.

 

Se ouvia o grasnar das gaivotas,

os olhos perdiam-se na água

suspensa na luz do areal.

 

Agosto de 2023

domingo, 30 de julho de 2023

A sombra da água (17)

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Produzidas na fábrica do silêncio, as águas da meia-noite vestem-se como viúvas a quem o mar roubou os maridos. Então, murmuram canções desconhecidas que o vento, tocado pela maresia, transporta para terra, como se anunciasse a vinda de um mundo novo nascido do cristal salgado dos oceanos.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Signo sinal 11. Turbilhão

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983 (aqui)

Como num deserto, as areias enovelam-se e batidas pelo vento erguem-se em turbilhão, adquirindo estranhas configurações para sinalizar aquilo que ainda não se vê, mas que o tempo traz consigo já pronto para se manifestar aos olhos de quem saber olhar.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Geometrias de fogo (17)

Vincent van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889
Os raios solares entram pela terra e adormecem longos meses para, chegada a hora, renascerem como mil frutos das oliveiras que, ao transformarem-se no mais puro dos azeites, alimentarão as pequenas chamas que guiarão os homens na sua peregrinação por campos e cidades ou lhe darão a luz que, na sombra da casa, os abrirá ao mais secreto dos segredos.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

sábado, 22 de julho de 2023

Sulcos de Verão 5

Laurence Stephen Lowry, Coming from the Mill, 1930

No desabrigo da cidade,

intermináveis são as tardes

destes dias de calor aceso.

 

Por terra, frutos de Verão

lembram ruínas esquecidas

pela incúria dos homens.

 

Longos silêncios de domingo

são rugas nascidas do tempo,

preces ao Deus abandonado.

 

Julho de 2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A memória do ar (16)

Dr. S.B. Ward, Winter, 1889
O ar transporta em si a memória de todas as estações. Carrega-a como se sonhasse. Quando é tocado pelas recordações de Inverno, arrefece e corre o mundo, trazendo as águas pluviais que limpam as cidades ou algum nevão que cobre montanhas e planícies com o imaculado véu da brancura.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Signo sinal 10. Uma sombra

James Craig Annan, Der Franciscaner, 1896
O silêncio fundido na solidão torna-se uma sombra a pairar pelo mundo. É um animal de fogo no gelo da terra, é uma floresta de água no caminho do incêndio. Vai e vem como um sinal que indica o caminho ou o signo do advento da Primavera.

domingo, 16 de julho de 2023

A sombra da água (16)

Manuel Cargaleiro, Flores na água, 1960
Falemos de processos, desses mistérios em que uma coisa se transforma numa outra. Ouve-se o borbulhar da água e logo, sobre ela, se vê um manto de sombras que protegem o rodopiar em que, lentamente, as gotas se juntam e se tornam nas mais fulgurantes flores. São rosas, tulipas, orquídeas, malmequeres silvestres que se abrem na humidade que as trouxe à vida.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sulcos de Verão 4

Kazimir Malevich, River in the forest

O Verão desfraldou bandeiras

sobre a paisagem ressequida,

sobre as águas pardas do rio.

 

Os corpos são sombras ligeiras,

tomados pela calmaria

das tardes que nunca têm fim.

 

Ouve-se o ramalhar das árvores.

Ouve-se um cântico nas margens.

Ouve-se o júbilo de Julho.

 

Julho de 2023

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Pintura e haikus (32)

Chaim Soutine, House in the Country - 1934

As casas de campo
são mistérios doutro tempo.
Erma solidão.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O Espírito da Terra (26)

Daniel O'Neill, Returning Home, 1956

Quem volta ao lar pisa o chão com leveza, para que a terra permaneça silenciosa e, envolta no seu silêncio, deixe que o espírito que a guia conduza quem se fez ao caminho para retornar ao lugar que é seu, como se voltasse ao paraíso de onde fora há muito expulso.

sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.